Luiz Flávio Gomes -
O Brasil (uma das dez economias do mundo), por força da sua Constituição de 1988 e depois de 21 anos de ditadura militar, tornou-se (em 1985) novamente uma democracia (com o fim da censura, o retorno da liberdade de imprensa e a eleição dos governantes). Mas nossa democracia nunca deixou de ser puramente formal (muitas promessas e pouca efetividade). Ao mesmo tempo, faz parte da nossa tradição a cleptocracia (leia-se: um país com muita corrupção).
Pode-se afirmar, dessa forma, que o Brasil é uma democracia (formal) e, ao mesmo tempo, uma das cleptocracias mais prósperas do planeta, com corrupção sistêmica, da qual tiram proveito os donos do poder (políticos, altos funcionários, empresários e instituições financeiras).
Democracia é o governo do povo [eleito pelo povo], exercido pelo povo [de forma direta ou indireta] e para o povo (Abraham Lincoln). Quanto mais a democracia esteja de acordo com esse paradigma (ideal), mais substancial ela é. Quanto mais longe disso, menos cidadã ela é.
Na democracia (tão-somente) formal o povo, pelo voto, segundo Schumpeter, legitima alguns dirigentes políticos a tomarem decisões em nome dele (a isso dá-se o nome controvertido de “soberania do povo”).
Essas decisões não obrigatoriamente seguem o programa de governo anunciado nas campanhas eleitorais (particularmente nas democracias formais, mais comprometidos com interesses particulares, que coletivos).
Todo governo é necessariamente composto de poucas pessoas (das oligarquias), que atuam ora em benefício de todos (da coletividade), ora em favor dos interesses corporativos (particulares) deles (do seu bolso, do seu partido) e dos seus associados (empresas, bancos, financiadores de campanhas eleitorais etc.).
Cleptocracia vem do grego kleptos (ladrões) + cracia (governo, poder). Significa, desde logo, ladrões no governo ou governo de ladrões. Mas não só isso. Cleptocracia também é o sistema de governo (corrupto) em que as instituições (políticas, econômicas, jurídicas e sociais) fomentam ou acobertam o enriquecimento ilítico ou politicamente favorecido assim como a impunidade das elites dirigentes da nação.
Governo de ladrões (de corruptos) + cumplicidade das instituições + impunidade das elites dirigentes favorecidas: nisso reside o conteúdo essencial das cleptocracias, onde o exercício do poder não visa (predominantemente) ao bem comum, sim, a apropriação das riquezas coletivas, seja para o enriquecimento particular, seja para a manutenção do poder.
Quais instituições favorecem a corrupção? Algumas leis, a própria democracia (formal) assim como setores da Justiça, da polícia, do Ministério Público, do Executivo, do Legislativo, da mídia, dos intelectuais, dos tribunais de contas, dos demais órgãos de controle, da própria sociedade civil etc. Sem o rompimento do círculo vicioso da cleptocracia, jamais será reduzida a corrupção sistêmica.
O ex-presidente da República José Sarney (por exemplo) foi processado pela Justiça Federal de SP. Seu processo ficou dez anos parado (até alcançar a prescrição). A Justiça cleptocrata é uma grande aliada da corrupção dos poderosos.
O Brasil é uma cleptocracia, em síntese, não só porque conta com ladrões (corruptos) no governo senão também porque suas instituições favorecem as castas dirigentes (políticas, administrativas, econômicas e financeiras), que fazem fortunas e/ou obtêm vantagens (como a impunidade) com a ajuda do “sistema” de governo implantado.
O Brasil não é uma cleptocracia, portanto, apenas porque conta com ladrões no governo (isso todos os governos têm). É considerada como tal porque há todo um “sistema” que dá guarida para as elites dominantes se favorecerem e se enriquecerem indevidamente (preservando-se, tanto quanto possível, a impunidade).
Já na escravidão (nos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX) havia todo um “sistema de governo” (e social) que lhe dava amparo (e que se beneficiava) dessa prática espoliatória desumana e cruel. Mesmo quando proibida legalmente (1850), a escravidão não terminou. Só foi abolida em 1888 (depois de 80 anos de luta pela sua proscrição).
Podemos divergir em relação ao grau de cleptocracia em que vivemos, mas seguramente a quase totalidade do país concorda com a tese de que esse malefício tem que ser combatido com eficácia (ou nunca descobriremos o caminho do crescimento econômico sustentável e do desenvolvimento humano rumo à civilização).
O sistema cleptocrata impede a realização de boas políticas públicas e afeta a credibilidade do país (rapidamente refletida nas agências de classificação internacionais); afasta os investidores, gera gastos públicos exorbitantes, incrementa a dívida pública (e o pagamento de juros) e contribui para a inflação (e recessão).