Por Pedro Simões, Flora Sartorelli de Souza e Natalia Ikeda -
“Corrupção” se tornou palavra-chave para compreender o cenário econômico brasileiro desde que a operação "lava jato" — seguindo os passos do caso mensalão — levou à grande imprensa e às redes sociais o debate sobre como Estado e empresariado se relacionam. Complexas questões judiciais e expressões antes desconhecidas, como compliance, se tornaram corriqueiras para o grande público.
Ao passo que o interesse sobre corrupção estatal avançava rápido, outro tema, correlato, surgiu paulatinamente, jogando luz sobre uma realidade não menos problemática: a existência de relações comerciais ilícitas exclusivamente entre partes privadas. Historicamente ligados à relação entre o poder público e o privado, os debates sobre corrupção passaram a abranger também a corrupção privada. O “caso Fifa”, de repercussão global, foi um dos responsáveis por colocar a temática em evidência no Brasil.
Em 2015, foram presos sete dirigentes da Fifa, incluindo o brasileiro José Maria Marin, ex-presidente da CBF. As prisões ocorreram na Suíça, a partir de investigação liderada pelos Estados Unidos, e envolviam a alegação de pagamentos de propina para influenciar a tomada de decisões importantes pelo órgão. A confissão da Traffic Group, empresa que explorava direitos econômicos de campeonatos de futebol no Brasil, foi essencial para o avanço das medidas investigativas.
À época, os Estados Unidos reivindicaram jurisdição sobre o caso. Dentre os vários motivos para tanto, parece ter sido relevante o fato de a corrupção privada não ser crime em diversos países onde ocorreram os supostos pagamentos de propinas — como é o caso do Brasil.
Mesmo não se tratando de corrupção de agentes estatais, o caso ganhou a atenção do público: empresas fora do esquema de corrupção foram prejudicadas por fatores anticompetitivos, e os incentivos ilícitos geraram distorções na precificação dos eventos para os espectadores e demais participantes da comunidade esportiva.
A fim de entendermos melhor o interesse público por trás dos delitos de corrupção privada, é importante observar suas motivações e efeitos econômicos.
Para ilustrar o que seria a corrupção privada em sua forma mais usual, imaginemos uma empresa prestadora que oferece pagamento de propina para funcionário ou administrador de empresa parceira. Em troca, o pagador da propina pede que o representante da parceira garanta a contratação de seu produto ou serviço, ainda que seu produto/serviço não apresente o melhor custo-benefício. Assim, parcerias ilícitas são feitas entre funcionários dessas empresas para “estabilizar” uma relação comercial não em razão da maior eficiência econômica, e sim por interesses pessoais.
Há dois grupos de pessoas potencialmente afetadas por esse tipo de conduta: a empresa-vítima e os concorrentes diretos.
A livre concorrência pode ser prejudicada por atos de corrupção privada porque essas práticas diminuem a competitividade do mercado, gerando distorções na competitividade e aumento nos preços dentro de um mercado relevante específico — ou seja, trata-se de peso morto que acaba sendo pago pelo consumidor.
Com relação ao dano causado à empresa vítima, há duas visões possíveis: (i) o dano é uma afetação do patrimônio dos proprietários; ou (ii) o dano decorre da violação do dever de fidelidade que o administrador ou funcionário tem com a empresa. Ainda que possam parecer “complementares”, essas concepções levam a diferentes consequências quanto aos ilícitos de corrupção privada.
A ideia de que a corrupção privada gera somente efeitos patrimoniais acarreta uma série de dificuldades práticas. Muitas vezes, a ação do funcionário ou administrador não gera um prejuízo, sendo que outras motivações podem ser elencadas para a tomada de decisões menos eficientes do ponto de vista mercadológico, como, por exemplo, manter ou retomar um bom relacionamento com determinado parceiro, estabelecer uma nova rede de parcerias, experimentar um outro produto/serviço etc.
Em casos de corrupção privada, ainda é comum que o serviço superfaturado contratado seja efetivamente prestado e traga bons resultados. Contabilmente falando, isso não necessariamente implica um prejuízo.
Agora, pensemos no seguinte exemplo: o fornecedor de um produto tem interesse em vendê-lo para determinado parceiro. O produto é o melhor do mercado e apresenta, inclusive, o melhor custo-benefício. O fornecedor pode dar uma margem de desconto de até 5%, caso em que seu preço ainda seria o maior. Em vez de dar o desconto, ele usa essa margem para pagar uma “propina” para o diretor da empresa parceira aceitar a oferta de compra.
Nesse caso, a prova da perda patrimonial é extremamente difícil. Se é verdade, por um lado, que o valor de propina poderia ter sido convertido em desconto, essa possibilidade depende de uma liberalidade do fornecedor, o qual não é obrigado a abater o preço. E ainda que tivesse dado o desconto, seu produto permaneceria o mais caro. Porém, a empresa compradora pode ter feito um “bom negócio” mesmo com o ágio da propina, visto que o produto mais caro era, também, o de melhor custo-benefício.
É evidente que a conduta do administrador que recebeu a propina permanece desleal mesmo que o dano patrimonial não seja palpável. Isso nos leva à segunda visão acerca do dano causado à empresa pela corrupção privada: a percepção institucional.
De acordo com essa visão, o elemento moral da corrupção é o que debilita a empresa, ao se contrapor ao dever genérico de lealdade que funcionários e administradores têm com a empresa onde atuam. Trata-se, inclusive, de uma percepção alinhada à etimologia do conceito de corrupção enquanto desvirtuamento ou abandono de determinados valores e princípios. Do ponto de vista probatório, os desafios também se tornam menores — basta avaliar se houve uma conduta desleal à companhia, dentro daquilo que se espera da conduta de um administrador ou de um funcionário e daquilo que é estabelecido no estatuto ou no contrato.
Nos países europeus, onde o debate sobre a criminalização da corrupção privada é mais maduro, encontramos os dois tipos de criminalização, ou seja, com o intuito de resguardar a concorrência, mas também com o intuito de resguardar a empresa-vítima (tanto na perspectiva patrimonial como na institucional).
Em 2003, a União Europeia fixou a todos os seus Estados-membros que criminalizassem a corrupção privada. A Decisão Quadro 2003/568/JAI, contudo, ressaltou que apenas as práticas relacionadas à aquisição de bens ou de serviços comerciais, que impliquem ou possam implicar distorção da concorrência, poderiam ser passíveis de punição.
A decisão surtiu efeito e, atualmente, cerca de 16 países do bloco, incluindo França, Alemanha, Suíça, Espanha, Áustria e Inglaterra, possuem a previsão desse tipo penal em suas leis nacionais.
O Bribery Act, editado pela Coroa Britânica em 2010, chama atenção por definir os atos de corrupção de modo amplo, incluindo o pagamento de propinas para agentes públicos e para empresas parceiras. As penas são altas e podem chegar a 10 anos de prisão.
A legislação federal norte-americana, por sua vez, prevê que os estados criminalizem a commercial bribery ou “propina comercial”.
Na América Latina, por outro lado, até 2018, apenas a Colômbia e a Venezuela criminalizavam expressamente a conduta. Com a Ley 21.121, porém, a corrupção entre partes privadas se tornou um crime no Chile. Lá, além de serem responsabilizadas as pessoas físicas, a legislação também atribui às empresas o dever de adequar seus programas de compliance para evitar práticas de corrupção privada.
No Brasil, o caso Fifa foi usado como justificativa para a redação do Projeto de Lei 5.895/2016, proposto pelo deputado João Derly (Rede). O projeto busca alterar a Lei Federal 9.279/1996, conhecida como Lei de Propriedade Industrial, para prever o crime de corrupção privada como uma modalidade de concorrência desleal, crime de menor potencial ofensivo cuja pena máxima não passa de 1 ano. Um substituto apresentado pelo deputado Áureo Ribeiro (Solidariedade) criticava a criação do tipo de corrupção privada como uma modalidade de concorrência desleal.
Acertadamente, Áureo Ribeiro destaca que os crimes de concorrência desleal atingem, diretamente, um concorrente específico, determinado, mas condutas de corrupção privada causam distorções que afetam a concorrência de modo mais amplo. Por esse e outros motivos, o substitutivo sugere a inclusão de um tipo autônomo de corrupção privada, na mesma lei, tendo como justificativa a afetação da concorrência e pena prevista de 1 a 4 anos.
Ainda que a redação sugerida possa receber ajustes, o substitutivo traz um acerto: coloca o prejuízo causado à empresa-vítima não como condição para a existência do crime, mas como uma possibilidade de aumento de pena de um sexto até a metade, alinhando, portanto, a visão institucional da empresa com a questão concorrencial. O projeto foi arquivado no início do ano, mas pode retornar ao trâmite legislativo a pedido de seu autor.
Como corrupção privada não é crime no Brasil, empresas vítimas geralmente recorrem a outros crimes para demandar a responsabilização criminal de funcionários, administradores e parceiros infiéis. É usual que casos de corrupção privada sejam investigados a título de estelionato, apropriação indébita, concorrência desleal ou violação do segredo profissional, mas, de fato, nenhum desses delitos tipifica a lesão à concorrência causada pela conduta desleal do funcionário ou administrador que aceita a vantagem indevida.