Igor Raatz -
A última semana foi agitada no Supremo Tribunal Federal. Dentre tantos assuntos relevantes para a república, um dos mais falados foi o “desabafo” do ministro Luís Roberto Barroso, ocorrido na sessão do dia 21 de março, que acabou “viralizando” nas redes sociais.
O quadro, distorcido, que se pintou com o episódio, foi de antagonismo entre dois personagens. Infelizmente, o que poderíamos extrair de mais produtivo das desavenças entre os dois ministros foi ignorado. O embate sobre o papel do Supremo Tribunal Federal, que, para a comunidade jurídica, deveria transcender as questões pessoais, foi praticamente esquecido.
Antes de adentrarmos nas questões jurídicas, faremos uma breve recapitulação do ocorrido. Durante a sessão de julgamento do Supremo, o ministro Luís Roberto Barroso, incomodado com as colocações do ministro Gilmar Mendes, referiu-se a ele como “uma pessoa horrível, uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia”.
Antes disso, o ministro Gilmar, de modo um tanto irônico, tecia duras críticas ao papel que, para muitos, deve ser exercido pelo Supremo Tribunal Federal na atualidade. Para ele, o Supremo não poderia servir como uma espécie de terceiro turno do jogo político: “Não deu para fazer por reformas, mas vamos por decisão do Supremo”, disse Gilmar.
No fundo, o discurso de Gilmar Mendes ia de encontro com a posição defendida pelo ministro Barroso acerca da função “iluminista” do Supremo Tribunal Federal. Isso fica claro na seguinte passagem da fala de Gilmar Mendes: “Declara-se inconstitucional não porque eu gosto... Não porque eu acho... Eu posso achar o que quiser... Eu quero mudar... Eu tenho vocação para mudança... Vá para o Congresso, consiga voto... Ahhh, eu sou iluminado... Ahhh... Talvez faça viagem para o céu... Começa uma viagem espacial... A minha função é iluminar... Quem sabe tenhamos alguém voltando no planeta solar...”.
O problema, apontado por Gilmar — e que também é levantado por aqueles que são “conservadores”, no sentido de conservar-se a Constituição e a autonomia do Direito —, é que o Supremo não pode proclamar inconstitucionalidades ao gosto do freguês. E, nisso, o pensamento de Gilmar bate de frente com o que Barroso entende ser papel dos ministros do Supremo: atuar como “vanguarda iluminista da nação”.
Em recente entrevista para a ConJur, Barroso reiterou o seu já conhecido pensamento no sentido de que o Supremo exerce três grandes papéis: contramajoritário, representativo e iluminista. Do alto da sua “maldade”, era isso que Gilmar estava atacando quando disse, na sessão do dia 21 de março de 2018.
Não nos cabe fazer qualquer espécie de julgamento pessoal sobre os respeitados ministros Barroso e Gilmar Mendes. O episódio em questão, no entanto, serve com excelente pretexto para tratarmos do tão decantado papel “iluminista” do Supremo Tribunal Federal, defendido por inúmeras autoridades acadêmicas, dentre elas o ministro Luís Roberto Barroso.
O que se esconde por de trás do papel “iluminista” do Supremo Tribunal Federal? Isso realmente é novo? Não. Na verdade, trata-se de “velha novidade” que está no DNA do nosso Direito desde o surgimento, em Portugal, e no Brasil, do Supremo Tribunal de Justiça, na primeira metade do século XIX. Sim, o papel iluminista do Supremo é somente um slogan para repetir o que defendiam alguns juízes e juristas contrários ao constitucionalismo liberal do início do século XIX.
Isso tudo é muito bem contado — obviamente que sem alusões ao pensamento do ministro Barroso — por António Manuel Hespanha, em seu brilhante estudo Governo da lei ou governo dos juízes? O primeiro século do Supremo Tribunal de Justiça em Portugal. Pouparemos os leitores das notas de rodapé, destacando que as linhas a seguir inspiram-se diretamente no texto mencionado.
O que Hespanha nos mostra com detalhes é uma espécie de resistência dos juízes ao constitucionalismo exsurgente do fim do antigo regime. Assim como na França revolucionária, na qual se defendia que o direito positivo deveria pagar tributo ao Direito natural, o qual poderia, pois, corrigir o direito legislado (o novo direito representativo da vontade da nação, e não mais de um soberano esclarecido), também em Portugal assistiu-se a uma resistência dos juízes, os quais não aceitaram a supremacia dos políticos sobre os juristas. Diziam eles que a legitimidade do voto deveria ceder diante da legitimidade baseada na autoridade doutrinal; as contramaiorias (os juízes) deveriam se sobrepor às maiorias (o povo).
Tratava-se, portanto, da defesa do “império da razão”, adverso da criação parlamentar do direito, e legitimado pela autoridade racional ou científica. Ilustra bem esse modo de pensar Basílio Alberto de Sousa Pinto (1793-1881), jurista da época que defendia o primado da razão, da “natureza” e do temperamento dos povos sobre as decisões de efêmeros arranjos políticos. Dizia ele que, por cima da Constituição escrita, existia outra, ligada à natureza das coisas.
Sua doutrina sustentava que a soberania, ou seja, o poder do povo de criar o direito, estava limitado pela razão, que constituía a verdadeira ordem jurídica. Algo como “a razão humanista precisa impor-se sobre o senso comum majoritário” (Barroso em entrevista à ConJur). No Direito Penal, chegou-se a defender que não era a simples desobediência à lei que mereceria ser punida, mas a ofensa a grandes valores como a liberdade e a dignidade do homem, um mal a ser retribuído independentemente de considerações políticas.
A grande questão é que essa visão “libertária” nada tinha de novo. Em Portugal, durante o Antigo Regime, havia uma clara abertura para um direito que fosse além da lei ou contra a lei. Basta lembrarmos da “Lei da Boa Razão”, fruto da reforma Pombalina e, pois, do despotismo esclarecido do século XVIII, na qual boa razão era a recta ratio dos jusnaturalistas. Porém, essa recta ratio — que no contexto francês revolucionário sustentava a autoridade da razão sobre as maiorias e uma legitimidade democrática sujeita à legitimidade do saber e à natureza das coisas — servia, no absolutismo português, para reforçar o poder do soberano.
Os juízes tinham liberdade contra a lei, mas estavam sujeitos ao rei. Não eram totalmente livres. Mesmo assim, o desejo que se tinha, em Portugal, com o fim do antigo regime era claro: uma concepção democrática do Direito capaz de conter o poder dos juízes e juristas, colocando fim ao que, na época, se chamava de “desembargocracia” (em clara alusão ao antigo Tribunal Supremo, denominado Desembargo do Paço).
Então, indo além das observações de Hespanha, podemos concluir que, defendendo a razão sobre a lei, os juízes mantinham a liberdade de outrora. Mantinham os ideais iluministas do primado da razão, que havia sustentado o Direito do antigo regime. Porém, eram agora mais livres: permaneciam livres da lei e, ao mesmo tempo, eram livres do poder soberano. Afinal, agora a soberania estava na lei, e não mais no rei!
Automaticamente, o alvissareiro governo da lei estaria submetido ao governo dos juízes. Aí encontramos uma parte significativa da genealogia dos atuais mecanismos vinculantes brasileiros (precedentes luso-brasileiros), da “juristocracia”, do ativismo judicial, e da função “iluminista” do Supremo.
O que há de relevante no episódio mencionado no início do texto é justamente a necessidade de discutirmos posições jurídicas a respeito do papel do Supremo Tribunal Federal. O papel iluminista do Supremo, do nosso ponto de vista, nada mais é que um retorno ao século XIX e, mais especificamente, da defesa do império da razão iluminada sobre o império da lei. Em linhas gerais, trata-se da defesa de uma visão contramajoritária do Direito em que a vontade da maioria, estampada na lei, cede frente à vontade do próprio Supremo Tribunal Federal. Eis o ponto central da questão!