Por Leonardo Luz da Silva -
Não há dúvidas sobre a importância do estudo da base do Direito Processual Penal, aqui entendida como aquilo que a dogmática trata por: ação, jurisdição e processo [1]. Entre os temas, foi o primeiro deles que José Frederico Marques nomeou de "escabroso" [2]. Curiosamente, parte das críticas a respeito do tratamento que se dá (e se deu) à ação tem a ver com uma concepção de Direito Processual Penal que deita raízes na teoria geral do processo (defendida pelo autor paulista). Basta ver, e. g., o que dizem os autores da obra clássica sobre teoria geral do processo, em terras brasileiras: "Trata-se de direito ao provimento jurisdicional, qualquer que seja a natureza deste — favorável ou desfavorável, justo ou injusto — e, por tanto, direito de natureza abstrata. É, ainda, um direito autônomo (que independe da existência de direito subjetivo material. Nesse sentido, é conexo a uma situação jurídica concreta". E prosseguem os autores: "o estudo da natureza jurídica da ação, com as conclusões a que chegamos, aplica-se não somente ao processo civil, como também ao processo penal" [3].
De outro norte, partindo para a construção do que é ação por meio de uma teoria própria do Direito Processual Penal, é possível definir ação da seguinte forma: "Ação processual penal é o poder conferido ao Ministério Público, outras autoridades públicas e sujeitos privados, de provocar a jurisdição em relação a um caso penal, visando à instauração de um processo penal principal (ação processual penal em sentido estrito, acusação) ou o conhecimento de outra questão que deva ser objeto de um provimento jurisdicional (modalidades diversas de ação processual penal)" [4]. Assim, adotando-se essa perspectiva, sobretudo no que se refere á ação processual penal em sentido estrito (acusação), conclui-se que: se a ação é poder, este deve ser limitado, principalmente em face dos direitos do cidadão acusado [5].
Desse modo, entre as garantias constitucionais que limitam o poder punitivo, está o contraditório (artigo 5º, inciso LV, da CF) [6], elemento fundamental para que uma acusação — e respectiva condenação, caso ocorra — seja exercida de maneira legítima [7].
Curiosamente, levando em consideração um suposto juízo de admissibilidade da acusação, é percebível que o contraditório ficou somente no papel (melhor: "somente" na Constituição), uma vez que o Código de Processo Penal (CPP), na maioria dos casos [8], não estabeleceu um debate prévio entre o órgão acusador e a defesa técnica — melhor forma de se extirpar excessos acusatórios e ilegalidades [9].
Marco Aurélio Nunes da Silveira, prescindindo de modificação legislativa, informa o caminho dado por Lenio Luiz Streck, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Antônio Acir Breda para estabelecer um contraditório prévio ao recebimento (ou não) da acusação: "(...) A declaração, pelo Supremo Tribunal Federal, da inconstitucionalidade do juízo de admissibilidade sem contraditório prévio, embora sem redução de texto, mediante simples reinterpretação das expressões 'citação', no artigo 396, e 'intimação', no artigo 399. Assim, onde se lê 'citação', ler-se-ia 'intimação', e onde se lê 'intimação', ler-se-ia 'citação" [10].
Infelizmente, ainda que se adote a saída citada acima, outro problema atinge a constituição de um Direito Processual Penal democrático: em que pese esteja estabelecido pela Constituição Federal que as decisões do Poder Judiciário deverão ser fundamentadas (artigo 93, inciso IX), e que isso deva ser aplicado no momento de decidir sobre o recebimento da acusação (ainda mais com a interpretação extensiva que deve se fazer do artigo 315, §2º, do CPP), a jurisprudência trata da decisão judicial que recebe a denúncia como mera formalidade, vale dizer, ato que sequer mereceria uma fundamentação concreta [11].
Por derradeiro, pelo tratamento que recebem os temas ação processual penal e juízo de admissibilidade da acusação, necessária uma real mudança no marco legislativo, a fim de se estabelecer, entre outras coisas, um verdadeiro contraditório, informado pelo debate prévio entre acusação e defesa, antes do possível recebimento de uma denúncia ou queixa. Só assim o Direito Processual Penal estará mais bem equipado para limitar o excesso acusatório e, por isso mesmo, o excesso de poder.