O CRIME DE VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA E A LEI MARIA DA PENHA

Por Igor de Melo e Alex Rosa Ornelas 

A Lei 14.188/2021, que foi publicada e promulgada no último dia 28, trouxe algumas inovações legislativas no combate à violência contra mulher, entre elas a criação do Programa Sinal Vermelho; o aumento de pena no crime de lesão corporal contra mulher, por razões da condição de sexo feminino, e, enfim, a criação do tipo penal de violência psicológica contra mulher.

Digamos que a principal novidade na referida lei foi a inserção, no Código Penal, do crime de violência psicológica, de modo que nos atentaremos no presente artigo a comentar apenas o novo tipo penal:

"Artigo 147-B — Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação".

Segundo o tipo penal, entende-se por violência psicológica contra mulher, o ato de causar um dano emocional, desde que prejudique ou perturbe o seu desenvolvimento mental; degrade ou controle as suas ações, comportamentos, crenças e/ou decisões.

Sob à ótica dos estudos de gênero e da teoria feminista do Direito, entende-se por violência psicológica "as desvalorizações, críticas, humilhações, gestos de ameaça, condutas de restrições quanto à vida pública, e condutas destrutivas frente a objetos de valor econômico ou afetivo — inclusive de animais de estimação, com a finalidade de desestabilizar a vítima" .

Destaca-se que o novo crime busca assegurar o direito à liberdade individual (pessoal) da vítima, ou seja, o sujeito que praticar violência psicológica contra mulher, estará ferindo o direito à liberdade pessoal que aquela possui. Nesse sentido, Alexandre Morais da Rosa e Ana Luísa Schimdt Ramos:

"É certo que o cerceamento à liberdade acaba sendo uma das consequências do dano emocional, justamente porque as condutas violadoras têm o condão de interferir na capacidade de autodeterminação da vítima. Mas não é a única. Na realidade, o bem jurídico que se busca proteger na incriminação da conduta de causar 'dano emocional à mulher' não se restringe à liberdade, mas à integridade mental da mulher como um todo" .

Numa análise mais ampla, Alice Bianchini, Mariana Bazzo e Silvia Chakian, no livro "Crimes contra Mulheres" (3ª Ed, 2021, pág. 115), apontam as consequências da violência psicológica:

"Os tipos de violência elencadas no artigo 7º da Lei Maria da Penha, em especial a violência psicológica, podem causar também danos à saúde psíquica e emocional das vítimas, dando causa ao desenvolvimento, por exemplo, de transtornos de ansiedade, depressão, ideação suicida, baixa autoestima, isolamento social, pânico, transtornos alimentares, de sexualidade ou do sono, dores crônicas, abuso de substâncias entorpecentes, dentre outros" .

A Lei Maria da Penha, ao ser promulgada em 2006, trouxe taxativamente cinco tipos de violência, que poderiam ocorrer no âmbito da violência doméstica, quais sejam as violências física, sexual, moral, patrimonial e, enfim, a violência psicológica. Ocorre que, nos dizeres de Ana Luísa Schmidt Ramos , praticamente não se tem notícia de apurações criminais no Brasil por ofensa à saúde mental da mulher no âmbito doméstico.

Numa análise detida do Código Penal, percebe-se que há inúmeros crimes que sujeitam-se aos outros contextos de violência, v.g. — o crime de estupro de vulnerável dentro do contexto da violência sexual ou o crime de apropriação indébita dentro do contexto da violência patrimonial etc. Ocorre que, dentro do contexto da violência psicológica, até então não havia nenhuma conduta, em específico, que encaixava-se perfeitamente no referido contexto.

Numa pesquisa realizada pelo "Mapa da Violência" (2015), descobriu-se que houve, em unidades de saúde, 45.485 atendimentos de mulheres vítimas de violência psicológica. Mas, por outro lado, numa pesquisa com base domiciliar, constatou-se a preponderância da violência psicológica sobre os demais tipos de violência, com 1.164.159 relatos, superando inclusive a violência física .

Tais dados se analisados em conjunto com a informação de que praticamente não há relatos de apurações criminais no Brasil por ofensa à saúde mental da vítima, tornam-se ensurdecedores. Sendo assim, é possível afirmar que andou bem o legislador ao tipificar o referido crime, devendo ser visto como um primeiro passo no combate à violência psicológica.

É possível afirmar que a ausência de uma tipificação concreta prejudicava a responsabilização penal dos agressores. Superada tal barreira, a questão agora é a produção probatória.  

O crime em questão consuma-se com a ocorrência do dano emocional à saúde da vítima mulher. Portanto, deixa vestígios e, por tal razão, exige a comprovação da materialidade através da realização de um exame de corpo de delito, especificamente a perícia psicológica. Ocorre que a perícia psicológica não é de simples aferição, devendo seguir as diretrizes que constam no CID-10 [6], outra questão, mas não menos importante, é a ausência de profissionais preparados para a realização do exame.

Noutro ponto, analisando o preceito primário em si, compreende-se que o(a) agressor(a), para responder penalmente por tal crime, deve obrigatoriamente praticá-lo mediante ameaça, constrangimento, humilhação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que causa prejuízo à saúde psicológica e autodeterminação, com o dolo específico de causar dano emocional à vítima.

Ainda, nota-se que o tipo dispõe expressamente que apenas a mulher poderá ser vítima do crime. Por outro lado, com relação ao sujeito ativo, a nova lei não dispõe nenhuma singularização, portanto poderá ser homem ou mulher. Se a vítima for homem, poder-se-á falar do crime de lesão corporal.

Nessa linha, também é possível afirmar que, por mais que a nova lei busque garantir a integridade psíquica e a liberdade pessoal da mulher, destaca-se que não será todo o crime de violência psicológica contra mulher que ocorrerá dentro do contexto da Lei Maria da Penha, pois a sua incidência não é automática.

A Lei Maria da Penha exige a ocorrência do crime baseado por razões de gênero. Nessa linha, os tribunais já se posicionarem a respeito do tema, de maneira pacífica, no sentido de que a motivação de gênero deve ser demonstrada, mas não presumida:

"A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça orienta-se no sentido de que para que a competência dos Juizados Especiais de Violência Doméstica seja firmada, não basta que o crime seja praticado contra mulher no âmbito doméstico ou familiar, exigindo-se que a motivação do acusado seja de gênero, ou que a vulnerabilidade da ofendida seja decorrente da sua condição de mulher. Precedentes" (AgRg no AREsp 1020280/DF, relator ministro Jorge Mussi, 5ª Turma, DJe 31/8/2018).

Portanto, nota-se que o crime em discussão, será sempre contra a mulher, mas poderá ser cumulado com a Lei Maria da Penha ou não. Tal fato se justifica pois o legislador, ao redigir o preceito primário, não especificou "razões de gênero", apenas limitou-se a dizer "dano emocional à mulher". Com a incidência da lei específica, os benefícios penais são afastados e a ação penal deve tramitar no juizado de violência doméstica.

Mas, por outro lado, com o afastamento da motivação gênero, incide-se a norma ordinária e o benefício da suspensão condicional poderá ser aplicada, por se tratar de crime com pena mínima de um ano, nos moldes do artigo 89 da Lei 9.099/95.

Por fim, conclui-se que a criação do tipo penal é um avanço legislativo e condizente com o Estado democrático de Direito e a adequação da legislação interna à Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres, em que pese nos posicionarmos no sentido de não acreditar na criação de tipos penais, para fins de solução dos grandes problemas sociais.

Oportuno registrar que agora a preocupação do legislador e dos operadores do Direito e do Judiciário, deve caminhar no sentido de realizar o devido acolhimento da mulher vítima de violência psicológica, evitando a revitimização, a qualidade técnica das provas e o respeito à cadeia de custódia da prova, nos moldes do Código de Processo Penal e, enfim, o respeito ao due processo of law.

 

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