Por Caroline Amedore -
A observação da larga utilização do instituto da colaboração premiada pelos órgãos de persecução criminal, notadamente no âmbito penal empresarial, vista constantemente na rotina da advocacia criminal, conduziu à necessidade de se fazer uma breve pesquisa sobre a aplicação e percepção do instituto pela doutrina e tribunais pátrios, bem como uma concisa explanação acerca do que parece ser o mais problemático e (até perigoso) sobre o tema.
Veja que, apesar da possibilidade de se entregar alguém em troca de benefícios ter sido prevista anteriormente no ordenamento pátrio, no "Livro V das Ordenações Filipinas" [1], o instituto da colaboração premiada, nos moldes como é conhecido hoje, foi introduzido pela Lei nº 8.072/90 (crimes hediondos), e posteriormente regulamentado por vários outros diplomas legais [2].
A colaboração premiada possui múltiplas feições, mas pelo prisma do colaborador consiste, basicamente, em dar-se a este a oportunidade de "trocar" informações relevantes sobre ações criminosas por benefícios que podem ser, nos termos do caput do artigo 4° da Lei 12.850, a concessão de perdão judicial, redução de até dois terços da pena privativa de liberdade ou a substituição desta por restritiva de direitos.
A lei prevê ainda, no §4° do referido artigo, a possibilidade de um "acordo de imunidade", ou seja, o Ministério Público deixar de oferecer denúncia em face do colaborador, desde que preenchidos dois requisitos: que não seja o colaborador líder da organização criminosa e que tenha sido o primeiro do grupo a romper com o silêncio e prestar a colaboração.
Tratando-se de um instituto complexo e multifacetado, imperioso buscar e definir sua natureza jurídica, para que seja possível limitar seu campo de aplicação. Embora seja um instrumento que beneficie as investigações criminais e a pessoa do colaborador, ao ser mal utilizado, pode suscitar prejuízos irreparáveis aos demais réus e a toda estrutura do sistema penal, visto que aumenta de maneira desproporcional o poder da acusação na persecução penal, desequilibrando o contraditório e a ampla defesa.
De acordo com Tomazini é possível dizer que a "colaboração premiada admite uma natureza jurídica tríplice, ou seja, que sua essência jurídica possui fundamento em três ramos distintos do Direito: processual, material e de negócio jurídico" [3].
Esse entendimento sobre a natureza jurídica do instituto é primordial, pois norteará sua aplicação, delimitando o objeto e espaço em que recairá o instituto de modo a se preservar os direitos dos envolvidos.
Inicialmente, a natureza jurídica processual virá da compreensão do instituto como meio de obtenção de prova. Já a natureza jurídica material levará em conta as consequências jurídico-penais que o acordo poderá trazer ao colaborador na dosimetria da pena, bem como aos coimputados delatados em eventual condenação. Por último, a natureza de negócio jurídico, que decorre do entendimento de que o acordo consiste em um ajuste de vontades entre as partes: a do colaborador de receber o prêmio estipulado na lei, e a da autoridade de obter informações sobre crimes.
O acordo pode ser firmado tanto entre o acusado e o Ministério Público, durante o processo de conhecimento ou na fase de execução, como entre o investigado e o delegado de polícia, na fase de inquérito, com a ciência do Parquet. Em todos os casos deve ser homologado pelo juiz, que verificará as formalidades e a legitimidade do acordo.
Os requisitos observados pelo magistrado para a homologação são: 1) efetividade, que se dá com: a) identificação dos outros agentes e crimes cometidos; b) informações sobre a estrutura hierárquica e divisão de tarefas da organização criminosa; c) prevenção de novos delitos; d) recuperação total ou parcial do produto dos crimes e/ou; e) localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada. O texto legal confere a esses resultados, descritos nos incisos do artigo 4°, condição alternativa, não cumulativa. Sendo assim, a obtenção de apenas um, ou qualquer um deles, é capaz de dar ensejo à formalização do acordo; 2) voluntariedade, e nesse ponto destaca-se a diferença feita pelo então ministro Néfi Cordeiro [4] entre "voluntariedade" e "espontaneidade". Em seu entendimento, "no ato espontâneo a iniciativa de praticá-lo emana do próprio colaborador, ou seja, advém unicamente da vontade do agente sem a interferência de terceiros. Já no ato voluntário não se exige que a ideia de realizá-lo tenha partido do próprio agente, sendo irrelevante a causa que o motivou. Não se exige a espontaneidade no ato da delação, vez que o legislador, intencionalmente, utilizou a expressão 'voluntariamente', ao invés de 'espontaneamente".
Apesar da semelhança entre os institutos da delação premiada, colaboração premiada, acordo de leniência, confissão espontânea e whistleblowing, eles não se confundem. A delação é apenas uma das espécies de colaboração (gênero) previstas pela lei, e consiste em confessar a responsabilidade pelo crime e, principalmente, incriminar outros agentes, revelando nomes de partícipes, coautores e líderes do grupo criminoso.
A colaboração, dessa feita, pressupõe outras formas de cooperação (não só a delação), sendo que o acusado (ou investigado) se compromete a fornecer informações úteis, verídicas e preferencialmente novas sobre toda a estrutura da organização, produtos dos crimes ou qualquer outra contribuição efetiva mencionada no artigo 4° da lei 12.850/13.
O acordo de leniência, assim como a delação, envolve confissão dos atos praticados e possibilidade de extinção da punibilidade do agente. O que os difere é que a delação é realizada no âmbito penal, exclusivamente por pessoas físicas e homologadas pelo Poder Judiciário, enquanto o acordo de leniência é celebrado entre empresas ou pessoas físicas a elas vinculadas e por órgão administrativo do Poder Executivo, no caso o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Em nossa visão, nesses casos, a celebração da leniência faz desaparecer o delito em relação aos administradores signatários do acordo, impedindo-se o processamento na esfera criminal. Isso ocorre porque o Direito Penal, reputado como ultima ratio, deve ser utilizado apenas de forma residual, quando as outras áreas do Direito não forem capazes de eliminar os ilícitos em seus campos de atuação. Com o desaparecimento do ilícito cível ou administrativo, por exemplo, desaparece, por consequência, a residual materialidade delitiva.
Na confissão espontânea, circunstância atenuante prevista pelo artigo 65, inciso III, alínea "d" do Código Penal, o agente também reconhece sua culpa, mas o benefício que terá não é passível de negociação. A redução da pena, apesar de ficar a critério do juiz da causa, não pode se dar abaixo do mínimo legal, nos termos da Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça.
Por sua vez, o whistleblowing — na linguagem popular o "dedo duro" — é, em suma, aquela pessoa que, tendo conhecimento de crime ou qualquer irregularidade em uma empresa, fornece informações às autoridades ou superiores hierárquicos sobre os fatos — por óbvio, sem implicação em assunção de culpa. Essa é uma figura controversa fomentada pelas imposições de autovigilância e compliance no cotidiano laboral, fazendo com que muitas empresas criem as chamadas hotlines para que aqueles que, sabendo ou desconfiando de irregularidades na corporação possam informar seus superiores, o que, consequentemente, pode evitar a responsabilização da companhia por atos de funcionários.
Interessante visualizar que, ao que parece, o artigo 16 da Lei 8.137/90, que reza "qualquer pessoa poderá provocar a iniciativa do Ministério Público nos crimes descritos nesta lei, fornecendo-lhe por escrito informações sobre o fato e a autoria, bem como indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção", em uma análise mais atual, parece normatizar exatamente a figura do whistleblowing. Na medida em que oportuniza pessoas não envolvidas com as práticas criminosas do grupo a comunicarem fatos às autoridades, a lei acaba institucionalizando uma espécie de whistleblower no Brasil.
Apesar de não ser comum um terceiro, alheio à organização criminosa, ter conhecimento de informações a respeito do grupo criminoso, e tampouco fornecê-las à autoridade persecutória, a lei não exige necessariamente que o indivíduo integre a organização para figurar como colaborador. Isso viabiliza que o "cooperador eventual", que é a pessoa que se aproxima do grupo para delitos específicos, postule o benefício — desde que forneça às autoridades dados relevantes sobre a atuação e os membros da organização.
Quanto à viabilidade da colaboração premiada da Lei 12.850/13 ser utilizada fora do âmbito da criminalidade organizada, tem havido em nossa visão equívocos por parte de órgãos persecutórios e jurisprudência. Vide que o Ministério Público, a jurisprudência e parte da doutrina entendem ser possível a extensão da aplicação da colaboração prevista na lei de organização criminosa para as demais searas, distantes dos crimes associativos de organização criminosa, fazendo-a por analogia.
Isso no entendimento de que a colaboração seria não apenas um instrumento investigativo, mas também um meio de obtenção de prova eficiente. Nas palavras de Badaró [5]: "De todos os regimes legais de delação premiada, o mais completo e detalhado é o da Lei das Organizações Criminosas. Sua aplicação, contudo, não será limitada à 'colaboração processual' no âmbito da criminalidade organizada. Terá incidência também, por analogia, a todo e qualquer caso de delação premiada".
Essa linha entende que, uma vez que a lei em questão aumentou os benefícios concedidos ao colaborador e ampliou o rol de resultados para a concessão de possíveis benefícios, ela seria uma lei mais benéfica e, portanto, poderia ser utilizada de forma analógica em relação a todos os crimes previstos no Código Penal e na legislação extravagante. Vide que o pretório, no julgamento do REsp 1.109.485 [6], entendeu que, ao disciplinar a matéria, o legislador não direcionou o instituto a nenhum crime específico, não cabendo ao intérprete restringir sua utilização, visto que a lei, em tese, permitiu o alastramento da concessão do beneplácito para todo o direito pátrio, possibilitando seu cabimento em qualquer modalidade de crime.
Data máxima vênia, é de se discutir o mencionado entendimento. Isso pois, a análise sobre a possibilidade do emprego da analogia nessas situações deve ser feita com base na classificação jurídica da norma, isto é, se seria de direito material ou processual [7].
Em relação ao aspecto processual, apesar do artigo 3º do Código de Processo Penal permitir o uso de analogia, essa aplicação deve ser feita apenas em benefício do réu. Todavia, o colaborador não pode ser o único personagem a ser considerado neste contexto. Deve-se levar em conta que, por mais que a extensão da colaboração premiada da Lei 12.850, por analogia, possa beneficiar àquele que presta a colaboração, também acaba por prejudicar os outros réus, no caso, os delatados. Sendo assim, o uso da analogia acarretaria prejuízo aos demais acusados, o que é vedado no Direito Penal pátrio.
No mais, no que tange ao caráter material do instituto da colaboração premiada, é válido compará-lo a outros instrumentos despenalizadores, como a transação penal, por exemplo. O entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal é de que os institutos despenalizadores são dotados de natureza jurídica material [8] — na medida em que geram ao autor do fato a extinção de sua punibilidade, depois de cumpridas as condições durante o período de prova. Por essa ótica, resta inequívoco o caráter material da colaboração, já que, assim como os demais institutos despenalizadores, tem como consequência jurídica a hipótese de extinção da punibilidade do agente.
Assim também entende Ardenghi, que afirma que a definição da natureza jurídica do instituto estaria relacionada à compreensão das causas de liberação da pena, sendo identificada como de Direito Penal material [9]. Evidente, pois, a impossibilidade de ser utilizada de forma analógica quando da aplicação de leis que não a preveem, em razão do princípio da legalidade (artigo 5º, inciso II, CF).
Portanto, forçoso que se repense — e seja superado — o entendimento firmado pelos tribunais superiores sobre natureza jurídica singular de "negócio jurídico processual" do acordo de colaboração premiada, posto se tratar de instituto de "regime jurídico especial", na medida em que pode apresentar cláusulas penais, processuais penais, extrapenais, e de controle [10], além de ser capaz de gerar consequências (negativas) não apenas para o colaborador, mas para todos os outros réus envolvidos (delatados).
Assim, sendo um instituto previsto na gravíssima lei de organizações criminosas, não se mostra razoável que sua aplicação ocorra indiscriminadamente, de maneira analógica, a toda e qualquer situação — fora do âmbito da lei que a prevê, frente a um ordenamento jurídico que veda expressamente a utilização de analogia in malam partem.