Por Murilo Strätz -
Conforme noticiado pela ConJur [1], a audiência pública designada pelo ministro Luiz Fux para os dias 25 e 26 deste mês contará com nada menos que 68 participantes, entre membros do poder público e da sociedade civil, cujas opiniões técnicas sobre os dispositivos legais impugnados nas ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 serão compartilhadas com o Supremo Tribunal Federal e a sociedade civil, com transmissão ao vivo pela TV e Rádio Justiça e pelo YouTube.
Tais participantes, selecionados de acordo com critérios de representatividade, especialização técnica, expertise e diversidade de opiniões, terão a oportunidade de expor seus multifacetados pontos de vista acerca das importantes inovações trazidas pela Lei nº 13.964/2019 (também chamada de pacote "anticrime") [2], das quais se destaca, para os fins do presente artigo, a instituição do juiz de garantias, cuja previsão está suspensa há quase dois anos por decisão unipessoal do ministro Luiz Fux, a pedido da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).
O inaudito interesse despertado por esse processo nos mais diversos setores ligados ao Direito é autoexplicável, já que por meio dele o Supremo definirá o modelo de persecução penal em vigor no Brasil. Pautado para ocorrer no dia 25 de novembro [3], o julgamento manterá, ou não, a decisão precária do ministro Fux e proclamará se os dispositivos impugnados pelos órgãos de classe da magistratura e do Ministério Público são constitucionais ou não. O impacto dessa decisão será enorme no desenho institucional e no funcionamento de todos os órgãos ligados ao aparato repressivo do Estado.
Após ser parido pelos representantes do povo no Congresso Nacional, com o aval do presidente da República, o instituto do juiz de garantias passará por um segundo parto, dessa vez a cargo dos ministros do Supremo. Ou a criação legal renascerá das cinzas, como fez Fênix, ou será definitivamente abortada pelo controle contramajoritário.
Se a figura do juiz de garantias for reputada constitucional, cada procedimento criminal passará a ser conduzido por dois juízes, um que atuará durante a fase investigatória (que se encerrará com o recebimento da denúncia, inclusive, segundo o artigo 3º-C do Código de Processo Penal ou CPP) e outro que presidirá a fase processual propriamente dita. De acordo com Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, 19 países da América Latina já alteraram suas legislações para adequar seus sistemas processuais penais ao modelo acusatório, que já vigora há muito tempo tanto em regimes de common law quanto em regramentos civilísticos (Europa continental) [4].
Segundo Aury Lopes Jr., o sistema acusatório é um imperativo do moderno processo penal, frente à atual estrutura social e política do Estado, por assegurar a imparcialidade do juiz sentenciante e garantir tratamento digno ao acusado, que não terá mais diante de si "a figura do juiz 'apaixonado' pelo resultado de seu labor investigador e que, ao sentenciar, olvida-se dos princípios básicos de justiça, pois tratou o suspeito como condenado desde o início da investigação" [5].
O instituto do juiz de garantias veio para mitigar os efeitos negativos da heurística da confirmação, um dos vieses cognitivos mais importantes no comportamento de juízes. Ao tratar dos vieses cognitivos estudados pelas neurociências, Raymond S. Nickerson já apontava no final dos anos 90 que, ao lado das heurísticas da disponibilidade e da representatividade, o viés de confirmação é aquele segundo o qual o processo intelectivo utilizado pela mente humana para interpretar informações tem uma tendência natural, conforme pesquisas empíricas, de confirmar as crenças e preferências prévias do intérprete sobre o tema objeto da interpretação [6].
Cristiano Zanin Martins e Graziella Ambrosio apontam, ainda, para o risco de "visão de túnel" a que está sujeito o magistrado competente para processar e julgar a ação penal, após ter participado da fase investigatória, verbis:
"Ou seja, o juiz das garantias deve ser entendido como uma regra procedimental indispensável para combater os indesejáveis efeitos do tunnel vision no sistema criminal, sendo, em razão disso, urgente a revogação da liminar deferida na ADI 6.298/DF e a consequente implementação do instituto, tal como previsto na Lei nº 13.964/2019" [7].
Porém, extrai-se da decisão proferida pelo ministro Fux o seguinte fundamento de mérito, verbis:
"(a5) É cediço em abalizados estudos comportamentais que, mercê de os seres humanos desenvolverem vieses em seus processos decisórios, isso por si só não autoriza a aplicação automática dessa premissa ao sistema de justiça criminal brasileiro, criando-se uma presunção generalizada de que qualquer juiz criminal do país tem tendências que favoreçam a acusação, nem permite inferir, a partir dessa ideia geral, que a estratégia institucional mais eficiente para minimizar eventuais vieses cognitivos de juízes criminais seja repartir as funções entre o juiz das garantias e o juiz da instrução" [8].
A ratio decidendi transcrita acima presume a inadequação e a ineficiência da inovação legislativa, e traz como consequência a substituição da lei gerada pelo Parlamento e sancionada pela presidência da República por outra lei, esta de predileção do relator. Aliás, em webinário sobre Direito Constitucional realizado em 16/11/2020 na Suprema Corte brasileira, o ministro Fux destacou a importância do papel desempenhado pelo princípio da eficiência no funcionamento de todo o aparato judiciário [9].
Caberia ao Judiciário, cujos membros não são eleitos, exercer um controle de mérito sobre uma lei aprovada pelos representantes do povo, sem que tal controle tenha como exclusivas balizas as já prolixas disposições constitucionais?
A Constituição não autoriza o Supremo a suspender uma lei democraticamente aprovada apenas pelo fato de seus magistrados a considerarem pouco meritória em termos de adequação e eficiência. E o próprio relator reconhece isso em sua decisão [10], embora, na prática, tenha feito exatamente o contrário do que propugnou em tese.
Por mais que a referida lei tenha desagradado segmentos representativos da magistratura, a qual sem dúvida é a maior afetada pela inovação legal, um juízo estrito de constitucionalidade não tem o condão de atestar se uma lei é boa ou não, mas apenas se é ou não constitucional. Várias são as leis que, na opinião de certos juízes, não são boas ou eficientes, mas isso não significa que, por tal razão, sejam inconstitucionais.
Costuma-se dizer, sobretudo a partir de argumento comparatista inspirado nos sistemas de judge made law, que a dimensão material ou substancial da cláusula do devido processo legal exige que as leis sejam razoáveis, adequadas e proporcionais.
Todavia, tal fundamento justifica-se em regimes jurídicos desprovidos de constituição escrita ou dotados de constituições sintéticas, situação a que não se amolda nosso desenho constitucional, cujo texto magno é reconhecidamente prolixo e analítico, de modo que não há a menor necessidade de que o Judiciário busque padrões de conformidade constitucional fora do copioso rol de preceitos positivados em nossa Carta.
Portanto, caminhando-se já para a conclusão, o artigo propõe-se a responder à seguinte pergunta: o que deve prevalecer num Estado democrático de Direito, a lei criada pelos representantes do povo ou a vontade dos juízes encarregados de interpretá-la, mesmo que não encontrem nela um expresso vício de inconstitucionalidade?
Sabe-se que a lei não deve ser vista como a resposta pronta, acabada e inequívoca para todos os problemas judiciais; mas ela deve ser, sim, o ponto de partida para as soluções jurídicas em sistemas civilísticos, sob pena de o Direito ter, com a chancela do Supremo, seu caráter normativo/prescritivo corroído pelo empirismo judicial, ainda que este venha dos membros da alta corte constitucional.
Problemas práticos de inviabilidade ou inadequação da lei diante da atual estrutura judiciária, tais como os apontados pela entidade associativa que propôs a ADI, devem ser resolvidos com a adaptação dos ritos forenses à nova política processual penal editada pelo Parlamento, e não com o simples veto das mudanças procedimentais por ela trazidas, como se o STF fosse um dos protagonistas do processo legislativo.
Sendo o bastião secular da liberdade e o guardião do modelo acusatório previsto na Constituição, o Supremo certamente não se vergará a influxos corporativos, pois sabe que a criação de regras processuais compete exclusivamente aos espaços de representação política encarregados da elaboração de leis, sem qualquer protagonismo do Judiciário.
Enfim, embora os prognósticos do parto previsto para o dia 25 de novembro sejam reservados — sobretudo devido à resistência de determinados atores institucionais e à tendência natural de que as coisas permaneçam do jeito em que estão, ainda que a Constituição e a Lei digam o contrário —, espera-se que a demora desse nascimento não cause o aborto do juiz de garantias, nem torne natimorto o modelo acusatório que o pacote "anticrime" tentou regulamentar no plano infraconstitucional.
Caso venha a permitir o renascimento do juiz de garantias — pois já tinha vindo ao mundo pela via legislativa antes de ser colocado de volta no ventre da mãe pela medida cautelar deferida pelo ministro Fux —, o Supremo finalmente chancelará a concretização legal dos standards de justiça criminal concebidos pela Carta Republicana de 1988.
Assim, será dado um grande passo rumo a juízos de mérito mais equidistantes e a processos penais mais justos, apesar dos conhecidos transtornos burocráticos que a implantação das medidas previstas na Lei nº 13.964/2019 certamente acarretará aos órgãos estatais até que eles estejam totalmente adaptados aos ditames legais. Afinal, não cabe ao Supremo glosar uma lei com base na quantidade maior ou menor de trabalho que ela dará às instituições, mas, sim, com base em sua eventual inconstitucionalidade.