Por Daniel Gerber -
A hermenêutica jurídica é uma ciência que, aplicada a qualquer ramo do Direito, leva à construção da jurisprudência pelos tribunais visando a aplicação da lei da maneira mais equânime. Posta a óbvia premissa, tem-se a conclusão lógica de que seu fim último é a construção da segurança jurídica.
O preâmbulo aqui nos ajuda a jogar luz sobre a sempre recorrente questão do foro por prerrogativa de função, tema acalorado em discussões jurídicas e mesmo entre leigos, principalmente após a eclosão da "lava jato" e de outros tantos escândalos que atingem autoridades públicas.
Em 2018, ao analisar o caso de maneira definitiva na questão de ordem na Ação Penal 937, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a reserva de foro só valeria para atos e fatos ocorridos ao longo dos mandatos daqueles que a detém. Logo, crimes cometidos antes da posse deveriam ser remetidos à primeira instância, o que atendeu a um princípio de razoabilidade e equidade, posto que, se um cidadão comum comete um crime antes de deter certas funções públicas, não pode usar a política com o fito de obter tratamento privilegiado.
Como seria de esperar, a decisão vem, em efeito cascata, reformulando a jurisprudência dos demais tribunais. No dia 15 de maio, por ampla maioria dos votos, o Superior Tribunal de Justiça voltou a acolher a mesma tese da questão de ordem na AP 937, desta vez ao julgar o atual governador do Piauí, Wellington Dias.
Dias é acusado pelo Ministério Público Federal de ter cometido crime por não ter tomado providências que evitassem o rompimento de uma barragem no Piauí em 2009, penúltimo ano de seu segundo mandato de governador (2007-2010). Após terminar o mandato, elegeu-se senador, voltando ao cargo de governador em 2015 e sendo reeleito, em 2018, para o novo mandato que atualmente cumpre.
Em questão de ordem nesta ação penal, a relatora do caso, ministra Nancy Andrighi, definiu que Dias deverá ser julgado em primeira instância. Alegou, para tanto, que o intervalo entre os mandatos — isto é, o período em que o réu foi senador — não pode ser considerado para estender a prerrogativa de foro que caberia ao mandato de governador do período entre 2007 e 2010.
Conhecida por posturas duras e firmes, a ministra foi taxativa: “O foro por prerrogativa de função deve se harmonizar com os princípios estruturantes da República e da igualdade, a fim de garantir a efetividade do sistema penal e evitar a impunidade e a configuração de forma de odioso privilégio”.
Em seu voto, ela argumenta que “o foro por prerrogativa de função deve observar os critérios de concomitância temporal (...) entre a prática do fato e o exercício do cargo”. E, ao concluir, explica que o “término do mandato acarreta, por si só, a cessação do foro por prerrogativa de função em relação ao ato praticado nesse intervalo”.
Essa decisão do STJ deve ser espelhada em outros casos que tramitam na corte. Um deles, pouco noticiado tanto pela imprensa especializada e menos ainda pelos grandes jornais e portais de internet, diz respeito ao governador do Amapá, Waldez Goés, e a todos os demais gestores públicos em crise.
É uma ação penal que poderá trazer consequências administrativas para vários estados, pois diz respeito aos atrasos dos pagamentos aos bancos dos valores retidos em empréstimos consignados tomados por servidores públicos.
No segundo mandato de Waldez como governador (2007-2010), o Amapá viveu séria crise financeira. Para não atrasar salários e despesas correntes, como pagamentos à rede de saúde, atrasou o recolhimentos aos bancos.
Por conta disso, o governador foi alvo de uma ação por peculato — desvio de dinheiro por funcionário público. É uma questão controversa, pois não havia provas de desvios e Waldez foi absolvido em primeira instância. O MP recorreu, e o caso foi parar no STJ porque, após um intervalo de quatro anos, ele voltara a ser governador (2015-2018).
Ao ser eleito novamente, Waldez Góes teve o “azar” de ter o caso remetido ao STJ, numa época anterior ao julgamento da questão de ordem na AP 937. Frise-se que todos os demais corréus na ação inicial do MP do Amapá, como até mesmo o vice-governador que assumiu quando de sua desincompatibilização para concorrer ao Senado, foram absolvidos, uma vez que o Tribunal de Justiça daquele estado entendeu que não havia fato típico para configurar o crime de peculato — afinal, não houvera desvios.
O STJ vai analisar o caso de maneira definitiva neste mês. Deverá, como se espera da boa hermenêutica jurídica, fazer com que o atual governador do Amapá tenha o caso avaliado sem as prerrogativas de foro, pela Justiça de seu estado. Uma decisão diferente violaria a razoabilidade da segurança jurídica e seria muito atípica, para não dizer teratológica.