Por Domingos Barroso da Costa e Andrey Régis de Melo -
A costumeira violação ao artigo 212 do CPP, para além de uma questão puramente jurídica, pode ser analisada a partir das relações de poder entre Estado e cidadão, conforme historicamente desenvolvidas no Brasil. É nesse sentido que ganha relevo o relato da historiadora Silva Hunold Lara quando descreve a morte do escravizado Manoel, em 1807:
"Ele foi achado enforcado num ramo baixo de uma ingazeira, pendurado pelo baraço e com os pés no chão, presos por grilhões [...] O Auto de Exame de Corpo de Delito, feito em 21 de janeiro daquele ano, declara que os cirurgiões acharam 'vários ferimentos sobre as regiões lombares e parte da região ilíaca do lado direito, cujos ferimentos [sic] mostravam ter sido feitos com chicote, os quais ferimentos [sic] se achavam cobertos com carvão moído e não podiam ser causa da morte por ser [sic] muito simples; a causa da morte era, efetivamente, o enforcamento'" [1].
A devassa [2] instruída no caso de Manoel, como em tantos outros que apuravam a morte de escravizados, reconheceu a existência de suicídio. A conclusão judicial retratada, ao responsabilizar o escravo pelas diversas lesões que causaram sua própria morte, evidencia a necessidade de a verdade ser produzida de forma a não fragilizar o direito ao castigo que detinham os senhores e, por sua vez, não atentar contra o sistema de produção escravocrata que dependia do violento controle de corpos negros.
Séculos mais tarde, a relação dinâmica e triangular que se estabelece entre poder, direito e verdade foi analisada por Michel Foucault, segundo o qual não "há exercício do poder sem uma certa economia dos discursos de verdade que funcionam nesse poder, a partir e através dele. Somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos exercer o poder mediante a produção da verdade" [3].
E o mesmo Foucault ainda adverte que "o sistema do direito e o campo judiciário são o veículo permanente das relações de dominação, de técnicas de sujeição polimorfas" [4].
Observem-se, a propósito, as muitas dificuldades que se impõem — e se opõem — aos esforços no sentido de se efetivar um sistema acusatório capaz de estabelecer limitações a um poder punitivo que historicamente tem produzido verdades muito problemáticas no Brasil, as quais podem ser analisadas desde uma perspectiva política (exercício abusivo em relação ao poder constitucionalmente pactuado), passando por questões econômicas (manutenção das relações de produção e dominação de classe) e não econômicas (fluidez das práticas judiciais abusivas em busca de uma suposta verdade).
Posto isso, especialmente em processo penal, parece-nos que ao juiz caberia prioritariamente a proteção às formas ou, como apontado por Salah H. Khaled Jr., "o controle da formação do saber" [5], resguardando a efetividade do devido processo legal ao delimitar a atividade probatória das partes, o que implica o abandono à fetichizada busca pela verdade real, uma espécie de Santo Graal do processo penal brasileiro.
E a analogia é interessante na medida em que aproxima lendas ensejadoras de verdadeiras cruzadas, em que um objetivo artificialmente sacralizado é posto para ocultar seu verdadeiro desígnio: o poder. É com a afirmação e o abuso de poder que nos deparamos quando a questão é a verdade real no processo penal brasileiro, uma espécie de princípio prático e vulgar amplamente acolhido — apesar de seu evidente caráter marginal em relação a nossa ordem constitucional — justamente por se impor como meio eficaz em contrabandear toda sorte de violações ao devido processo legal e outros direitos fundamentais [6]. Como se a verdade fosse algo passível de se alcançar em um processo, valendo destacar que não é de qualquer verdade que se cuida, mas de uma verdade digna dos deuses, uma verdade real.
É, portanto, de uma descida do Olimpo que tratamos, de uma espécie de humanização do processo penal, em que os juízes — entre outras autoridades —, enquanto seres limitados no tempo e no espaço, parciais porque não absolutos, se saibam incapazes de uma verdade real e se submetam ao papel que lhes reserva a Constituição e a lei.
A propósito, sobre a incompletude do conhecimento e do conhecedor, Rubens Casara nos oferece importante consideração: "O conhecimento é, portanto, sempre parcial. Em que pese a existência de procedimentos de otimização do processo de reconstrução histórica de fatos, o julgador e os demais atores jurídicos não podem ignorar a impossibilidade humana de descobrir a verdade" [7].
Apesar de tantas incompletudes e limites, ou, quem sabe, em razão mesmo dessas castrações, nossos juízes e tribunais insistem em descumprir até mesmo as mais simples previsões legais que visam, em última análise, à boa delimitação de funções no processo penal. A recusa a limites é a marca de nossas práticas quotidianas quando se trata de processo penal, o que inclui a aplicação a seus procedimentos de princípios próprios ao processo civil, como se estivéssemos diante de tutelas e bens jurídicos equivalentes. E o pior: em se tratando de nulidades, tem-se aplicado ao processo penal relativizações inadequadas até mesmo em sede de processo civil a depender do direito cuja tutela se pretende, o que revela um verdadeiro esforço de banalização da liberdade cuja proteção é o fim último daquele (processo penal), em consagração à essência do Estado de Direito em seu princípio de contenção do poder punitivo.
Entretanto, não obstante tão naturalizados esforços de destruição das formas que a protegem, a liberdade resiste, segundo entendemos, como direito indisponível quando se trata da aplicação do direito penal que tem, por única via, o processo penal. Não fosse penalmente indisponível, a confissão constituiria prova absoluta de culpa, dispensando outros elementos para legitimação da condenação e execução da pena. Todavia, não é isso que se infere do previsto no artigo 197 do CPP, inserido em um contexto que tem na presunção de inocência princípio estruturador de um devido processo penal democrático cuja dinâmica é regida por um sistema acusatório.
E dizer de um devido processo penal democrático faz pressupor a necessária e rigorosa observância das formas em proteção à frágil liberdade do sujeito diante do poder de punir do Estado, tendo-se em conta que, numa democracia, os fins jamais justificam os meios; pelo contrário, os fins de uma democracia passam, primeiramente, pela obediência às regras colocadas pelo Direito em nome da igualdade e da liberdade, para além de cujas margens espreita o arbítrio.
Por assim ser, se, no contexto de um sistema nitidamente acusatório, em que bem delimitados os papéis de juiz, órgão acusador e defesa, vigora um dispositivo expresso em prever que "as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida" (CPP, artigo 212, caput), cabendo ao magistrado apenas a complementação da inquirição acerca de pontos não esclarecidos (CPP, artigo 212, parágrafo único), conclusão lógica se define no sentido de que a violação frontal ao que categoricamente impõe a lei é causa de nulidade absoluta, não só porque afronta abertamente o sistema acusatório, mas especialmente porque, ao fazê-lo, coloca em risco a liberdade de quem se vê diante do poder punitivo estatal.
O prejuízo, no caso, é imediato à violação da norma, não exigindo qualquer outra demonstração que não… a violação da norma. Isso porque demonstrar com provas a violação de uma norma processual que termina por tutelar direito fundamental e penalmente indisponível — a liberdade — não é o mesmo que se demonstrar um dano mensurável de ordem material — como é a regra em processo civil.
Apoiando-nos em Kant [8] para tratar do que se tutela em processo penal, temos como impossível comprovar um prejuízo que se presume em razão da dignidade do direito tutelado pela forma violada, como é o caso da liberdade, o que em muito se difere quando se trata de uma forma que tutela determinado bem disponível, mensurável até mesmo economicamente. Ou seja, no fim das contas, exigir a comprovação do prejuízo em casos tais é obrigar o impossível justamente para autorizar o arbítrio.
Nas palavras do ministro Celso de Mello:
"(…) Persecução penal rege-se, enquanto atividade estatal juridicamente vinculada, por padrões normativos, que, consagrados pela Constituição e pelas leis, traduzem limitações significativas ao poder do Estado. Por isso mesmo, o processo penal só pode ser concebido — e assim deve ser visto — como instrumento de salvaguarda da liberdade do réu. O processo penal não é um instrumento de arbítrio do Estado. (HC nº 73.338, 1ª T., DJ 19/12/1996)".
Posto isso, e considerando que a pacificação de entendimentos no âmbito dos tribunais há de conferir estabilidade ao Direito sem dele fazer letra morta, temos que os fundamentos da jurisprudência ainda prevalente em relação às rotineiras violações ao artigo 212 do CPP hão de ser revistos, resgatando-se o devido processo penal constitucionalmente estabelecido em substituição ao tão corrente fetiche da verdade real, o que, em nosso sombrio contexto, representaria genuína revolução civilizatória, a exigir de cada parte o cumprimento de papéis bem determinados e a zelosa observância das formas estabelecidas pela lei em tutela à liberdade — e, logo, em preservação à essência de nosso Estado democrático de Direito [9].
Em boa medida, inclusive, essa parece ter sido a tônica regente do julgamento, em 6 de abril deste ano, pelo STF, do HC 187035/SP, quando, por três votos a dois, concedendo a ordem, decidiu a 1ª Turma no sentido de que a reforma processual penal levada a cabo em 2008 não deixa margem a dúvidas quanto à ordem de perguntas, reservando ao juiz, como se extrai do parágrafo único do artigo 212 do CPP, questionamentos complementares acerca de pontos não esclarecidos, depois daquelas feitas pelas partes.
E a questão é exatamente essa: o mandamento constante no artigo 212 do CPP (caput e parágrafo único) — e em tantos outros dispositivos do processo penal — não deixa margens a dúvidas, cabendo aos magistrados tão somente limitar-se ante o que determina a lei e impô-la às partes. A assunção de uma castração em nome da lei por nossas autoridades — especialmente por aquelas responsáveis pelo exercício do poder de punir — já seria indicativo de um importante avanço civilizatório, um sinal anunciador de movimentos no sentido da superação das relações de dominação que ainda nos mantêm fixados a um passado escravocrata atualizado em nossas prisões e favelas, realidades miseráveis quotidianamente alimentadas pelas verdades ilegais produzidas por um sistema de justiça penal cujos discursos oficiais se prestam a conferir ares de legitimidade ao poder que, ainda hoje, alguns poucos senhores de privilégios exercem sobre uma multidão de oprimidos.