José Carlos Prociúncula -
Na última quinta-feira (18/5), o eminente ministro Luiz Edson Fachin, relator da Operação Lava Jato no âmbito do Supremo Tribunal Federal, autorizou a abertura de inquérito para investigar o Presidente da República Michel Temer pela hipotética prática de delitos narrados pelo empresário Joesley Batista em acordo de colaboração premiada. Segundo informações disponíveis até o presente momento, o referido empresário teria, inclusive, entregue gravações que supostamente comprovariam a reponsabilidade de Temer nos crimes reportados. Até onde se sabe, numa dessas gravações, Joesley Batista teria confessado a Temer a compra do silêncio do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, bem como do doleiro Lúcio Funaro, por meio da oferta de uma quantia mensal para ambos. Logo após tal revelação, ao que parece, o Presidente da República teria dito “tem que manter isso, viu?”. Pois bem. Diante de tais fatos, indaga-se: responderia o Presidente da República por um delito de obstrução de investigação de organização criminosa (artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei 12.850/13)?
Antes de oferecermos uma resposta adequada a tal questão é preciso recordar que não há salvação, não há porto seguro fora da dogmática jurídico-penal. Sim, pois, como já em 1976 observava Gimbernat Ordeig, é justamente a dogmática que torna possível uma aplicação certa e calculável do Direito Penal, subtraindo-o da irracionalidade, da arbitrariedade ou mesmo do improviso. “Quanto menos desenvolvida esteja a dogmática”, afirmava categoricamente Gimbernat Ordeig, “mais imprevisível será a decisão dos tribunais, mais dependerão do azar e de fatores incontroláveis a condenação ou absolvição&rdquo.
Feita tal observação, passemos propriamente ao trabalho dogmático. Vamos admitir ad argumentandum tantum que, realmente, o empresário Joesley Batista estivesse cometendo o delito de obstrução de investigação de organização criminosa, por meio da compra do silêncio de potencias delatores, quais sejam, o ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha e o doleiro Lúcio Funaro. Vamos admitir ainda, apenas para argumentar, que o Presidente Michel Temer tivesse «aprovado» a conduta do empresário Joesley Batista por meio da expressão “tem que manter isso, viu?”. Pergunta-se: seria ele também responsável por um suposto delito de obstrução de investigação de organização criminosa? Entendemos que não, pelas razões a seguir expostas.
Obstrução de investigação de organização criminosa por meio de cumplicidade psíquica?
Parte-se aqui da teoria do domínio do fato (Tatherrschaftslehre). Como se sabe, nos delitos de domínio (Herrschaftsdelikt), autor é aquele que possui o domínio do fato, é dizer, aquele que na realização do tipo penal aparece como figura central do acontecimento em razão de sua influência determinante ou decisiva.
Há três formas de domínio do fato: a) o domínio da ação (Handlungsherrschaft), que caracteriza a autoria imediata; b) o domínio da vontade (Willensherrschaft), que se manifesta na autoria mediata; c) e, finalmente, o domínio funcional do fato (funktionale Tatherrschaft), que constitui a essência da coautoria.
Pois bem. Se o autor representa, como vimos, o personagem central do acontecer típico, o partícipe simboliza, por sua vez, uma figura marginal, que somente contribui para o fato de forma secundária. A participação é um conceito secundário na medida em que pressupõe que a intervenção não tenha se realizado na forma de autoria. Em outras palavras: antes de classificar a colaboração de um interveniente como participação é preciso descartar a aplicação a tal situação do conceito (primário) de autoria. Mas é importante observar, como faz Roxin, que “a caracterização da participação como um conceito secundário não implica a afirmação de que toda colaboração não constitutiva de autoria seja eo ipso participação”, já que tal colaboração “pode ser também impune, por ausência de um fato principal doloso ou de um ataque autônomo ao bem jurídico&rdquo.
Muito bem. Partindo-se desse critério reitor pode-se sustentar que o empresário Joesley Batista foi o autor do suposto delito de obstrução de investigação de organização criminosa (art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13). De fato, era ele que estava comprando, por meio de pagamentos mensais, o silêncio de dois potenciais delatores; era ele, portanto, que estava embaraçando a investigação de organização criminosa; era ele, enfim, o senhor do fato, a figura central do acontecer típico.
Não se vislumbra, no presente caso, pessoas que, partindo de uma decisão conjunta de praticar o fato, contribuíram para a sua realização com um ato relevante. Tal constatação descarta a hipótese de domínio funcional do fato, é dizer, exclui qualquer possibilidade de que o Presidente pudesse figurar como coautor do delito de obstrução. Nota bene: o empresário Joesley Batista simplesmente revelou a Michel Temer que estava comprando mensalmente o silêncio de dois potenciais delatores, ao que o Presidente somente teria afirmado “tem que manter isso, viu?”.
E nem se diga, como se costuma veicular irresponsavelmente e sem qualquer conhecimento científico sobre o tema, que por se tratar de um presidente da República poder-se-ia falar aqui de um domínio da vontade por meio de um aparato organizado de poder. Isso porque tal critério somente se aplica àquelas hipóteses em que o chefe de uma organização criminosa completamente apartada do sistema jurídico (a exemplo de organizações criminosas de tipo mafioso, organizações terroristas e ditaduras) emite uma ordem cujo cumprimento é deixado a cargo de executores fungíveis, que funcionam como verdadeiras engrenagens de uma estrutura automatizada. Ora, não é preciso nenhum sacrificium intellectus para perceber que no caso sub examine nem se verifica a existência de qualquer ordem por parte do Presidente da República (ele foi apenas comunicado da compra mensal do silêncio de potenciais delatores), nem se poderia constatar razoavelmente a existência de uma organização criminosa com aquelas características elencadas.
Como se vê, a hipotética colaboração do Presidente Michel Temer (por meio da afirmação “tem que manter isso aí, viu?”) aparece simplesmente como algo secundário ou marginal. Resta, portanto, a seguinte pergunta: poderia essa suposta colaboração secundária configurar participação no delito de obstrução de investigação de organização criminosa?
Antes de oferecermos uma resposta a tal questão, façamos algumas observações preliminares. De acordo com a concepção desenvolvida por Roxin, o injusto da participação deriva, em parte, do injusto do autor, mas é também, em parte, independente e autônomo. Por um lado, o injusto da participação deriva do injusto do autor, na medida em que lhe é acessório. Por outro, o injusto da participação é independente do injusto do autor, na medida em que a colaboração com o fato do autor somente pode ser imputada a título de participação se a mesma representa um ataque autônomo ao bem jurídico protegido pelo tipo penal. E, já antecipando o resultado de nossa análise, parece-nos que falta, na suposta colaboração do Presidente Temer com o fato do autor (obstrução de investigação de organização criminosa), qualquer ataque autônomo ao bem jurídico protegido pelo tipo penal em questão. Senão vejamos. Como se sabe, a participação pode se apresentar sob duas formas: a) indução ou instigação e b) cumplicidade ou cooperação. A indução ou instigação consiste em determinar ao autor a prática de um fato. Por sua vez, a cumplicidade ou cooperação consiste na prestação dolosa de ajuda material ou psíquica para a realização do fato tipicamente antijurídico e doloso do autor. De forma mais detalhada, pode-se dizer que a cumplicidade ou cooperação consiste numa “ação de aumentar o risco, causal para o resultado típico e juridicamente desaprovada”.
Pois bem. Dentro das hipóteses de cooperação psíquica, alguns grupos de casos podem ser claramente distinguidos: a) casos de «assessoramento técnico», nos quais o autor recebe conselhos que facilitam a realização do fato; b) casos nos quais se proporciona um motivo adicional ao autor para a realização do fato; c) casos nos quais se verifica uma simples solidarização com o autor ou mesmo a manifestação de aprovação ou simpatia com seu ato.
Enquanto nos grupos (a) e (b) admite-se tranquilamente a existência de uma cumplicidade psíquica, pois neles pode-se verificar com certa facilidade um aumento do risco de produção do resultado, o mesmo não pode ser dito em relação ao grupo (c). Como perceptível in ictu oculi, a suposta colaboração do Presidente Temer enquadra-se justamente no grupo (c): tratar-se-ia de uma simples manifestação de aprovação do ato do autor (Joesley Batista), que em nada aumentou o risco de produção do resultado. Insista-se: o empresário Joesley Batista comunicou ao Presidente Temer que estava comprando o silêncio de potenciais delatores, ao que o Presidente teria meramente dito: “tem que manter isso, viu?”.
Parece mesmo que tinha razão o antigo filósofo jesuíta Kaspar Knittel, quando, já em 1687, proclamava: “Quem bem distingue, bem ensina a verdade. Logo, quem bem distingue, bem julga a verdade”.
Obstrução de investigação de organização criminosa por omissão imprópria? Poder-se-ia ainda questionar se o Presidente Temer não seria autor de um delito de obstrução de investigação de organização criminosa por omissão imprópria. Parece-nos que este também não é o caso. Senão vejamos. Dispõe o artigo 13, parágrafo 2º, do CP que “a omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado.
O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado”. Pois bem. Em primeiro lugar, é importante observar que o Código Penal Brasileiro adotou expressamente a teoria do dever jurídico formal, que provém de Feuerbach, Spangenberg e Stübel. De acordo com tal teoria, o dever de agir para evitar o resultado deriva, exclusivamente, da lei, da assunção da responsabilidade e da ação precedente perigosa; essas são as fontes (formais) que originam as posições de garantidor. Embora a teoria do dever jurídico formal tenha sido abandonada pela moderna Ciência do Direito Penal em razão de sua rigidez, deve-se reconhecer que a sua grande vantagem está na segurança jurídica. De qualquer sorte, eventuais debates a respeito de outras teorias parecem ter relevância somente de lege ferenda (e não de lege lata!), pois, insista-se, o legislador pátrio foi muito claro ao abraçar a teoria do dever jurídico formal. Muito bem. Partindo-se dessas considerações, já é possível indagar o seguinte: tinha o Presidente da República o dever de agir para evitar o resultado (obstrução de investigação de organização criminosa), levando-se em consideração que tal dever somente se origina da lei, da assunção da responsabilidade ou de uma ação precedente perigosa? Parece-nos que não.
Comecemos pelo dever de cuidado, proteção ou vigilância que pode ser imposto pela lei a um determinado sujeito. Como se sabe, tal dever de cuidado, proteção ou vigilância somente pode existir em relação a subordinados, ascendentes/ descendentes e cônjuges. Ora, até seria possível (em tese!) extrair-se de uma interpretação sistemática da Constituição a noção de que o Presidente da República estaria obrigado a vigiar a conduta dos seus subordinados. Entretanto, seria absurdo admitir um dever de vigilância do Presidente sobre os perigos provenientes de particulares (no caso, o empresário Joesley Batista).
É certo, como observa Juarez Tavares, que o exercício de determinadas funções ou serviços públicos pode gerar uma posição de garantidor em seus ocupantes, justamente em razão da assunção de incumbências inerentes ao cargo ou à função pública. Assim, diz Tavares, “os funcionários que desempenham funções nas repartições encarregadas da proteção ambiental são obrigados a controlar a observância, por parte das indústrias, dos métodos destinados a evitar ou a diminuir a contaminação do ar e das águas (...)”. Da mesma forma, continua Tavares, os agentes ou as autoridades policiais são obrigados a proteger os bens jurídicos dos particulares, garantindo-lhes, pelo menos, o respeito à vida, à integridade física, à liberdade e ao patrimônio”. Nada obstante, admitir que o cargo de Presidente da República leva consigo a obrigação de evitar delitos praticados por particulares seria ir longe demais. Por fim, observe-se que não há qualquer conduta precedente perigosa praticada pelo Presidente da República da qual pudesse surgir um dever de atuar para evitar o resultado.
Observe-se, ainda, que mesmo que se pudesse cogitar de um dever de agir do Presidente da República para evitar o resultado, o que se admite apenas para argumentar, far-se-ia imprescindível a demonstração in concreto de que Temer realmente poderia fazê-lo. Não seria admissível partir-se da presunção de que, por se tratar do Chefe do Poder Executivo, ele poderia ter evitado o resultado (obstrução). Isso seria inadmissível!
Conclusão
Iniciamos o nosso artigo citando Gimbernat Ordeig e terminaremos nossas elucubrações em sua ilustre companhia. Há praticamente duas décadas este notável jurista espanhol já chamava a atenção para o grave problema da «surdez recíproca» entre a dogmática jurídico-penal e a jurisprudência: a ciência nem sempre se ocupa suficientemente da praxis e esta tampouco mostra grande interesse pelas suas construções teóricas. O que deve fazer então o jurista com formação científica para superar essa falta de cooperação, perguntava-se Gimbernat? E respondia: deve procurar estabelecer um diálogo frutífero entre tais âmbitos. Essas breves considerações constituem uma singela contribuição nessa direção.