O tema aqui tratado se situa ao âmbito da discussão dogmático principiológica no Brasil em Direito penal e busca desmistificar uma suposta definição de critérios pretensamente coerentes pelo STF e STJ na análise da incidência do princípio da insignificância, almejando esclarecer determinadas contradições e posicionamentos que as nossas cortes superiores adotam, limitadores da aplicação do princípio.
O STF pacificou entendimento no sentido de que a aplicação do princípio da insignificância dependerá do preenchimento de condições objetivas, quais sejam, (a)mínima ofensividade da conduta do agente,(b)nenhuma periculosidade social da ação, (c)grau reduzido de reprovabilidade do comportamento, e (d)inexpressividade da lesão jurídica provocada. Em primeiro plano, cumpre acentuar que nem todos estes critérios podem – nem deveriam – ser aferidos objetivamente, conforme se depreende da análise do grau reduzido de reprovabilidade do comportamento, circunstância que importa em nítido grau de valoração e, portanto, sem parâmetro de objetividade apontado, o que não significa que este critério não poderia existir, pois, se possível o densificarmos este pode ser aplicado, desde que com razoabilidade.
O maior problema não se infere deste critério ou de qualquer dos outros adotados e sim do sentido conferido a eles, mais precisamente, com a finalidade de bloquear a aplicação do princípio discutindo aspectos totalmente alheios ao plano da tipicidade material como se fossem decisivos para solução dos casos concretos em que o princípio poderia incidir.
Neste sentido, o STF e o STJ tem impossibilitado a aplicação do princípio da insignificância quando o réu for reincidente, ou portador de maus antecedentes, conforme se verifica de decisões mais recentes (HC 122547/MG; HC 122286/PR – 19/08/2014/HC 122030; AgR/MG:25/06/2014 e outras), sendo que, algumas decisões, fazem referência também a supostas condições de infrator contumaz e personalidade voltada à prática delitiva ou a presença de inquéritos policiais em andamento. Em primeiro plano, já apontamos em outros escritos que a referência a“personalidade voltada à prática delitiva” implica em adoção de um direito penal de autor, concepção absolutamente contrária a dominante, em que o Direito penal somente pode ser considerado adequado às postulações de um Estado Democrático de Direito se – e enquanto – for um Direito penal do fato, ou seja, o direito penal do autor termina por fazer referência à personalidade como forma de vinculação à esfera de responsabilidade pelo resultado, sem que exista relação direta com o fato delituoso, perspectiva que deve ser afastada.
Ademais, a maior contradição na adoção deste argumento nas decisões do STF e STJ está em que a consideração de aspectos relativos à reincidência delitiva ou maus antecedentes, ou à esfera da personalidade do réu, é antecipação da análise de elementos específicos da aplicação da pena como se fossem pressupostos para consideração da (a)tipicidade penal. A aplicação do princípio da insignificância é matéria vinculada à compreensão da esfera da tipicidade material da conduta do agente, ou seja, que se vincula à significância ou não da lesão ao bem jurídico tutelado pela norma.
A adoção dos critérios limitadores estabelecidos pelo STF e STJ não se revelam válidos e demonstram que o avanço dos tribunais superiores em aplicá-los tem sido limitado por interesses político criminais que tornam imprecisas suas decisões, operando uma compreensão casuística dos princípios penais. Devemos evitar que processos hermenêuticos incoerentes, de manipulação dos conceitos, alterem a destinação dos princípios, transformando-os em um recurso que muitas vezes termina por ser inútil, violentando seu sentido.
Yuri Carneiro Coêlho