O descompasso entre lei e sociedade nos crimes contra a dignidade sexual

Erika Thomaka -  

Recentemente, a notícia de uma jovem de 16 anos vítima de estupro coletivo numa comunidade localizada no Estado do Rio de Janeiro trouxe à tona a necessidade de se discutir sobre a, hoje, famosa “cultura do estupro”.

Lembro da minha surpresa ao ouvir a seguinte frase de um professor de Direito Penal ao lecionar sobre os crimes contra a liberdade sexual: “aí a menina ‘tá’ lá, de sainha, o cara chega, vê aquilo e a estupra”.

O nome já diz: “cultura do estupro”. Trata-se, portanto, de um problema cultural, presente em todos os níveis sociais, que, diga-se, por muito tempo foi chancelado pelo Estado.

O Código Penal brasileiro (Decreto-Lei 2.848/1940), até o ano de 2005, listava, em seu artigo 107, como causas extintivas da punibilidade, respectivamente, em seus incisos VII e VIII, o “casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes”, a saber os crimes contra a liberdade sexual, como o estupro, o, à época, crime de sedução, a corrupção de menores e o, também à época, crime de rapto, bem como o “casamento da vítima com terceiro”, nos crimes anteriormente referidos, se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeresse o prosseguimento do inquérito policial ou da ação penal no prazo de 60 dias a contar da celebração do casamento.

Equivale a dizer que, aproximadamente há 11 anos, tempo historicamente recente, em caso de crime de estupro, por exemplo, se o agressor casasse com a vítima, este não mais poderia ser punido pelo Estado. Por conta disso, muitas vítimas eram obrigadas por sua família a se casarem com seus agressores, pois isso as livraria da desonra e lhes concederia a reparação do mal que lhes causaram tais agressores. Os agressores, por óbvio, tinham interesse no matrimônio, pois este os liberava das sanções penais.

Assim, somente em 2005, com o advento da Lei 11.106/05, os referidos incisos do artigo 107 do Código Penal foram revogados. Esta lei trouxe outra importante alteração no que concerne ao tratamento penal dos crimes contra a liberdade sexual: deu nova redação aos tipos penais previstos nos artigos 215 — posse sexual mediante fraude — e 216 — atentado ao pudor mediante fraude -, extinguindo a expressão “mulher honesta” (que, nas palavras de Nelson Hungria, seria a mulher que “ainda não rompeu com o minimum de decência exigido pelos bons costumes”.

Nos exemplos aqui elencados, vê-se que a discussão acerca dos crimes sexuais estava atrelada a discussões morais, aos costumes da sociedade da época, mais especificamente, ao comportamento que essa sociedade esperava da dita “mulher honesta”.

É evidente, contudo, que caminhou bem o legislador ao extinguir o termo “mulher honesta” do Código Penal. Primeiro, porque se tratava de elemento normativo do tipo de difícil definição (quem é a mulher honesta?). Segundo, porque não era em nada razoável que a experiência sexual da mulher fosse elemento para se aferir se poderia ela ou não ser vítima dos referidos delitos.

Neste sentido, Guilherme de Souza Nucci, afirmava que “(...) se a razão da existência do tipo penal do artigo 215 é proteger a vítima que, fraudulentamente, entrega-se a uma pessoa, crendo estar mantendo relação com outra (...), o correto seria proteger qualquer pessoa – e não somente e mulher honesta”.

Em 2009 entrou em vigor a Lei 12.015, responsável por alterar a denominação dos delitos previstos no Título VI, Parte Especial, da legislação penal brasileira de “crimes contra os costumes” para “crimes contra a dignidade sexual”, numa clara tentativa de afastar a discussão moral que permeia tais crimes da jurídica.

Apesar desta lei já estar em vigor há quase sete anos, o que se verifica é que permanece o esforço de culpar a vítima, mulher, que não se enquadra na descrição de “honesta”, quando se está diante de uma situação atentatória à dignidade sexual.

Embora o crime de estupro, previsto nos artigos 213 e 217 (em caso de vulnerabilidade da vítima) do Código Penal, jamais tenha exigido em seu tipo penal que a mulher fosse honesta para que se configurasse o delito, tal exigência sempre foi e é até hoje feita pela população.

Nota-se, portanto, que, hoje, pelo menos legalmente, não se transfere mais a culpa pelo estupro à mulher. A lei evoluiu. Resta, contudo, a sociedade acompanhar a evolução legal.

 

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