Por Pablo Domingues Ferreira de Castro -
Recentemente foi divulgado, na ampla mídia digital, que sua Excelência juiz federal Sérgio Moro determinou nova perícia sobre o “sistema de propinas” da Odebrecth, no tocante à ação penal que envolve o sítio de Atibaia e o ex-presidente Lula.
Não se quer, aqui, adentrar ao mérito da ação propriamente dita, seja porque se desconhece o conteúdo dos autos do processo (portanto, não se questiona, ao menos em tese, a legalidade de todo um processo), seja porque o que interessa questionar, neste artigo, é uma ato específico praticado pelo midiático magistrado (aqui o termo é utilizado sem qualquer tom pejorativo e, sim, como aquilo que é “transmitido, ou difundido na mídia” ou “que se sente à vontade ou produz efeito favorável na mídia, sobretudo em televisão”, apenas isto).
Afinal, qualquer despacho/decisão e/ou declaração que venha da 13ª Vara Federal de Curitiba ressoa quase que instantaneamente em todo país.
Restringindo-se ao que importa relatar e é objeto de reflexão, destaca-se a decisão daquele magistrado, no ponto em que determinou nova perícia nos sistemas da Odebrecth, quando sua Excelência fez os seguintes questionamentos ao perito:
- a) que seja verificado se o sistema de contabilidade informal do Grupo Odebrecht contém documentos ou lançamentos que possam estar relacionados com a reforma do Sítio em Atibaia pelo Grupo Odebrecht em benefício do acusado Luiz Inácio Lula da Silva;
- b) se positivo, devem ser discriminados os encontrados e as características dos arquivos respectivos, bem como quanto a sua autenticidade e integridade;
- c) que seja verificado se os documentos já juntados aos autos encontram-se no sistema e se positivo devem ser informadas as características dos arquivos respectivos, bem como quanto a sua autenticidade e integridade (grifos nossos).
É de se combalir, com toda veemência, tamanha ilegalidade em tal decisão, revestida de puro intuito incriminador, demonstrando, com todas as licenças, uma falta de compreensão do papel do juiz no Processo Penal e, sobretudo, num sistema acusatório democrático.
Apesar do equívoco jurídico (que por si só é capaz de causar transtornos naqueles que doutrinam em matéria processual penal), a situação traz uma curiosa circunstância jurídica: para quem já defendeu que o problema da criminalidade está no Processo Penal (quanto ao tema, confira-se MORO e BOCHENEK, 2015), agora parece valer-se dele para confirmar, ao que pode parecer, convicções pessoais. Um tanto quanto contraditório. Afinal, o problema está realmente no Processo Penal ou ele, quando convém, é a solução?
Sob o ponto de vista estritamente científico, sob as quais se balizam este breve artigo, não parece esta decisão encontrar amparo jurídico. Não se desconhece o conteúdo do aparentemente inconstitucional art. 156, inciso II que expressamente assegura ao juiz, de ofício, “determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante” (BRASIL, 2008).
Contudo, não se pode, sob pena de grave equívoco de hermenêutica jurídica, emprestar interpretação absolutamente contrária aos próprios princípios de um sistema acusatório democrático, bem como a outros dogmas tão caros quanto, por exemplo, o princípio da imparcialidade do juiz, derivado do art. 5º, inciso XXXVII da CF/88 (BRASIL, 1988), que, como garantia fundamental, não permite juízo ou tribunal de exceção.
O que o questionável artigo permite é o esclarecimento de eventual dúvida, sobre ponto relevante, que tenha surgido no curso de processo penal e durante a fase instrutória. Portanto, é necessário um primeiro registro: tem de haver uma fundada dúvida sobre ponto relevante a justificar a atuação do juízo que, portanto, deve ser entendida como subsidiária.
Outra questão, não menos importante, é que o dispositivo legal permite a determinação de diligências, o que, mesmo que se entenda como a produção de determinada prova, não autorizaria ao magistrado direcionar o seu propósito para se confirmar eventual a autoria ou materialidade de um delito.
Se, por um lado há, na ritualística penal, esta possibilidade (ainda que se entenda e se defenda a sua ilegalidade), é o mesmo diploma processual que, no caput desse artigo, determina que a prova da alegação incumbe a quem o fizer. Significar dizer que, se fosse o caso de se fazer este esclarecimento “adicional”, questionar ao perito elementos que, em tese, conduziriam a uma condenação, este seria papel exclusivo do órgão de acusação e não do juiz, a quem incumbe receber as provas produzidas pelas partes e julgá-las. É intolerável o ofício de um juiz acusador.
A razão é simples: não é preciso que juiz, no processo penal, determine e direcione a produção de provas, assumindo verdadeiramente a figura de um juiz condutor. Se o Ministério Público, que dispõe de todo um aparato legal de produção de provas (e são muitos: há um título no Código de Processo Penal apenas destinado a esta matéria), consegue se desincumbir do seu múnus probatório, condena-se. Se, de outro modo, não há provas, seja da materialidade do delito, seja da sua autoria, absolve-se – são as lições do art. 386 do CPP.
Imaginar que um juízo saia da inércia para determinar, especificamente, a produção de uma prova, com preciso questionamento que envolve explicitamente autoria e materialidade de um crime, somente se justifica sob a ótica de uma futura condenação, uma vez que, caso contrário, a falta de provas conduziria à absolvição do réu ou até mesmo a sua dúvida teria este mesmo resultado, amparado no princípio do in dubio pro reo.
Neste contexto, é preciso que se garanta um sistema de processo penal que seja democrático, este entendido como aquele que promove as garantias constitucionais, permitindo tratamento igualitário entre as partes e, notadamente, rechaçando-se a figura do “juiz-ator” e do “ativismo judicial”, com fins de se garantir uma imparcialidade do julgador (LOPES JÚNIOR, 2013, p. 5).
Ainda sobre o tema, Aury Lopes Junior (2013) acentua que:
Noutra dimensão, o sistema processual penal antidemocrático parte do “desamor ao contraditório”, estabelecendo os contornos de um processo que autoriza o ativismo judicial, com o juiz (ator) buscando a prova de ofício (art. 156), decretando prisões cautelares (art. 385), rompendo a igualdade de tratamento e de oportunidades. Em decorrência, também fulmina a garantia da imparcialidade do juiz, pois é flagrante a contaminação. A legitimação da decisão se dá pelo fato de ser um ato de poder e não construída em contraditório (como no modelo anterior). As partes no processo não são os protagonistas, senão que o é o juiz, dono e senhor da “relação jurídica” (Bulow). Em última análise, o desamor ao contraditório determina a antidemocraticidade de um processo penal. (LOPES JÚNIOR, 2013, p. 6).
Feita estas premissas, é possível responder ao questionamento feito em linhas pretéritas, o problema da criminalidade não está, nunca esteve e, provavelmente, nunca estará no processo.
O problema é um atual cenário de se ter como protagonista a figura de um juiz-ator que, se, pelos questionáveis (juridicamente) meios de prova (art. 156 do CPP) busca a possível confirmação de uma autoria e materialidade delitiva, acabar por vestir a toga do Ministério Público, revestindo-se de imparcialidade e deixa claro um único propósito: condenação, pois, se adotadas fossem as regras do jogo em matéria processual penal, corria-se o risco de absolvição e o processo penal, então, seria inútil, como doravante já foi amplamente defendido.
Para se concluir, impõe-se mais uma indagação: Se a resposta for positiva aos questionamentos do juízo, quem terá produzido a prova que condenou aquele réu? O Ministério Público ou o magistrado? Se for este último, criou-se uma anomalia jurídica: o juiz valora e condena um acusado com a prova que ele próprio realizou.
A utilidade do processo penal, pelo visto, dependerá daquilo que se pretende com o seu resultado e, dentro do entendimento de que o processo penal precisa ser democrático, é bom que se lembre que ser democrático, muitas vezes, é ser contramajoritário, função precípua dos direitos fundamentais (leia-se: VINCI e VINCI JÚNIOR, 2015).
Assim, a sociedade não precisa de exemplos-mor de condenações impactantes, necessita compreender, sobretudo, que há leis, há crimes e há um processo penal que, a um só tempo, permite a aplicação das normas incriminadoras e resguarda o cidadão de arbitrariedades, pois, como todo sujeito de direitos e deveres, o juiz também tem regras a seguir, em prol da legalidade e democracia.