Por Michel Saliba e Sóstenes Marchezine
As Comissões Parlamentares de Inquérito, no pleno e regular exercício das suas atribuições, "podem muito, mas não podem tudo". Essa velha máxima se encaixa perfeitamente às CPIs, afinal todo órgão e toda autoridade — sem distinção — devem atuar adstritos à Constituição e sob controle de legalidade num Estado democrático de Direito.
Ocorre que, na defesa do interesse público e coletivo, o poder da CPI é considerado sui generis — único em sua espécie. Em análise ampla, a singularidade peculiar do órgão de investigação do Parlamento tem se demonstrado, na prática, passível de má interpretação, em prejuízo às garantias e direitos fundamentais. Por isso, carece de especial atenção.
De acordo com a Constituição Federal, o Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional — que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal —, sendo sua competência, além de criar e aperfeiçoar leis, fiscalizar e controlar o Poder Executivo, inclusive a partir da atuação de comissões temáticas permanentes e temporárias.
Desse modo, não apenas as CPIs, mas qualquer comissão pode, por exemplo, convocar autoridades; requisitar documentos e informações; solicitar esclarecimentos; apreciar programas, planos nacionais e emitir parecer; entre outros. Tratam-se de atribuições regulares do Poder Legislativo: um poder-dever parlamentar, insuscetível de renúncia.
O que difere as CPIs das demais comissões parlamentares são os poderes extras de investigação, próprios das autoridades judiciais. Com exceção a alguns atos que continuam guarnecidos pela reserva de jurisdição, a Constituição investiu os parlamentares de poderes antes inerentes apenas aos magistrados na fase instrutória de um processo, como a quebra de sigilos bancário, fiscal, telefônico e telemático.
Além disso, a Carta Magna prevê a possibilidade de outras ferramentas excepcionais serem convencionadas em normas dos regimentos internos das casas legislativas. Assim, apesar de não poder julgar, nem ter competência punitiva, o Supremo Tribunal Federal considera "natural que se confira às CPIs ampla autonomia", a permitir que "o Parlamento se movimente com certa discricionariedade nos quadrantes das diversas possíveis linhas investigativas a serem traçadas" (MS 33.751).
São poderes tão singulares que até a garantia de efetividade nos desdobramentos processuais restou positivada, de modo a culminar em medidas corretivas, punitivas e condenatórias. Isso porque as CPIs devem encaminhar a órgãos como o Ministério Público relatório conclusivo circunstanciado e documentado para responsabilizações. Há de se considerar, ainda, nesse espectro, que a Lei nº 10.001/2000 determina às autoridades responsáveis o impulsionamento prioritário dos feitos oriundos das CPIs, num claro aceno de cooperação institucional para eficácia das investigações parlamentares.
Dessa forma, não há dúvidas que o Congresso assume uma espécie de "superpoder" ao constituir uma CPI para a apuração de fato determinado, em que se congregam atribuições e competências do Poder Legislativo e do Poder Judiciário para investigação à fundo de atos do Poder Executivo. Justamente por isso, nasce a necessidade de exaustiva regulamentação, constante acompanhamento e contínuo controle institucional e jurisdicional das CPIs, para que sejam evitados abusos ou mesmo flertes autoritários.
Nesse sentido, o ex-ministro e decano do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, sabiamente pondera que "as CPIs somente podem exercer as atribuições investigatórias que lhes são inerentes, desde que o façam nos mesmos termos e segundo as mesmas exigências que a Constituição e as leis da República impõem aos juízes" (MS 30.906).
Não por outra razão, a Lei ordinária nº 1.579/1952, ao prever a tomada de depoimentos, oitivas e inquirições, inclusive de testemunhas sob compromisso, traz a aplicabilidade subsidiária da legislação penal nos procedimentos das CPIs. É preciso que as excepcionalidades investigativas garantidas ao parlamento atraiam, na prática, não apenas as prerrogativas, mas também os deveres constantes de normas como o Estatuto da Advocacia da OAB, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, a Lei de Abuso de Autoridade, entre outras.
Não há direito absoluto, mas há princípios a nortear a complexidade social, com garantias constitucionais também inescusáveis: que ninguém seja submetido a tortura (e aqui se destaca a de origem psicológica), nem a tratamento desumano ou degradante; que sejam resguardadas a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas; que não haja juízo ou tribunal de exceção; que sejam assegurados o contraditório e ampla defesa; e que ninguém seja considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Por fim, importa destacar que, tal como preceitua a Constituição, eventuais abusos a prerrogativas asseguradas ao Congresso Nacional são incompatíveis com o decoro parlamentar — mesmo diante das excepcionalidades e do poder sui generis das CPIs.
Nessa senda, é de curial importância que uma comissão que tem por objetivo investigar, não atue açodadamente atraída pelos holofotes e pela repercussão midiática, não antecipe juízos de valor, não exponha ao massacre reputações e respeite as prerrogativas dos advogados dos depoentes, eis que esses defensores têm múnus público no exercício de suas funções advocatícias.
É dever de todos respeitar.