Michel Temer não cometeu crime de prevaricação no caso JBS

Cezar Roberto Bitencourt -  

Houve algum “erro” do presidente Michel Temer nesse episódio patrocinado pelo empresário Joesley Batista? Em caso positivo, qual seria a natureza de dito erro e quais podem ser suas prováveis consequências?

Ante a desenvoltura do empresário ardiloso, consciente e seguro da “armação” que havia preparado para o mandatário máximo da nação, procurando demonstrar intimidade, contrastava com a visível timidez e desconforto do presidente Temer. Joesley Batista criou uma armadilha, uma situação ardilosa, uma espécie de “pega-ratão” para o presidente que, surpreendido, com a desfaçatez e desenvoltura do empresário, ficou incrédulo, sem saber o que fazer, pelo que se percebeu do áudio. Como referiu Mariz de Oliveira, “parece que foi coisa preparada”.

A rigor, vangloriando-se e procurando mostrar intimidades, o empresário confessou a prática, no mínimo, de crimes de corrupção e de exploração de prestígio. E sobre a parte do diálogo que, segundo a Globo, Temer teria dado sua anuência ao pagamento de propina a Cunha, não nos pareceu corresponder a realidade dos fatos. Com efeito, ouvindo o áudio constatamos que houve visível descontextualização do diálogo, pois, a rigor, a frase do presidente, que teria dito “isso deve manter, viu!” referia-se a “boa relação com Cunha”, que o empresário disse manter. Essa manifestação do presidente seguiu-se, imediatamente, a essa afirmação do empresário, e não ao pagamento da propina, como se pode observar do áudio em questão.

Sobre a “confissão” do empresário relativamente aos arranjos com juízes e um procurador, nesse particular, o mandatário da nação, a nosso juízo, deveria ter agido, errando ao não tomar as providências cabíveis. O cidadão comum que toma conhecimento de algum crime não é obrigado a denunciá-lo a ninguém, nem mesmo à autoridade competente. No entanto, pode-se afirmar, a autoridade pública, qualquer delas, tomando conhecimento da prática de qualquer crime de ação pública tem o dever legal, constitucional e funcional de comunicar a autoridade pública competente.

Na hipótese concreta, a nosso juízo, o presidente Temer poderia ter convocado o ministro da Justiça e comunicá-lo do ocorrido, e este, por sua vez, deveria convocar o procurador-geral, requisitando-lhe a instauração de um procedimento investigatório criminal, para apurar os fatos e as suas circunstâncias. Atribui-se ao presidente, aqui e acolá, a possível prática do crime de prevaricação, por isso, faremos um exame sucinto dessa infração penal.

Prevaricação é a infidelidade ao dever de ofício e à função exercida; é o descumprimento das obrigações que lhe são inerentes, movido o agente por interesses ou sentimentos próprios. Dentre os deveres inerentes ao exercício da função pública, o mais relevante deles é o que consiste no cumprimento pronto e eficaz das atribuições do ofício, que deve ser realizado escrupulosa e tempestivamente, para lograr a obtenção dos fins funcionais. O objeto material do crime de prevaricação é o “ato de ofício”, que é aquele que o funcionário público deve praticar em decorrência dos seus deveres funcionais, consequentemente, segundo o tipo penal, é necessário que o sujeito ativo encontre-se no exercício de suas funções regulamentares.

O elemento subjetivo é o dolo constituído pela vontade consciente de retardar ou omitir, indevidamente, ato de ofício ou praticá-lo contra disposição expressa de lei. É necessária, ainda, a presença do elemento subjetivo especial do tipo, representado pelo especial fim de agir, qual seja, “para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”, isto é, há a necessidade de que o móvel da ação seja a satisfação desse tipo de interesse ou sentimento.

Interesse pessoal é aquele que, por alguma razão, satisfaz pretensão, ambição ou anseio do agente, podendo ser representado por qualquer vantagem ou proveito que possa ser obtido pelo sujeito ativo em razão de sua conduta incriminada nesse tipo penal. Sentimento pessoal, por sua vez, reflete um estado afetivo ou emocional do próprio agente, que pode manifestar-se em suas mais variadas formas, tais como amor, paixão, emoção, ódio, piedade, carinho, afeto, vingança etc.

No plano objetivo, pode-se até questionar se a conduta omissiva do mandatário-mor pode ter tipificado alguma infração penal, por exemplo, prevaricação. Contudo, no plano subjetivo, no mínimo, não restou configurado o elemento subjetivo do tipo, qual seja, o dolo da conduta omitida e, principalmente, o seu elemento subjetivo especial, isto é, “para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”. Na realidade, o inusitado da situação, a perplexidade que causou ao presidente podem tê-lo induzido a erro, devendo-se, no mínimo, para prosseguir no exame da tipicidade objetivo-subjetiva, questionar a natureza desse suposto erro, bem como as suas consequências. Faremos a análise desses aspectos em tópico próprio logo adiante.

Erro de tipo e erro de proibição e suas consequências jurídico-penais O erro relevante em Direito Penal é aquele que vicia a vontade, causando uma falsa percepção da realidade e também aquele que vicia o conhecimento da ilicitude. Nesses termos, o erro tanto pode incidir sobre os elementos estruturais do delito — erro de tipo — quanto sobre a ilicitude da ação — erro de proibição.

Para uma melhor compreensão do atual tratamento do erro jurídico-penal recomenda-se que se ignorem os velhos conceitos romanísticos de erro de direito e erro de fato. Não se trata, como pode parecer, simplesmente, de uma nova linguagem jurídica, mas trata-se, em verdade, de institutos diferentes que não guardam, necessariamente, exata correspondência aos antigos “erro de direito” e “erro de fato”. O erro de tipo e o erro de proibição não representam uma simples renovação de normas, mas uma profunda modificação conceitual. São novas concepções, com novas e maiores abrangências. O erro de tipo abrange situações que, outrora, eram classificadas ora como erro de fato, ora como erro de direito. Por outro lado, o erro de proibição, além de incluir situações novas (v. g., a existência ou os limites da legítima defesa), antes não considerados, abrange uma série de hipóteses antes classificadas como erro de direito.

Assim, o erro jurídico-penal, independentemente de recair sobre situações fáticas ou jurídicas, quando inevitável, será relevante. Não há, na verdade, coincidência entre os velhos e os novos conceitos. Mudou toda a sistemática. A ultrapassada classificação de erro de direito e erro de fato baseava-se na situação jurídica e na situação fática. A problemática, hoje, é diferente; enfoca-se outra questão: a tipicidade e a antijuridicidade (ilicitude). Ou seja, o erro pode recair sobre a tipicidade ou sobre a injuridicidade.

Nas circunstâncias em que os fatos ocorreram é mais do que razoável considerar a existência de erro que viciou a vontade do Presidente, causando-lhe uma falsa percepção da realidade, bem como o conhecimento da ilicitude, incorrendo em erro jurídico-penal, que pode ser de tipo ou de proibição, na hipótese pode ter incorrido em ambos os erros, simultaneamente. Por isso, impõe-se que se examine, a seguir, essas duas modalidades de erros, eis que, dependendo de sua natureza, suas consequências são distintas.

Erro de tipo e erro de proibição e suas consequências

Erro de tipo é o que recai sobre circunstância que constitui elemento essencial do tipo penal. É a falsa percepção da realidade sobre um elemento do crime. É a ignorância ou a falsa representação de qualquer dos elementos constitutivos do tipo penal. É indiferente que o objeto do erro se localize no mundo dos fatos, dos conceitos ou das normas jurídicas. Importa, isto sim, que faça parte da estrutura do tipo penal. Essa modalidade de erro está regulada no caput do artigo 20 do nosso Código Penal, onde o legislador refere-se expressamente ao “erro sobre elemento constitutivo do tipo legal”. Por exemplo, no crime de calúnia, o agente imputa falsamente a alguém a autoria de um fato definido como crime que, sinceramente, acredita tenha sido praticado. Falta-lhe o conhecimento da elementar típica “falsamente”, uma condição do tipo. Se o agente não sabia que a imputação era falsa, não há dolo, excluindo-se a tipicidade, caracterizando o erro de tipo.

Nada impede que o erro de tipo ocorra nos crimes omissivos impróprios. Por exemplo, o agente desconhece sua condição de garantidor (e o presidente não se encontrava nessa condição), ou tem dela errada compreensão. O erro incide sobre a estrutura do tipo penal omissivo impróprio. O agente não presta socorro, podendo fazê-lo, ignorando que se trata de seu filho, que morre afogado. Desconhece a sua posição de garante. Incorre em erro sobre elemento do tipo penal omissivo impróprio, qual seja, a sua posição de garantidor.

O erro de tipo invencível (inevitável), também referido como erro de tipo essencial, sempre exclui o dolo, permitindo, quando for o caso (tratando-se de erro evitável), a punição pelo crime culposo, uma vez que a culpabilidade permanece intacta. O erro de tipo inevitável exclui, portanto, a tipicidade, não por falta do tipo objetivo, mas por carência do tipo subjetivo. Assim, haverá a atipicidade, por exclusão do dolo, somente quando o erro for inevitável, mesmo que haja previsão de modalidade culposa. A vencibilidade do erro de tipo, por sua vez, é determinante da punição por crime culposo, mas desde que esta modalidade seja tipificada (excepcionalidade do crime culposo).

Erro de proibição, por sua vez, é o que incide sobre a ilicitude de um comportamento. O agente supõe, por erro, ser lícita a sua conduta, quando, na realidade, ela é ilícita. O objeto do erro não é, pois, nem a lei, nem o fato, mas a ilicitude, isto é, a contrariedade do fato em relação à lei. O agente supõe permitida uma conduta proibida. O agente faz um juízo equivocado daquilo que lhe é permitido fazer em sociedade. Walter Coelho, falando sobre a incidência do erro de proibição, faz a seguinte colocação: “Há que se lembrar sempre estas três considerações fundamentais: a lei, o fato e a ilicitude. A lei, como proibição, é entidade moral e abstrata; o fato, como ação, é entidade material e concreta; enquanto a ilicitude é relação de contradição entre a norma e o fato. Pois bem, o discutido erro de proibição incide, justamente, sobre este último fator, ou seja, sobre a relação de contradição do fato com a norma”.

Bastante elucidativo é o exemplo de Welzel: “Quem subtrai coisa que erroneamente supõe ser sua, encontra-se em erro de tipo: não sabe que subtrai coisa alheia; porém, quem acredita ter o direito de subtrair coisa alheia (v. g., o credor frente ao devedor insolvente), encontra-se em erro sobre a antijuridicidade”. Para Maurach, “erro de tipo é o desconhecimento de circunstâncias do fato pertencentes ao tipo legal, com independência de que os elementos sejam descritivos ou normativos, jurídicos ou fáticos. Erro de proibição é todo erro sobre a antijuridicidade de uma ação conhecida como típica pelo autor”.

A jurisprudência alemã mais uma vez empresta sua valiosa contribuição através da célebre sentença de 18 de março de 1952, declarando que: “A errônea suposição de que não concorre um elemento do fato origina o erro de tipo. O sujeito crê que seu atuar é permitido, em virtude de não saber o que faz; sua vontade não está dirigida à realização do tipo. Pelo contrário, o erro sobre a antijuridicidade concerne à proibição da conduta. O sujeito sabe o que faz, mas supõe erroneamente que sua ação é permitida”. Damásio de Jesus, nessa mesma linha, mostra-nos bem a distinção entre os dois institutos no seguinte exemplo: “Se o sujeito tem cocaína em casa, supondo tratar-se de outra substância, inócua, trata-se de erro de tipo (artigo 20); se a tem supondo que o depósito não é proibido, o tema é de erro de proibição (CP, artigo 21)”.

Como vimos no estudo da culpabilidade, o conhecimento da ilicitude é um de seus elementos, pois somente aquele que tem acesso ao conteúdo do mandato ou da proibição normativos pode vir a ser declarado culpado e ser digno de pena. Hoje, sendo inexigível que todos conheçam todas as leis, tem-se de admitir que a falta de consciência da ilicitude, se inevitável, exclui a culpabilidade. Como pontificava Munhoz Netto, “se a norma fosse obrigatória, mesmo para os que não a conhecem, não existiria qualquer razão de não aplicá-la ao mentalmente incapaz”. No moderno Direito Penal da culpabilidade não há mais lugar para a culpabilidade presumida, que nada mais é do que a responsabilidade objetiva. Porém, quem agir sem consciência da ilicitude, quando podia e devia ter essa consciência, age de maneira culpável.

O erro de proibição, quando inevitável, exclui, portanto, a culpabilidade, impedindo, nos termos do caput do artigo 21, a imposição de qualquer tipo de pena, em razão de não haver crime sem culpabilidade. Se o erro de proibição for evitável, a punição se impõe, sem alterar a natureza do crime, dolosa ou culposa, mas com pena reduzida, de acordo com o artigo 21, e seu parágrafo único. Como afirma Cerezo Mir, “a culpabilidade, reprovabilidade pessoal da conduta antijurídica, é sempre menor no erro de proibição evitável”.

Concretamente, o presidente pode ter incorrido tanto em erro de tipo quanto em erro de proibição, embora a sua conduta, na nossa concepção, não constitua crime algum, pois não tinha como dever de ofício denunciar eventual prática de crime, seja por que entendeu que ouvir declarações de seu interlocutor de que teria praticado crimes, por não ter o dever de ofício de investigar ou denunciar a prática de crimes, não prevaricou (erro de tipo), seja por que, na sua concepção, não tem o dever legal (ato de ofício) de denunciá-lo (erro de proibição). O primeiro a fasta a eventual tipicidade de sua conduta, o segundo afasta a sua culpabilidade.

 

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