Mensalão revisitado: O STF entre “legalismo” e equívocos na interpretação da CF

Leonardo Martins

Há pouco mais de um ano o STF recebia os embargos infringentes dos condenados na AP 470, porque a decisão no mérito não fora unânime. Para processos iniciados até a segunda instância, tal instituto processual é previsto tão somente no CPC e no R.I. do STF, em seu art. 333, I. Quando a opinião pública esperava certificar-se da inédita execução penal, uma nova discussão processual foi reaberta, ocupando parte da pauta do STF com seu juízo de admissibilidade. De novo, o STF chegou a uma decisão não unânime e, de novo, com o resultado mais apertado possível.

Interpretando sistematicamente o aplicável específico parâmetro constitucional.

A norma constitucional do art. 102, I, b é uma regra de competência, que tem a função de proteger a ordem constitucional como um todo contra crimes comuns praticados por membros do alto escalão governamental e parlamentares. Trata-se do parâmetro processual constitucional que abre ao STF a competência para o julgamento dos acusados que, em sua maioria, eram órgãos do Executivo e Legislativo. O STF é o juiz natural de tais acusados. Se o julgamento de outros réus por conexão foi correta ou não, deixemos aqui em aberto.

Há de se investigar a natureza jurídico-constitucional da discutida ação penal, notadamente o porquê de o constituinte tê-la previsto no art. 102, I, como competência jurisdicional originária do STF. Logo após a abertura de sua competência ao exclusivo controle normativo abstrato, da alínea “a”, ela aparece como o primeiro dos procedimentos de ações penais constitucionais, na alínea “b”.

Investigada deve ser a relação sistemática entre a norma constitucional do art. 102, I, b, como regra de competência, e as garantias constitucionais processuais do art. 5° da CF. Tais garantias, como direitos fundamentais individuais, são os parâmetros jurídico-materiais. Vêm à pauta as garantias constitucionais processuais penais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Porém, como sempre ocorre em direitos fundamentais de cunho institucional, suas respectivas configurações fazem parte da margem discricionária do legislador ordinário, no caso: do legislador processual penal. Questionável é, assim, se o devido processo legal implica a necessidade de configuração do processo em duplo grau de jurisdição. Por falta de determinação normativo-constitucional expressa, a abrangência do duplo grau de jurisdição pela garantia constitucional ao devido processo legal por muitos defendida, não passa de uma tese ainda carecedora de comprovação.

Também questionável e o que poderia resultar na obrigatoriedade da admissão dos embargos infringentes é se a peculiaridade de uma ação penal decidida por um colégio de onze integrantes, o pleno do STF, não fundamentaria a necessária revisão de uma votação não apenas não unânime, mas tão apertada como essa. Para alguns procedimentos, como, por exemplo, para a não admissão de um RE por lhe faltar a condição especial da demonstração pela parte recorrente da repercussão geral das questões constitucionais discutidas, o constituinte previu não a unanimidade, mas a maioria qualificada de oito dos onze membros da Corte (art. 102, § 3° CF). Essa contraposição entre RE e ações penais constitucionais parece, todavia, indicar, pelo contrário, que a garantia constitucional do devido processo legal não abrange o duplo grau, pelo menos não nos casos em que o STF figura como juiz natural originário, tal qual previsto nas alíneas “b” e “c” do art. 102, I da CF. Ao contrário do quórum muito qualificado previsto para a inadmissibilidade do RE, o constituinte não determinou para a admissibilidade, nem para a decisão de mérito da ação penal constitucional, nenhum quórum específico, devendo valer a mesma regra geral para se aprovar um dispositivo de qualquer decisão: a maioria simples. Logo, a interpretação sistemática com a previsão do quórum especial previsto no art. 102, § 3° para a admissibilidade ou não do RE contra decisão judicial de outras Cortes não tem o condão de indicar que o duplo grau de jurisdição a ser cumprido dentro de um mesmo tribunal seja elemento estrutural necessário da garantia constitucional do devido processo legal, ensejado por uma decisão não unânime como o fora a sentença condenatória prolatada ao cabo da instrução da AP 470.

Tais dúvidas ocorrentes junto à interpretação das garantias constitucionais de cidadãos comuns são, porém, no caso dos condenados na AP 470, plenamente dirimidas pela verificação da relação sistemática entre elas e o art. 102, I, b (lex specialis). A garantia do devido processo legal no caso da ação penal constitucional tem que ser interpretada à luz do sistema de litígio constitucional implícito no art. 102, I da CF, na medida do que foi objetivamente concebido pelo constituinte. A razão de órgãos estatais serem julgados diretamente por uma Corte suprema é a defesa da Constituição contra erosões provocadas por titulares de grande poder político, ou pelo menos somente pode ser esta quando se parte de um conceito de Constituição jurídica do Estado democrático de direito.

A alcunha de “foro privilegiado” sempre foi uma caricatura, com lastro no histórico patrimonialismo brasileiro, que se contrapõe a esse sentido original da vontade objetiva do constituinte. Assim, se as prerrogativas de foro levavam, faticamente, à impunidade, isto não pode, obviamente, se tornar normativo. Normativo é o constituinte ter confiado, exclusivamente, ao STF o julgamento de tais órgãos; confiou a ele também a função de equilibrar a sua nobre tarefa de proteger a ordem constitucional vigente com a tarefa de observar as garantias constitucionais dos acusados, em único grau jurisdicional, i.e., até uma sentença de mérito absolutória ou condenatória irrecorrível.

A consequência do não reconhecimento desse dado normativo é uma autodesautorização do STF. Com efeito, não se trata de “legalismo” ou “garantismo”: em verdade, o STF ignorou o alcance de seu papel como defensor da ordem constitucional vigente. Da perspectiva objetivista de uma Constituição atrelada ao desenvolvimento do constitucionalismo ocidental democrático, o constituinte teve seus (bons) motivos, até então ainda mal interpretados na tradição patrimonialista brasileira, para confiar à Corte designada para ser sua guardiã-mor o julgamento de órgãos estatais por crimes comuns, os quais afetam, em tese, os fundamentos econômico-patrimoniais do Estado constitucional. Por isso, despedindo-se de termos como “prerrogativa” ou “privilégio”, tal foro deve ser, antes, mais bem entendido como submetido a uma espécie de “regime especial de sujeição”, tradicional instituto de direito público, pois órgãos do Legislativo e do Executivo têm que ser os primeiros servidores da ordem constitucional econômica e não seus corruptores. Relativizá-lo com o discurso de que a luta contra a corrupção no Estado e na sociedade é uma luta vã, como muitos fazem, soa cínico: se a corrupção não pode ser eficazmente combatida na esfera da sociedade civil e da base do funcionalismo público em geral, que o seja ao menos junto às Casas representativas do povo e dos Estados-membros, assim como ao primeiro escalão governamental.

É preciso que tais órgãos investidos de funções constitucionais saibam que a ordem constitucional vigente onera o exercício de tão nobres funções com um regime diferenciado: um devido processo legal em única instância que pode levar a uma condenação de pena privativa de liberdade, exoneração do respectivo cargo, inelegibilidade e sanções congêneres em um prazo razoável no sentido do art. 5°, LXXVIII da CF.

 

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