Carlos Henrique Borlido Haddad
1. INTRODUÇÃO.
O Direito
Penal legitima-se formalmente por meio da aprovação, em conformidade com a
Constituição, das normas penais. A liberdade de autodeterminação somente é
possível de ser exercitada, sem risco de resultar em punição, com o
estabelecimento prévio do que é punível. A garantia contra a arbitrariedade,
sobretudo a judicial, faz-se mediante lei. Apenas se pode emitir juízo de
censura sobre o comportamento humano, quando, no momento da conduta, houver
consciência da ilicitude conforme marco orientador preestabelecido: a lei penal
que especifica o tipo de injusto. É o que conhecemos por princípio da
legalidade.
Foi
Feuerbach quem desenvolveu as formulações latinas do princípio da legalidade,
como elemento de sua teoria da pena – nulla poena sine lege (scripta,
stricta, praevia, certa), nulla poena sine crimine, nullum crimine sine poena
legali (JAKOBS, 1991, p. 79). E Von Liszt, quem atribuiu ao princípio o
epíteto de Magna Charta do delinqüente (p. 82). O princípio da
legalidade possui tamanha importância no ordenamento jurídico brasileiro,
sobretudo na seara penal, que foi erigido como direito fundamental no art. 5º,
XXXIX, da Constituição Federal, e dele se ocupa o primeiro dispositivo do
Código Penal: não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem
prévia cominação legal. É a pedra angular de todo o Direito Penal e mais
se aproxima de uma garantia constitucional do que de um direito individual, já
que não tutela, especificamente, um bem da vida, mas assegura ao particular a
prerrogativa de repelir as injunções que lhe sejam impostas por outra via que
não seja a da lei (LOPES, 1997, p. 57).
Parece
ser universal a concepção do caráter essencial do princípio, porque as legislações
alemã e italiana também priorizam a legalidade ao inserirem-na no art. 1º dos
respectivos códigos penais. Mesmo no ordenamento jurídico norte-americano, país
filiado ao common law, o princípio da legalidade desempenha papel
central. Apesar da insuficiência orgânica do estudo do crime, tendo sido
adotado o sistema bipartido, que identifica no delito um elemento objetivo e um
elemento subjetivo e remonta à concepção clássica e já muito ultrapassada,
notam-se traços que permitem identificá-lo. Os conceitos de crime oriundos da
doutrina norte-americana, em sua maioria, fazem alusão à ação ou omissão
proibida em lei, o que indica a anterior existência de previsão legal.
O
princípio da legalidade foi expressamente positivado quando introduzido no Bill
of Rights e nas Constituições das colônias inglesas. A proibição de leis ex
post facto aparece na Declaração de Direitos da Virgínia, em 1776, e na
Constituição de Maryland. O art. 1º, sec. 9, da Constituição americana
estabelece que no bill of attainder or ex post facto law shall be
passed, proibição que se impõe aos Estados Federados na seção 10 do mesmo
artigo. A legislação criminal básica dos Estados Unidos é estatutária. Não
há leis criminais comuns nos Estados Unidos. Em outras palavras, as leis
criminais são decididas pelos legislativos estaduais (para cada Estado) e pelo
Congresso (para o governo federal). A maior parte dos Estados, mas não o
governo federal, possui um ‘código’ abrangente de legislação criminal básica
composto de princípios gerais de responsabilidade criminal, leis que definem os
delitos criminais específicos e leis que definem os álibis e justificativas (JAKOBS,
2001).
A
proposta do presente trabalho não é a de analisar o princípio da legalidade em
âmbito do Direito comparado. Tenciona-se apontar as formas de expressão do
princípio da legalidade no Direito pátrio, especificamente as diferentes
espécies normativas que estabelecem crimes e cominam penas. O objeto de análise
resumir-se-á às normas penais incriminadoras, aquelas que descrevem infrações
penais e impõem as respectivas sanções, porque em relação a elas mais se
justifica o prévio conhecimento da conduta proscrita no preceito penal e a
conseqüência da violação nele prevista. Alijadas estarão as normas penais
permissivas, que determinam a licitude ou a impunidade de certas condutas, como
também as normas penais explicativas, esclarecedoras do conteúdo das outras ou
delimitadoras do âmbito de sua aplicação.
2. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA.
A lei
definidora de infrações penais precisa ser escrita, pois é a forma mais fácil
de dar conhecimento aos cidadãos sobre os pressupostos da punibilidade e a
categoria da pena cominada. Em decorrência, os costumes não exercem nenhum
papel na previsão de crimes e cominação de penas, visto não se desconhecer seu
valor interpretativo para determinar o conteúdo cultural, social e ético de
determinados vocábulos.
A
competência para a edição de normas incriminadoras fica a cargo do Estado, e as
infrações penais devem ser determinadas mediante regras de caráter geral, não
apenas por meio de cânones válidos para o caso concreto ou para um único
indivíduo.
Incumbe à
União, privativamente, legislar sobre Direito Penal (art. 22, I, da
Constituição Federal). Estados e municípios foram excluídos da competência para
editar leis penais de qualquer espécie, entretanto ressalvou-se a possibilidade
de lei complementar autorizar os estados, exclusivamente, a legislar sobre
questões específicas de Direito Penal, consoante autoriza o parágrafo único do
art. 22.
Nem sempre
foi assim.
Com a
proclamação da República e de acordo com a Constituição de 1891, os estados
passaram a ter suas próprias constituições e leis, inclusive as de caráter
penal, mas poucos se utilizaram dessa faculdade de legislar. Tendo em vista o
permissivo constitucional, alguns estados apressaram-se em elaborar os seus
códigos penais, ao passo que outros preferiram prosseguir com a legislação
vigente, com as modificações que se haviam processado, e legislar
supletivamente (PERANGELLI, 1983, p. 161). Continuou vigendo, pois, a
legislação federal, na época, o Decreto n. 4.824, de 22/11/1871, a Lei n.
2.033, de 20 de setembro do mesmo ano, e o Código Penal de 1890 (MIRABETE,
1992, p. 38).
A Constituição
Federal de 1934 pôs fim ao sistema pluralista, ao estabelecer que competia,
exclusivamente, à União legislar sobre Direito Penal,
o que provocou a reunificação da legislação criminal. A Constituição Federal de
1988 manteve a regulamentação e reservou à União a edição de leis em matéria
penal, as quais deverão ser prévias à conduta, para operar-se o adequado juízo
de tipicidade.
Desde a
promulgação da Constituição de 1988 não se tem notícia de publicação de lei
complementar que tenha atribuído aos estados competência para legislar sobre
questões específicas de Direito Penal. Prevalece, portanto, a competência
privativa da União para criar tipos penais e prever as respectivas penas.
O Supremo
Tribunal Federal desempenha relevante papel na preservação da competência
privativa da União para legislar sobre Direito Penal. No julgamento da Medida
Cautelar na ADI n. 307/CE, Rel. Min. Célio Borja, D.J. de 28/9/90, p. 10222, a
Excelsa Corte suspendeu liminarmente o art. 42, caput e § 1º, da
Constituição do Estado do Ceará, que estabeleceu ser crime de responsabilidade
deixarem os prefeitos de enviar às respectivas câmaras e ao Conselho de Contas
do Município, até o dia 15 do mês subseqüente, a prestação de contas relativa à
aplicação de recursos. A despeito de a tipificação penal vir estatuída na norma
hierarquicamente mais alta do Estado do Ceará, reconheceu-se a competência
privativa da União para legislar sobre Direito Penal. Idêntica decisão foi
tomada no julgamento da ADI n. 2.592/RO, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de
23/5/03, p. 30, na qual foi declarada a inconstitucionalidade de dispositivo da
Constituição estadual que tipificava, como crime de responsabilidade, a
não-execução da programação orçamentária decorrente de emendas de
parlamentares.
Conquanto
os dispositivos reputados inconstitucionais aludissem a crimes de
responsabilidade, cuja natureza é mais política do que penal, o Supremo
Tribunal Federal entendeu que não apenas o art. 85, parágrafo único, da
Constituição Federal fora violado, como também o disposto no art. 22, I, que
trata da competência para legislar sobre Direito Penal.
3. CONSTITUIÇÕES NÃO SÃO VEÍCULOS DE NORMAS INCRIMINADORAS.
Sempre
que se faz referência à necessidade de prévia lei, alude-se à lei ordinária,
via pela qual atualmente é editada a esmagadora maioria das normas penais
incriminadoras. Mas será apenas a lei ordinária o veículo tipificador de fatos
puníveis?
No topo
da pirâmide de normas situa-se a Constituição Federal. Não existem na Carta
Magna vigente normas penais incriminadoras completas, que tipificam infrações e
cominam penas, tão-somente disposições de Direito Penal que determinam o
conteúdo de normas criminais. O máximo a que se dispôs o constituinte foi
mencionar crimes, tais como o racismo, o tráfico de entorpecentes e o
terrorismo, de modo a impor a obrigatória tipificação pelo legislador
ordinário, cuja concretização, no caso do terrorismo e de ação de grupos
armados, ainda não ocorreu. A tipificação do terrorismo e da ação de grupos
armados constitui uma garantia aos indivíduos. Sem o tipo penal de terrorismo,
por exemplo, o delito não teria sentido, pois faltaria ao mesmo a
determinação legal, que poderia ser tão ampla e vaga que implicaria total falta
de garantia do cidadão, em face do Estado (VARGAS, 1997, p. 193). Todo tipo
penal cria o âmbito do proibido e, ao mesmo tempo, o âmbito do permitido.
Restringe a liberdade e cria liberdade (CERVINI, 1997, p. 97). A despeito do
forte caráter democrático e protetivo da Constituição Federal vigente, não se
dispôs a trazer a tipificação de todos os crimes que menciona e reservou à
legislação infraconstitucional a atribuição.
As
Constituições de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967 nunca definiram infrações
penais em seu bojo. A opção explica-se porque a descrição de condutas
penalmente puníveis e de suas respectivas sanções não deve ser alocada em carta
de princípios, responsável pela racionalização e planificação da vida estatal,
em que se prevêem regras concernentes à forma de Estado, à forma de governo, ao
modo de aquisição e exercício do poder, ao estabelecimento de seus órgãos e aos
limites da sua ação. Portanto, os textos constitucionais pátrios
desconhecem a tipificação de infrações penais e a cominação das correlatas
sanções.
Poder-se-ia
fazer alusão aos crimes de responsabilidade, previstos no art. 85 da Constituição
de 1988 e incorporados a textos constitucionais desde 1891. Porém, além de a
previsão constitucional não ser esgotante, antes meramente exemplificativa,
porque depende de lei especial que estabeleça sua definição e as normas de
processo e julgamento (art. 85, parágrafo único), os crimes de responsabilidade
apresentam conotação política e não penal. Falar em crimes de responsabilidade
é ambíguo porque são infrações político-administrativas não sancionadas com
penas de natureza criminal. A Lei n. 1.079/50 prevê crimes de responsabilidade
praticados pelo presidente, ministros de Estado e do Supremo Tribunal Federal,
pelo procurador-geral da República e pelos governadores, sendo a sanção
estabelecida, entre outras, o impeachment.
4. O PAPEL DOS TRATADOS E CONVENÇÕES
INTERNACIONAIS COMO NORMAS INCRIMINADORAS.
A
Constituição de 1988 contém dispositivos que reproduzem fielmente enunciados
constantes de tratados internacionais de direitos humanos (proibição da
tortura, presunção de inocência etc.), mas outros tratados podem alargar o
universo dos direitos nacionalmente garantidos. Não se trata, como é óbvio, de
normas incriminadoras. Mas mesmo que as normas de tratados e convenções
internacionais vigentes previssem crimes e penas, não ostentariam status constitucional.
Durante muito tempo, debateu-se qual seria o nível hierárquico das normas
internacionais incorporadas ao ordenamento jurídico pátrio. A doutrina
costumava atribuir aos direitos contidos em tratados o status de norma
constitucional. O Supremo Tribunal Federal manifestou o entendimento de que
tratados e convenções internacionais equiparam-se às leis infraconstitucionais
quando recepcionados pelo ordenamento jurídico. A situação ficou mais clara
quando se julgou a constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel,
cuja previsão não estava contida no Pacto de São Jose da Costa Rica, a que
aderira o Brasil (HC n. 72.131/RJ, Relator Min. Marco Aurélio, DJ de 1/8/2003,
p. 103), uma vez que a norma internacional somente admite prisão por dívida do
devedor de alimentos. Concluiu-se que a convenção não tem índole
constitucional, incorporou-se ao ordenamento pátrio como lei
infraconstitucional e não poderia, por conseguinte, contrariar disposição
hierarquicamente superior, que previa a prisão civil do depositário infiel e do
devedor de alimentos.
Agora, há
regulamentação expressa, imperativa e obrigatória. A Emenda Constitucional n.
45/04 introduziu o § 3º ao art. 5º da Constituição, de acordo com o qual os
tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos
dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais. Indicaram-se quais espécies de tratados e qual
procedimento deve-se adotar para a aquisição de status constitucional.
Independentemente
da classificação hierárquica dos tratados e convenções internacionais em face
do ordenamento pátrio, em regra, não desempenham o papel de normas
incriminadoras. Observações similares àquelas extraídas em relação às
disposições constitucionais são depreendidas da análise das normas
internacionais a que aderiu o Brasil.
Tratados
e convenções internacionais representam normas de conduta internacional para o
futuro, que só vinculam juridicamente as partes contratadas, sejam Estados ou
entidades capazes de se obrigarem na ordem internacional, a fim de que
conciliem vontades divergentes e alcancem solução jurídica comum. Usualmente,
têm por objeto determinadas infrações penais, posto que não cuidem de
tipificá-las criminalmente.
A
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 26 de maio de 1969, é uma
das mais importantes fontes do Direito Internacional Público, pois nela as
regras costumeiras sobre a matéria foram devidamente codificadas em documento
quase perfeito, cujo objetivo foi precisamente o de reconhecer o direito das
organizações internacionais de firmar tratados e convenções. Referida Convenção
não proíbe a previsão, em normas internacionais, de disposições tipificadoras
de delitos, conquanto seja incomum a adoção dessa prática.
Inequívoco
exemplo relaciona-se ao terrorismo. Atualmente, estão em vigor doze tratados
internacionais e dois regionais relativos ao terrorismo internacional (LAFER,
2003, p. 111). O Brasil aderiu ou ratificou nove deles, nos quais se incluem a
Convenção da OEA para a prevenção e repressão dos atos de terrorismo
enquadrados como delito contra as pessoas e atos conexos de extorsão de alcance
internacional, de 2/2/71, aprovado pelo Decreto-legislativo n. 087/98; a
Convenção para a repressão do apoderamento ilícito de aeronaves, de 16/12/70; a
Convenção sobre a proteção física de materiais nucleares, de 3/3/80, entre
outros. Não obstante, o delito de terrorismo carece de tipificação pela lei
brasileira.
A tímida
alusão ao terrorismo no art. 20 da Lei n. 7.170/83 não se presta à tipificação
da conduta, porquanto a “prática de atos de terrorismo” não se traduz em norma
de encerramento idônea a resumir as condutas especificadas no dispositivo
(FRANCO, 1994, p. 67). O art. 20 da Lei n. 7.170/83 não cumpre os objetivos dos
tratados internacionais firmados. Assinala Alberto da Silva Franco que a
falta de um tipo penal que atenda, no momento presente, à denominação especial
de “terrorismo” e que, ao invés de uma pura “cláusula geral”, exponha os
elementos definidores que se abrigam nesse conceito, torna inócua, sob o
enfoque de tal crime, a regra do art. 2º da Lei 8.072/90 (p. 68). Não
apenas o dispositivo do art. 2º da Lei dos Crimes Hediondos resta inócuo; toda
a legislação referente ao terrorismo permanece acéfala, porque o delito em
torno do qual é erigida não tem existência concreta.
Por outro
lado, o Brasil aderiu à Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários
Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais. Foi firmada pelo
Brasil, em 17 de dezembro de 1997, ratificada por meio do Decreto Legislativo
n. 125, de 14 de junho de 2000, e promulgada pelo Decreto Presidencial n.
3.678, de 30 de novembro de 2000.
A
finalidade dessa Convenção é a de adotar medidas, de forma efetiva e coordenada
entre os Estados-partes, para prevenir e reprimir a corrupção de funcionários
públicos estrangeiros na esfera das transações comerciais internacionais.
Quando da ratificação da Convenção, o Brasil comprometeu-se a criminalizar o
ato de corrupção de funcionários públicos estrangeiros e a aplicar penalidades
criminais “eficazes, proporcionais e dissuasivas” aos delitos nela
relacionados. Na reunião realizada de 12 a 14 de junho de 2002, em Paris, o
Brasil anunciou, para o Grupo de Trabalho sobre a Corrupção, que, em face da
aprovação da Lei n. 10.467, de 11 de junho de 2002, cumprira o processo de
adequação da legislação nacional aos compromissos assumidos na referida
convenção. Acrescentou-se o Capítulo II-A ao Código Penal, que passou a dispor
sobre os crimes praticados por particular contra a administração pública
estrangeira, tipificou-se a corrupção ativa em transação comercial
internacional, o tráfico de influência em transação comercial internacional, a
ocultação ou dissimulação de produtos de crime praticado por particular contra
a administração pública estrangeira e, definiu-se, para efeitos penais,
“funcionário público estrangeiro”.
Por se
constituírem em normas para o futuro, tratados e convenções internacionais não
tipificam crimes, não obstante seja comum determinarem, à legislação interna, a
tipificação de determinadas infrações, como executado pela Lei n. 10.467/02.
Exceção à regra, que
deve ser mencionada, é o Estatuto do Tribunal Penal Internacional (TPI), que
gerou a instituição de sistema permanente de justiça criminal internacional. O
Estatuto do TPI constitui antiga aspiração da comunidade internacional e supre
lacuna apontada pelos estudiosos do Direito Internacional (MAIA, 2001, p. 61), razão
por que suas disposições não representam normas de conduta para o futuro, mas,
sim, estão com os olhos voltados para o presente.
Talvez por esse motivo tenha-se optado por tipificar determinadas infrações
penais com base nos instrumentos internacionais existentes, para que se não
deixasse a tarefa para momento futuro, especialmente porque, no âmbito do TPI,
também vigora o princípio da legalidade e há necessidade de se aplicar os tipos
penais sem recorrer a fontes auxiliares.
Os crimes
de genocídio, contra a humanidade e de guerra foram tipificados nos arts. 6º a
8º do Estatuto do TPI, em descrições bastante abrangentes e exaustivas. O crime
de agressão, posto que sujeito à jurisdição do TPI, não foi definido, em face
da grande controvérsia surgida acerca de seu conceito, a partir da qual se
chegou a questionar, inclusive, se deveria permanecer dentro da competência do
tribunal (MAIA, 2001, p. 92).
A
jurisdição do TPI está muito bem definida no Estatuto. A premissa baseia-se no
princípio da complementariedade, o que significa o exercício da jurisdição da
corte apenas se um tribunal nacional não estiver disposto a tanto ou não for
possível intervir. Conclui-se que as cortes nacionais sempre terão prioridade
no julgamento dos crimes, malgrado seja possível depositar esperanças no papel
do tribunal supranacional, mormente para as hipóteses em que não for concedida
a extradição e não houver julgamento pelos tribunais locais. De qualquer forma,
a tipificação das infrações penais pelo Estatuto de Roma não produz efeitos
diretos sobre a legislação nacional, porque é diverso o âmbito de incidência
das normas internacionais.
5. O PAPEL DAS LEIS COMPLEMENTARES.
Abaixo
das normas constitucionais, em âmbito interno, posta-se a lei complementar,
cuja aprovação exige a maioria absoluta dos membros do Senado e da Câmara dos
Deputados. A categorização da lei complementar acima da lei ordinária deve-se
mais à sua colocação em posição antecedente no art. 59 da Constituição Federal
do que a outra razão substancial.
Não
existe proibição de adotar a lei complementar na tipificação de delitos e na
previsão de penas, conquanto sua utilização seja econômica e comedida, haja
vista o quórum mais qualificado que é exigido para sua aprovação. A Lei
Complementar n. 105/2001 constitui exemplo de norma penal incriminadora,
porque, ao dispor sobre o sigilo das operações de instituições financeiras,
previu, no art. 10, a seguinte infração penal: A quebra de sigilo, fora das
hipóteses autorizadas nesta Lei Complementar, constitui crime e sujeita os
responsáveis à pena de reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa,
aplicando-se, no que couber, o Código Penal, sem prejuízo de outras sanções
cabíveis.
Mas não é
toda lei de equivalente status hierárquico que criminaliza condutas. A
Lei Complementar n. 101/01, ao estabelecer normas de finanças públicas voltadas
para a responsabilidade na gestão fiscal, prescreveu que as infrações aos
dispositivos dessa Lei Complementar serão punidas segundo o Decreto-lei n.
2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); a Lei n. 1.079, de 10 de abril
de 1950; o Decreto-lei n. 201, de 27 de fevereiro de 1967; a Lei n. 8.429, de 2
de junho de 1992, e demais normas da legislação pertinente. A referência ao
Código Penal para extrair punições aos agentes que violam dispositivos da lei
de responsabilidade fiscal não constitui norma penal completa, senão mero
preceito de reenvio. Foi a Lei ordinária n. 10.028/00 a responsável por
descrever condutas puníveis e cominar as sanções respectivas aos crimes
praticados contra as finanças públicas, englobados no capítulo IV do título do
Código Penal que enfeixa os Crimes contra a Administração Pública. Elaborou-se
o capítulo Dos Crimes contra as Finanças Públicas, foram criminalizadas
condutas nos arts. 359-A a 359-H e estabeleceram-se penas que variam de três
meses de detenção a quatro anos de reclusão.
A
conseqüência de se adotar a lei complementar como norma incriminadora situa-se
no plano da sucessão de leis penais no tempo. Para parte da doutrina, somente
outra lei complementar teria o condão de revogar a incriminação contida, por
exemplo, na Lei Complementar n. 105/2001.
Entretanto,
é prescindível edição de nova lei complementar para modificar norma de igual
hierarquia, consoante o entendimento já revelado pelo Supremo Tribunal Federal.
O Plenário da Corte, no julgamento dos REs n. 377.457 e 381.964, Rel. Min.
Gilmar Mendes, sessão de 14/3/07, decidiu pela inexistência de hierarquia
constitucional entre lei complementar e lei ordinária, espécies normativas
materialmente distintas.
Em
verdade, decidiu-se que a lei complementar ocupa posição intercalar e
intermediária no ordenamento jurídico. Vale menos que a lei constitucional e
mais que a lei ordinária. Mas, apesar de a lei complementar constituir-se
espécie normativa superior à lei ordinária, caso disponha sobre matéria
passível de ser disciplinada por esta última, sendo assim chamada de lei
materialmente ordinária, poderá sofrer revogação por norma de status inferior.
Em âmbito tributário,
entendeu-se que a lei ordinária poderia produzir a revogação de lei
complementar se a regulamentação abrangesse matéria não reservada expressamente
a ela, isto é, lei complementar materialmente ordinária não precisaria ser
alterada por lei complementar. A isenção tributária concedida por lei
complementar seria passível de revogação por lei ordinária, porquanto a matéria
em comento – isenção – pode ser veiculada por norma que não exija quórum
qualificado. Assim, haveria queda de status da lei complementar
concessiva da isenção, que se confundiria com a norma ordinária. No julgamento
da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 1, Rel. Min. Moreira Alves, o
Supremo Tribunal Federal manifestou o entendimento de que o conflito entre lei
complementar e lei ordinária não é resolvido pelo princípio da hierarquia, mas
sim em função da reserva de competência. A circunstância de ter sido a Cofins
instituída por lei formalmente complementar não lhe dá, evidentemente, a
natureza de contribuição social nova, porque, nesse aspecto, é materialmente
ordinária por não tratar de matéria reservada, por texto expresso da
Constituição, à lei complementar.
Idêntico
raciocínio pode ser adotado em matéria penal. Criar delitos e penas não é
matéria que exija quórum especial – em nenhum momento a Constituição Federal
reserva a disciplina à lei complementar – e a utilização dela para essa
finalidade – criação de crimes e penas – importaria na equiparação da norma à
lei materialmente ordinária.
6. O VEÍCULO DAS NORMAS INCRIMINADORAS: LEI ORDINÁRIA.
De acordo
com o princípio da estrita legalidade, como conceituado por Ferrajoli, a
determinação abstrata do que é punível não se refere ao que, por
características intrínsecas ou ontológicas, é reconhecido em cada ocasião como
imoral, naturalmente anormal ou socialmente lesivo; é aquilo formalmente
indicado pela lei como pressuposto necessário para a aplicação da pena. O
princípio da mera legalidade tem o valor de uma regra metacientífica, conhecido
como o primeiro postulado do positivismo jurídico. Trata-se de regra semântica
que identifica o direito vigente como objeto exaustivo e exclusivo da ciência
penal, estabelecendo que apenas as leis – e não também a moral – dizem o que é
delito, e as leis dizem apenas o que é delito – e não também o que é pecado (FERRAJOLI,
2001, p. 374).
A norma,
por excelência, que melhor expressa o princípio da legalidade é a lei
ordinária, que figura em seguida à lei complementar no mencionado rol constante
do art. 59 da Constituição Federal de 1988. A partir da promulgação da Constituição,
a lei ordinária transformou-se no meio precípuo através do qual se estabelecem
infrações penais. A lei que define os crimes de tortura – Lei n. 9.455/97 – é
típico exemplo de adoção da lei ordinária como primordial meio de criação de
delitos. As alterações da Parte Especial do Código Penal, pretéritas e
recentes, fizeram-se por meio de leis ordinárias. Mesmo antes da Constituição
Federal de 1988, era comum o uso da lei ordinária, e a Lei n. 7.492/86, que
definiu os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, representa cabal
exemplo dessa opção.
7. AS MEDIDAS PROVISÓRIAS.
A medida
provisória, que tem força de lei, sempre gerou controvérsia doutrinária sobre a
sua adoção na criação de delitos. Ela requer relevância e urgência para ser
editada, o que não se concilia com o Direito Penal, cujas incriminações não
devem ser transitórias a ponto de serem inaplicáveis. Para situações urgentes,
há previsão de normas excepcionais, que se caracterizam pela ultra-atividade,
mesmo após a revogação.
Se a lei
penal deve retroagir para beneficiar o réu, como admitir efêmeras
incriminações, sujeitas a alterações, vindas de medidas provisórias cuja
rejeição importaria na perda de eficácia ab initio? Como garantir
segurança jurídica se um crime pode deixar de sê-lo de uma hora para outra?
O caráter
transitório ou de urgência da medida provisória, em verdade, não consistiu em
óbice à adoção de medidas provisórias incriminatórias e, nessa hipótese, o
Direito Penal apresentou caráter imediatista e não esteve fundado em bases
democráticas. Durante o Governo Collor, editaram-se a Medida Provisória n. 153,
que definia os crimes de abuso do poder econômico, e a Medida Provisória n.
156, ambas de 15 de março de 1990, que instituiu crimes contra a Fazenda
Pública e estabeleceu penalidades aplicáveis a contribuintes, servidores
fazendários e terceiros que os praticassem. Posteriormente, a Lei n. 8.035, de
27 de abril de 1990, revogou as medidas provisórias referidas desde a edição.
A Medida
Provisória n. 111/89 dispunha sobre a prisão temporária e alterava a lei de
abuso de autoridade (Lei n. 4.898/65), criando tipo penal atinente ao
prolongamento indevido da execução da prisão temporária. O Supremo Tribunal
Federal, acionado para controlar a constitucionalidade da medida provisória,
indeferiu medida liminar para suspendê-la (ADIn n. 162-1/DF). Com a conversão
da medida provisória em lei (Lei n. 7.960/89), o pedido foi julgado prejudicado
e pode-se afirmar ter sido criado tipo penal com base em medida provisória.
A questão
pacificou-se a partir da Emenda Constitucional n. 32, que proibiu a edição de
medida provisória em matéria penal. Nada melhor do que a força peremptória da
lei para impor solução definitiva à questão. Contudo, a solução definitiva é
apenas aparente.
Atualmente
se discute a validade de medida provisória em matéria penal favorável ao réu.
Em face da Emenda Constitucional n. 32, a proibição de regulamentação de
matéria penal por medida provisória não comportaria exceções. Porém, o Supremo
Tribunal Federal, antes da alteração introduzida pela EC n. 32, entendeu em
sentido diverso, e nada impede que o entendimento manifestado seja mantido. Em
dezembro de 2002, decidiu ser válida a edição de medida provisória para
beneficiar o acusado: EMENTA: I. Medida provisória: sua inadmissibilidade em
matéria penal – extraída pela doutrina consensual – da interpretação
sistemática da Constituição –, não compreende a de normas penais benéficas,
assim, as que abolem crimes ou lhes restringem o alcance, extingam ou abrandem penas
ou ampliam os casos de isenção de pena ou de extinção de punibilidade. II.
Medida provisória: conversão em lei após sucessivas reedições, com cláusula de
“convalidação” dos efeitos produzidos anteriormente: alcance por esta de normas
não reproduzidas a partir de uma das sucessivas reedições. III. MPr 1571-6/97,
art. 7º, § 7º, reiterado na reedição subseqüente (MPr 1571-7, art. 7º, § 6º),
mas não reproduzido a partir da reedição seguinte (MPr 1571-8 /97): sua
aplicação aos fatos ocorridos na vigência das edições que o continham, por
força da cláusula de “convalidação” inserida na lei de conversão, com eficácia
de decreto-legislativo (BRASIL, RE n. 254.818 – PR).
Se discussões advirão
sobre a possibilidade de medidas provisórias, em matéria penal, serem editadas
em benefício do réu, certo é que, relativamente à criação de crimes e penas,
existe expressa vedação constitucional.
8. A QUESTÃO DOS SUPERADOS DECRETOS-LEIS.
A
controvérsia que gira em torno das medidas provisórias parece nunca ter
assolado suas normas irmãs, os decretos-leis. A Lei das Contravenções Penais é
o Decreto-lei n. 3.688/41. A Parte Especial do Código Penal remanesceu do
Decreto-lei n. 2.848/40, e o Código de Processo Penal vigente é o Decreto-lei
n. 3.689/41. Antes da vigência da Constituição Federal de 1988, o decreto-lei
exercia as funções da medida provisória e dele o Presidente da República fazia
uso em casos de urgência ou de interesse público relevante. Na época em que os
diplomas legais citados vieram ao mundo, o Presidente poderia utilizar
decretos-leis nos períodos de recesso do Parlamento ou de dissolução da Câmara
dos Deputados, se o exigissem as necessidades do Estado, sobre todas as
matérias de competência legislativa da União, excetuadas as modificações à
Constituição, a legislação eleitoral, o orçamento, impostos, instituição de
monopólios, moeda, empréstimos públicos e alienação e oneração de bens imóveis
da União (art. 13 da Constituição de 1937).
Em suma,
o decreto-lei equivalia à medida provisória, com alguns pontos de contato e de
distinção. Ambas as normas pressupõem uma causa urgente para sua edição, são
emanadas do chefe do Poder Executivo, apresentam caráter transitório porque
devem ser convertidas em lei e produzem efeitos desde sua edição. São
dissonantes, porquanto o decreto-lei não era passível de alteração pelo
Congresso Nacional, ao passo que a medida provisória pode ser alterada ou
aprovada em parte. O decreto-lei deveria ser apreciado pelo Congresso Nacional
no prazo de 60 dias, sob pena de aprovação tácita, e a medida provisória
necessita ser votada pelo Congresso Nacional em igual lapso de tempo, embora
sujeita a prorrogação uma vez por idêntico período. Diversamente do que ocorria
com o decreto-lei, a medida provisória depende de expressa manifestação do
Congresso para sua aprovação. O decreto-lei produzia efeitos enquanto vigente
e, se fosse rejeitado, era como se operasse sua revogação, ao passo que a
rejeição da medida provisória produz efeitos ex tunc, ou seja, caso
rejeitada, é como se nunca tivesse existido, e as relações jurídicas originadas
são disciplinadas por decreto-legislativo expedido pelo Congresso.
Os
motivos que a doutrina apontou para reputar inconstitucional a edição de normas
penais incriminadoras sob as vestes de medida provisória são igualmente
aplicáveis aos decretos-leis e, nesse caso, a Lei de Contravenções Penais e os
crimes do Código Penal, adotando-se o raciocínio, seriam incompatíveis com a
Constituição. Não é esse, porém, o entendimento prevalecente.
Sob o
aspecto formal, desde que a norma tenha sido elaborada e aprovada em
consonância com as disposições constitucionais da época, possui validade, salvo
disposição em contrário, e é recepcionada pelas novas constituições.
9. AS LEIS DELEGADAS.
As leis
delegadas são elaboradas pelo Presidente da República, que solicita a delegação
ao Congresso Nacional. Não constitui matéria objeto de lei delegada os atos de
competência exclusiva do Congresso Nacional, os de competência privativa da
Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, a matéria reservada à lei
complementar, nem a legislação sobre organização do Poder Judiciário e do
Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; nacionalidade,
cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais; planos plurianuais, diretrizes
orçamentárias e orçamentos.
Observa-se
que a competência para legislar sobre Direito Penal, particularmente na criação
de crimes e determinação de penas, não foi excluída da matéria que pode ser
delegada ao Presidente da República por meio de resolução do Congresso
Nacional, que especificará seu conteúdo e os termos de seu exercício.
Entretanto, até hoje, não se editou nenhuma lei delegada que verse sobre
matéria penal. Apenas 13 leis delegadas foram promulgadas, 11 delas no ano de
1962 e as duas restantes em 1992. O uso de decretos-leis e medidas provisórias
tem surtido efeitos mais imediatos e resolutivos para o chefe do Poder
Executivo, o que talvez explique o escasso emprego da lei delegada.
10. DECRETOS, PORTARIAS E REGULAMENTOS NÃO CRIAM CRIMES.
Os
decretos visam apenas a regulamentar a lei e, obviamente, não têm vitalidade
jurídica para produzir tipos incriminadores. A lei pode ser considerada uma
regra obrigatória, geral, abstrata e inovadora. Ao decreto falece o caráter
inovador.
Não se
confunde o decreto com o decreto-lei, pois o primeiro é ato emanado do chefe do
Executivo e ostenta esse atributo enquanto em vigor, ao passo que o segundo,
apesar de ter a mesma origem, converte-se em lei após decurso de prazo ou
aprovação pelo Congresso Nacional. O decreto é ato normativo que pode ser
editado nos dias de hoje, mas o decreto-lei, conquanto integre o sistema
legislativo, é figura que não mais compõe o rol de normas passíveis de ser
elaboradas.
Em que
pese não ser atribuição do decreto veicular tipos penais, é comum sua
utilização na seara penal como norma integrante ou de segundo grau, nos dizeres
de Antolisei, que disciplinam a aplicação e os limites das normas
incriminadoras. Os sucessivos indultos natalinos, o mais recente deles, o Decreto
n. 6.294, de 11 de dezembro de 2007, dispõem sobre a concessão do perdão pelo
Presidente da República e a comutação de pena privativa de liberdade.
Portarias,
regulamentos, instruções normativas e outros atos análogos, assim como os
decretos, não são veículos para definir delitos e as respectivas penas.
Igualmente, não se prestam para estatuir restrições a direitos individuais
quando a Constituição Federal assim autorizar. Determinados direitos, além de
demandar reserva de lei para sua restrição, somente podem ser limitados se
autorizados expressamente pela própria Constituição. O civilmente identificado
não será submetido à identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas na
Lei n. 10.054/02. Nenhum decreto, portaria ou ato congênere poderia restringir
direitos nas hipóteses em que a Constituição Federal admite, como forma de se
fornecer segurança jurídica ao cidadão, sem ficar à mercê do arbítrio e das
veleidades das autoridades administrativas.
Entretanto,
decretos, portarias e regulamentos servem como complemento às normas penais
incriminadoras sempre que o tipo penal não for suficientemente exato e depender
de fontes auxiliares para sua perfeita integração. São as notórias normas
penais em branco. Como é sabido, as assim chamadas “leis penais em branco” –
expressão que procede de Karl Binding – são normas penais incriminadoras que,
embora cominem a sanção penal respectiva, seu preceito, porém, porque
incompleto, depende de complementação, expressa ou tácita, por outra norma,
geralmente de nível inferior (decreto, regulamento, portaria etc.), de modo a
precisar-lhe o significado e conteúdo exatos. Leis penais em branco são tipos
penais estruturalmente incompletos.
O
complemento da norma penal em branco pode provir da mesma lei ou de outro ato
legislativo, assim como de ato administrativo. Nesse último caso, avulta-se a
importância de decretos, regulamentos e portarias, no sentido de a norma
incriminadora fornecer a tutela penal a determinadas categorias de prescrições
administrativas, que serão emanadas em relação a contingências futuras, gerais
ou particulares (FRAGOSO, 1994, p. 76).
Exemplo
disso são as normas penais em branco relacionadas aos delitos de tráfico
ilícito de entorpecentes (Lei n. 11.343/06, art. 33) e de omissão de notificação
de doença (CP, art. 269), que remetem a normas inferiores a complementação do
seu significado, determinando quais são as drogas ilícitas que produzem
dependência física ou psíquica e quais são as doenças de notificação
compulsória. A Resolução da Diretoria Colegiada n. 15, de 1º de março de 2007,
elaborada pela Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária –, dispõe
sobre a lista de substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras
sob controle especial. A Portaria n. 5, de 21 de fevereiro de 2006, editada
pela Secretaria de Vigilância em Saúde, estabelece quais são as doenças de
notificação compulsória, entre as quais se incluem cólera, botulismo, doença de
chagas, febre amarela, poliomielite e tétano. Cuida-se de atos administrativos
que desempenham o papel de fonte auxiliar de normas incriminadoras; não
ostentam aptidão para criar crimes, por si sós, mas complementam tipos penais
carentes de significação.
Em nosso
Direito, só se completa o preceito primário. É inadmissível que a lei penal em
branco estabeleça pena genérica, a ser especificada em seus limites por uma lei
não formal. Permitir que a qualidade e a quantidade sejam, também, em branco,
afronta o princípio da legalidade (VARGAS, 1997, p. 18).
Diz-se
que tanto a elaboração de normas penais em branco quanto a utilização de tipos
penais prenhes de elementos normativos devem ser evitados, porque seu uso
indiscriminado diminui a precisão e a firmeza do tipo e alarga a função do juiz
na apreciação da conformidade da conduta com a descrição penal típica, em
prejuízo da segurança jurídica que a tipicidade cerrada tenciona estabelecer.
Entretanto, verifica-se que aumentou consideravelmente o número de elementos
normativos do tipo e de normas penais em branco.
As mais
recentes alterações do Código Penal comprovam o uso constante, pelo legislador,
de elementos normativos ou de normas penais em branco. A Lei n. 11.340/06, que
cominou nova pena ao art. 129, § 9º, do Código Penal, manteve a redação do
dispositivo legal e continuou a tipificar a lesão corporal praticada pelo
agente que se prevaleceu de “relações domésticas, de coabitação ou de
hospitalidade”, patente elemento normativo. A última alteração do Código Penal,
introduzida pela Lei n. 11.466/07, acrescentou o art. 319-A, segundo o qual
constitui crime deixar o Diretor de Penitenciária e/ou agente público, de
cumprir seu dever de vedar ao preso o acesso a aparelho telefônico, de rádio ou
similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo.
O recurso redacional a aparelho “similar” impõe a necessidade de se fazer juízo
de valor dentro do próprio campo da tipicidade que o delito comporta. Quanto às
normas penais em branco, o capítulo que trata dos Crimes contra as Finanças
Públicas (Lei n. 10.028/00) contém delitos que, em sua maioria, dependem de
recurso à lei específica para ter seu conteúdo integralmente preenchido, como é
o caso do art. 359-F: Deixar de ordenar, de autorizar ou de promover o
cancelamento do montante de restos a pagar inscrito em valor superior ao
permitido em lei.
Os atos
administrativos que complementam as normas penais em branco passam a fazer
parte delas e, em decorrência, cria-se a excepcional situação de se atribuir
competência para legislar sobre Direito Penal a órgãos outros que não a União.
Em verdade, não se trata de outorgar funções repressivas a autoridades
administrativas, mas de atribuir a elas faculdade regulamentar cujos efeitos
penais estão imbricados com a própria existência da norma incriminadora. De
qualquer modo, porque a delegação de competência não é algo sempre desejável, o
art. 11, parágrafo único, do Decreto n. 4.176/02 determina que a formulação de
normas penais em branco deverá ser evitada.
As normas
penais em branco, tal como os elementos normativos, causam considerável
indeterminação do conteúdo do tipo penal e comportam, principalmente este
último, um poder de conotação que se expressa em opções e valorações amplamente
discricionárias. Esse poder, contudo, é intrínseco à função judicial e não pode
ser suprimido. É possível que seja reduzido ou disciplinado por meio de
definições mais precisas e particularizadas circunstâncias legais. O juiz não
julga o tipo de crime, que é questão legislativa, mas o delito em concreto, com
suas singularidades, e, portanto, deve compreendê-lo em sua especificidade, o
que faz mediante a iniludível discricionariedade eqüitativa que enseja a
interpretação dos elementos normativos.
11. O CONTEÚDO DAS NORMAS INCRIMINADORAS.
Sempre que nova figura penal é criada,
pululam críticas acerca das imperfeições redacionais, da desproporcionalidade
da pena cominada e da necessidade do surgimento de mais um delito,
especialmente porque se defende a redução da esfera de atuação do Direito
Penal. Procedentes ou não as críticas, a redação de normas incriminadoras não
se faz sem parâmetros ou critérios mínimos. A Lei Complementar n. 95/98 dispõe
sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis,
igualmente aplicável às medidas provisórias e aos demais atos normativos
referidos no art. 59 da Constituição Federal, como também aos decretos e demais
atos de regulamentação expedidos por órgãos do Poder Executivo.
Ao lado
da Lei Complementar n. 95/98, ou melhor, abaixo dela, encontra-se o Decreto n.
4.176/02, que estabelece normas e diretrizes para a elaboração, a redação, a
alteração, a consolidação e o encaminhamento ao Presidente da República de
projetos de atos normativos de competência dos órgãos do Poder Executivo
Federal.
A
respeito da legislação penal, prescreve o art. 11 do aludido Decreto: que o
projeto de lei penal manterá a harmonia da legislação em vigor sobre a matéria,
mediante: I- a compatibilização das novas penas com aquelas já existentes,
tendo em vista os bens jurídicos protegidos e a semelhança dos tipos penais
descritos; e II- a definição clara e objetiva de crimes. Parágrafo único. A
formulação de normas penais em branco deverá ser evitada.
O Anexo I
ao Decreto n. 4.176/02 assenta algumas questões que devem ser analisadas na
elaboração de atos normativos no âmbito do Poder Executivo. Na seara penal,
devem ser identificados alguns pontos na elaboração da norma, in verbis:
• A
pena proposta é compatível com outras figuras penais existentes no ordenamento
jurídico?
• Tem-se
agravamento ou melhoria da situação do destinatário da norma?
• Trata-se
de pena mais grave?
• Trata-se
de norma que propicia a despenalização da conduta?
• Eleva-se
o prazo de prescrição do crime?
• A
proposta ressalva expressamente a aplicação da lei nova somente aos fatos supervenientes
a partir de sua entrada em vigor?
Os pontos
que merecem atenção na redação da norma penal procuram manter a coerência
interna do sistema normativo e prezam pela observância de princípios
elementares do Direito Penal, tal como a irretroatividade da lei penal
prejudicial ao acusado.
12. CONCLUSÕES.
O
princípio da legalidade possui excessiva importância no ordenamento jurídico
brasileiro, sobretudo na seara penal, erigido que foi como direito fundamental
no art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal, e dele se ocupa o primeiro
dispositivo do Código Penal: não há crime sem lei anterior que o defina, nem
pena sem prévia cominação legal. É a pedra angular de todo o Direito Penal
e se expressa por espécies normativas variadas.
Compete à
União legislar sobre Direito Penal, privativamente, e, em regra, o exercício
dessa competência é feito por meio de leis ordinárias. As Constituições
Federais brasileiras nunca trouxeram normas incriminadoras em seu âmago e
similar panorama é visto em relação a tratados e convenções internacionais,
conquanto haja exceções, tal como o Estatuto do Tribunal Penal Internacional,
que tipifica os crimes contra a humanidade, o genocídio e os crimes de guerra.
Leis
complementares, medidas provisórias e decretos-leis são ou foram veículos de
normas incriminadoras no ordenamento pátrio, ao passo que as leis delegadas,
posto que não haja nenhuma vedação, nunca foram utilizadas na criação de crimes
e previsão das respectivas penas. Por seu turno, atos administrativos como
decretos, portarias e regulamentos funcionam apenas como fontes auxiliares para
integrar normas penais em branco.
Independentemente
da espécie normativa formalmente válida à tipificação de infrações penais, mais
importante é zelar para que haja o estabelecimento prévio do que é punível.
Somente se pode emitir juízo de censura sobre o comportamento humano quando, no
momento da conduta, existir consciência da ilicitude conforme marco orientador
preestabelecido: a lei penal que especifica o tipo de injusto.
0 Responses