NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE TERÁ DIFÍCIL APLICAÇÃO PRÁTICA

Por Alneir Fernando S. Maia -  

Prestes a entrar em vigor, o que ocorrerá no mês de janeiro de 2020, a Lei 13.869/2019, que trata do abuso de autoridade, gerou certa polêmica no meio jurídico e político.

Seria essa nova lei uma resposta do Legislativo às ações das autoridades estatais, em especial devido às operações levadas a efeito atualmente ou realmente havia a necessidade de uma nova Lei de Abuso de Autoridade, já que a lei existente é da década de 60?

Deve ser ponderado que, sob esse prisma do controle de condutas abusivas, a tutela penal mostra-se necessária para devolver à coletividade a segurança de somente pessoas serem abordados pelos agentes da área criminal após a prática de algum injusto penal e por força da prática desse ato, evitando-se ações e prisões arbitrárias/exageradas.

A antiga lei que tutelava o assunto (Lei 4.898/65) foi editada no período em que as liberdades no Brasil estavam cerceadas, refletindo a situação do momento e demandando realmente uma renovação.

Nesse contexto surgiu a nova lei de abuso de autoridade.

O destinatário da norma é o agente descrito na lei, assim definido: reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade abrangidos pelo caput deste artigo.

Portanto, o espectro de aplicação da lei é bastante extenso, havendo discussões no sentido de que a norma poderia ser aplicada até mesmo aos jurados do tribunal do júri, pois poderiam ser, dentro do conceito de agente público acima transcrito, sujeito ativo de algumas condutas legalmente previstas.

Ainda dentro das disposições gerais da nova lei, para a sua incidência exige-se o dolo com finalidade específica (especial fim de agir), quando a regra estabelece que constitui crime de abuso de autoridade condutas praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.

O elemento subjetivo descrito no parágrafo acima é de difícil demonstração, principalmente se considerado o fato de que a interpretação da norma beneficia o agente, conforme descreve o artigo 1º, parágrafo 2º: "A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade".

Sobre essa questão já se posicionou o STJ, debatendo a lei anterior:

AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. ABUSO DE AUTORIDADE. ART. 4º, "A", DA LEI N.º 4.898/65. DESEMBARGADOR. DECISÃO JUDICIAL. CONFRONTO COM DECISÃO DE RELATOR DO STF. CONDUÇÃO COMPULSÓRIA PARA LAVRATURA DE TERMO CIRCUNSTANCIADO. QUESTÕES ATINENTES À ATIVIDADE JUDICANTE. ATRIBUTOS DA FUNÇÃO JURISDICIONAL. 1. Faz parte da atividade jurisdicional proferir decisões com o vício in judicando e in procedendo, razão por que, para a configuração do delito de abuso de autoridade há necessidade da demonstração de um mínimo de "má-fé" e de "maldade" por parte do julgador, que proferiu a decisão com a evidente intenção de causar dano à pessoa. 2. Por essa razão, não se pode acolher denúncia oferecida contra a atuação do magistrado sem a configuração mínima do dolo exigido pelo tipo do injusto, que, no caso presente, não restou demonstrado na própria descrição da peça inicial de acusação para se caracterizar o abuso de autoridade. 3. Ademais, de todo o contexto, o que se conclui é que houve uma verdadeira guerra de autoridades no plano jurídico, cada qual com suas armas e poderes, que, ao final, bem ou mal, conseguiram garantir a proteção das instituições e dos seus representantes, não possibilitando a esta Corte a inferência da prática de conduta penalmente relevante. 4. Denúncia rejeitada. (APn 858).

Portanto, como exposto alhures, não será fácil o enquadramento do elemento subjetivo do tipo e a consequente adequação típica.

As condutas tipificadas como crimes são de ação penal pública incondicionada. Resta saber como ficará a persecução penal quando os agentes do Ministério Público, que também podem praticar a conduta abusiva, forem os imputados. Nesse caso, a questão somente se resolverá através de ação penal privada subsidiária, salvo melhor juízo.

Diferentemente do que diz o CPP (artigo 387) acerca da reparação civil dos danos decorrentes da condenação penal que, em tese, constitui efeito automático da sentença, no caso da Lei de Abuso de Autoridade essa reparação somente se dará mediante requerimento do ofendido, nos moldes do artigo 4º da nova lei.

Há a previsão de duas situações no que diz respeito aos efeitos da condenação sobre o cargo ou função ocupados pelo agente, caso haja procedência do pedido. São efeitos: a) a inabilitação do agente para o exercício de cargo, mandato ou função pública, pelo período de 1 (um) a cinco anos; b) ou a perda do cargo, do mandato ou da função pública. Na primeira situação, o agente terá a possibilidade de retornar às suas atividades, mesmo tendo sido condenado por abuso, o que parece ser desarrazoado. A segunda situação já reflete a lei penal atual, como efeito secundário da sentença. De qualquer forma, para que sejam aplicados ambos os efeitos, exige-se a reincidência específica, situação muito difícil de ocorrer, tendo em vista as dificuldades de aplicação dessa lei, diante do elemento subjetivo mencionado nos parágrafos acima.

Sobre as condutas penais propriamente ditas, há várias situações de difícil ou quase impossível adequação típica, sobretudo se levado em conta a amplitude dos termos descritos na norma incriminadora.

Diz a lei que é crime decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais. Termos extremamente vagos para possibilitar que o agente seja responsabilizado. O que seria manifesta desconformidade? Poderia ser o caso de crimes punidos com detenção em que o agente se encontra preso preventivamente, talvez. A situação em concreto vai nos elucidar melhor.

Continua a lei dizendo que incorre na mesma pena a autoridade judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de relaxar a prisão "manifestamente" ilegal; substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando "manifestamente" cabível; deferir liminar ou ordem de Habeas Corpus, quando "manifestamente" cabível.

Primeiramente, qual seria esse prazo razoável, tendo em vista o fato de que os prazos para as autoridades descritas na norma como sujeitos do delito são impróprios? Ademais, a lei exagera no uso da expressão "manifestamente".

Quase nada no Direito é "manifestamente".

Temos vários casos que são levados às últimas instâncias judiciais para que sejam esclarecidos, o que afasta completamente o enquadramento da conduta como "manifestamente". Vejamos o vai e vem e a divergência de opiniões sobre, por exemplo, a prisão por condenação em segunda instância.

"Manifesto" é aquilo que salta aos olhos, evidente, ostensivo. Poucas são situações dessa natureza no trato jurídico.

No caso das prisões em flagrante, cuja não comunicação dentro do prazo legal constitui crime, poderá ser usado como defesa do agente o fato de que a situação das delegacias justifica a demora na lavratura de autos e comunicações, e várias vezes o prazo legal será suplantado, o que poderá gerar, via de consequência, crime.

A demanda pelo clamor midiático de determinados crimes poderá ensejar enquadramento penal do agente público, que não pode expor fisicamente e ou vexatoriamente o detido.

Nesse ponto pode entrar em choque a liberdade de imprensa e o direito de noticiar condutas delituosas, até mesmo pelo seu caráter preventivo e para que novas denúncias surjam, com o direito do detido de não ser exposto.

Situação complexa e paradoxal.

Praticamente inócua a descrição típica do artigo 16 da lei: "deixar de identificar-se ou identificar-se falsamente ao preso por ocasião de sua captura ou quando deva fazê-lo durante sua detenção ou prisão". Será muito difícil ou quase impossível à vítima fazer prova dessa conduta, particularmente no caso em que o agente deixar de identificar-se.

Normalmente as capturas são feitas sem testemunhas ou, se houver testemunha, esta não se atentará para o fato da não identificação do condutor da prisão, em especial pela tensão do momento.

Merece atenção o artigo 25 da Lei 13.869/2019, que diz ser crime: "proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito".

Atualmente estamos vivenciando a obtenção de provas ao arrepio da lei a todo o momento. Até mesmo autoridades públicas estão sendo vítima de provas obtidas de forma manifestamente ilícita.

Tais provas, além de envenenar toda a instrução, podem gerar ao agente público a responsabilização penal.

Arroubos intimidatórios serão coibidos pelas condutas penais descritas nos artigos 27 e 30 da lei, que pontuam ser crime requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa ou dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente.

Aquela expressão “eu te processo” hoje pode ser crime de abuso de autoridade, caso não haja indícios da conduta do suposto criminoso.

Os agentes que gostam de redes sociais e exposição midiática devem estar atentos para a conduta penal de divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado.

Assistimos nos últimos tempos investigados sendo expostos ao público por agentes buscando holofote, sem maiores critérios, com fins meramente pessoais, políticos etc.

A cada dia surgem mitos e heróis da imprensa e das redes sociais montados em exposição indevida de supostos criminosos.

A função do agente público é a manifestação nos autos da investigação, sem exposição desnecessária e indevida.

Pela nova lei é crime negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso a peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível (expressão que pode gerar prejuízo para a ampla defesa constitucional). Logo, toda persecução penal ou condenação que derive da situação acima descrita, em que a defesa não tenha acesso aos autos de investigação, deverá ser automaticamente nula, salvo melhor juízo.

Não pode haver decisão condenatória com base em provas que na sua origem deram ensejo ao crime de abuso de autoridade.

Como as penas são de detenção e muitas são baixas, o procedimento atrai as normas da Lei 9.099/95, ressalvadas as situações de foro especial por prerrogativa de função.

Ante ao que foi exposto, e para fins conclusivos, tendo em vista os inúmeros casos que são veiculados na mídia, além de situações não apresentadas ao público, pela falta de informação ou comunicação dos fatos em um país com dimensões continentais, o filtro do Direito Penal ainda parece certo, quando corretamente desenhado e aplicado, especialmente nesses casos de abuso de autoridade.

Apesar do fato de que algumas vozes tenham se insurgido contra a edição dessa nova lei, percebemos que a norma, na verdade, terá difícil aplicação prática, situação que pode manter o atual estado de coisas, embora os abusos manifestos passaram a ter algum freio.

As autoridades que exercem adequadamente as suas atividades não tem o que temer.

O tempo nos dirá!

 

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