Por André Esteves de Andrade -
Não vou falar da suprema incongruência do defensor do AI-5 e da ditadura se valer justamente da liberdade de expressão para realizar sua defesa quando é preso. Não irei incidir na análise do mérito dos impropérios e devaneios constantes do vídeo liberado pelo deputado. Não pretendo, tampouco, fazer comentários à arrogância demonstrada quando solicitado que colocasse a máscara para a realização do exame do corpo de delito, cuidado essencial nestes tempos de pandemia, tendo faltado pouco para sair a famosa frase, fruto da soberba de alguns se acharem melhores do que o "resto": "Você sabe com quem está falando?" (Tá bem, tá bem, prometi que não ia falar!).
O propósito destas linhas é discorrer sobre a constitucionalidade da prisão, frente às imunidades parlamentares.
A Constituição Federal defere aos congressistas a imunidade material e formal. A material, tornando-os invioláveis civil e penalmente por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. Trata-se do freedom of speech, garantindo ao parlamentar a liberdade de expressão para expor suas ideias e exercer sem temor a atividade legislativa. No tocante às formais, possuem, além da prerrogativa de foro e da possibilidade de sustação do processo penal, a garantia de somente serem presos em caso de flagrante por crime inafiançável ou havendo sentença transitada em julgado. Importa, portanto, em freedom from arrest relativa (incoercibilidade pessoal relativa, na denominação utilizada pelo STF). Mesmo nesse caso, a casa do parlamentar preso (Câmera dos Deputados ou Senado Federal) deve receber os autos em 24 horas para que resolva por maioria sobre a prisão .
A prisão em flagrante do deputado federal Daniel Silveira foi determinada pelo ministro Alexandre de Morais, no inquérito 4781, na última terça-feira (16/2). A decisão foi proferida em razão da publicação, na mesma data, de vídeo no YouTube no qual Daniel, no entender do ministro, profere diversas ameaças e ofensas à honra de integrantes da Suprema Corte, além de instigar medidas violentas contra a vida e segurança dos mesmos, importando em ataque ao Estado democrático de Direito.
Tal decisão fere a imunidade material e formal do parlamentar?
No tocante ao freedom of speech sobre opiniões, palavras e votos, não se entende aplicável ao caso em questão (apesar de alegado pelo próprio deputado, em arroubo de esquizofrenia, já que o próprio AI-5 que tanto valoriza autorizava o presidente a decretar recesso do Congresso Nacional e legislar por si mesmo, inclusive cassar o mandado eletivo federal — o que indubitavelmente faz surgir a pergunta se ele realmente sabe o que defende! Ok, ok, combinei que não ia entrar nesse vespeiro...). Isso porque se trata de garantia para o correto e livre exercício da função legislativa, e não como privilégio do ocupante do cargo para realizar ataques de ódio contra instituições democráticas, utilizando termos chulos e agressivos... Tá, você já entendeu. O tema, inclusive, não é novo no STF, que compreende somente ser aplicável a inviolabilidade se a manifestação de pensamento tiver relação com as atribuições do mandato. Tal pertinência com o cargo é presumida se o fato ocorre dentro da casa legislativa, mas já houve ocasião em que mesmo o crime sendo cometido dentro da Câmera dos Deputados, entendeu o Supremo que não haveria a imunidade material na ofensa manifestada por Jair Bolsonaro, então deputado federal, a colega da casa legislativa, dizendo que somente não a estupraria "porque ela não merece", em entrevista disponibilizada na internet, mas gravada em seu gabinete.
Efetivamente, analisando-se o caso em questão, não se entende, por mais benevolente interpretação que se faça, como se pode concluir que as ameaças e afrontas de Daniel Silveira possam ser interpretadas como tendo relação com o exercício da função de um parlamentar federal.
Passamos, assim, pelo filtro da imunidade material. E a formal?
Os requisitos aqui são: 1) o estado de flagrância; e 2) o crime inafiançável. Aqui é que a testa começa a ficar enrugada.
Segundo a decisão, a conduta do deputado no vídeo tem subsunção a diversos delitos da Lei nº 7.170/83 (Lei de Segurança Nacional), e haveria o flagrante, já que o mesmo continuava disponível nas redes sociais, encontrando-se em "infração permanente". Aí, com a devida venia, não dá para concordar. Ora, a vingar tal tese, estando um vídeo em que realizados crimes contra honra na internet por um ano, haveria flagrante durante todo esse ano? Haveria permanência da consumação, tal qual ocorre com um sequestro? E, para entornar de vez o caldo, é possível entender que a ofensa realizada em um jornal ou revista, ou mesmo a incitação à violência, continua sendo consumada enquanto existirem para serem lidos? Fosse assim, temos uma quantidade infindáveis de crimes que continuam em consumação há décadas, enquanto existir a edição impressa do jornal e revista em que foram publicados! Nesse caso, embora se concorde com o mestre Lenio Luiz Streck no sentido de que a leitura do Direito de hoje não pode ser o mesmo de décadas atrás, face as alterações da sociedade e as próprias inovações tecnológicas, não se pode aceitar que crimes decorrentes da manifestação do pensamento possam ter a consumação protraída no tempo simplesmente porque ficaram registradas e estão disponíveis para serem lidas ou vistas. Isso é tanto verdade para os folhetins dos anos 50 quanto pela difamação proferida pelo Facebook, que fica marcada na linha do tempo indefinidamente (embora pudesse ser apagada pelo emissor a qualquer tempo).
Cabe ressaltar que em outras ocasiões já utilizou o STF de interpretações peculiares para entender a permanência da situação de flagrante. Em 2015, foi determinada a prisão de do senador Delcídio do Amaral com base em uma suposta flagrância do crime de organização criminosa , em entendimento severamente criticado por parte da doutrina .
No entanto, apesar de toda essa argumentação, entendo existente flagrante na hipótese (quase de forma contraditória, embora menos arrojado do que nosso amigo deputado, o qual se agarra a liberdade de expressão tal qual a tábua de salvação, mas aclama o AI-5...). Isso em razão de outro fundamento da decisão do ministro Alexandre de Morais: conforme o artigo 302, I e II, do CPP , encontra-se em flagrante delito não só quem está cometendo a infração penal, mas também quem acaba de cometê-la. Efetivamente, o vídeo havia sido divulgado na mesma data em que proferida a decisão, podendo ser legalmente considerada a situação de flagrância, apesar da existência de óbvias críticas.
Mesma sorte não socorre ao requisito de "crime inafiançável".
A Constituição prevê como inafiançáveis os seguintes delitos: racismo, ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo, tortura e os crimes hediondos. Não se encontra entre eles nenhum dos crimes da Lei de Segurança Nacional indicados pelo ministro, nem mesmo realizando interpretação megaelástica para incluir as palavras do deputado na "ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático", tanto que não foi esta a argumentação utilizada na decisão que determinou a prisão. A fundamentação foi que estavam presentes na hipótese as circunstâncias que permitem a prisão preventiva — logo não caberia fiança, nos termos do artigo 324, inciso IV, do CPP
Anticlímax total, eu sei, mas a tese não é nova. Já havia sido utilizada pelo STF quando da prisão do senador Delcídio do Amaral, acima citada. Mas isso não afasta sua incorreção, já que a constituição permite a prisão em flagrante de "crime inafiançável", e não quando presentes circunstâncias do caso concreto que afastam a possibilidade da fiança. Crime inafiançável é aquele que, abstratamente, em toda situação, não comporta fiança, existindo diversas hipóteses previstas na constituição. Interpretação ao contrário faz letra morta da primeira parte da incoercibilidade pessoal relativa, posto que basta ao STF entender cabível a preventiva para dizer que é inafiançável, logo não há nenhum freedom of arrest. E, diga-se de passagem, nem é necessário o artigo 394, IV, do CPP para tanto, já que é evidente, por pura lógica, que, se é caso de preventiva, não cabe fiança. Seria melhor, então, a Constituição ter disposto que cabe a prisão em flagrante do parlamentar quando o STF entender que cabe, atendendo logo a análise casuística e relativizada da Constituição por vezes feita pela Suprema Corte (ainda exceção, se diga, uma vez que entendo o STF como um dos poucos bastiões que possuímos de moralidade e justiça), acobertado em rubricas como "mutação constitucional" e "ponderação de interesses".
A despeito da verdadeiramente inaceitável agressão realizada pelo deputado federal não só a pessoa dos ministros, mas ao STF, a separação dos poderes e ao próprio Estado democrático de Direito, a resposta deve ser aplicada dentro dos exatos limites da legalidade, sem a utilização de, data maxima venia, "gambiarras" jurídicas para suplantar garantias deferidas pela Constituição. É evidente que a atuação de Daniel Oliveira foi nefasta e necessitava ser controlada, mas havia outros meios para tanto, como a retirada do vídeo da internet, fixação de multa e até a punição por falta de decoro parlamentar.
Não se pode, como se costuma falar, quebrar a árvore para colher os frutos, assim como não podem os fins justificar os meios, muito menos se afrontar a ordem constitucional sob o escopo de protegê-la.