Por Alberto Zacharias Toron e Eugênio Carlo Balliano Malavasi -
Há mais de três décadas uma questão importante vem ocupando espaço na doutrina e na jurisprudência e tem encontrado as respostas mais diversificadas. A incidência da majorante prevista no artigo 12, inciso I, da Lei 8.137/90 ("ocasionar grave dano à coletividade") incide a partir de que montante sonegado? Incluem-se nesse cálculo o acréscimo de juros e da multa imposta como decorrência da autuação?
Quem abrir os repertórios de jurisprudência vai encontrar respostas para todos os gostos. Há uma enorme discricionariedade, para não dizer arbitrariedade, na definição do que seja "grave dano à coletividade" ante o silêncio do legislador. Daí Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Jr. e Fabio Delmanto sustentarem a inaplicabilidade desse dispositivo legal por inobservância do princípio da reserva legal, pois há violação à taxatividade. Tipos penais abertos, sustentam esses autores, atritam com a garantia constitucional da lex certa. Malgrado a procedência da crítica, juízes e tribunais, inclusive superiores, têm aplicado a majorante.
Rodrigo Leite Ferreira Cabral, sem compartilhar da crítica dos Delmanto, propõe critérios para a identificação do grave dano:
- i) Capacidade econômica da vítima. (...) Assim, um valor que não é considerado grave para a União, pode muito bem ser considerado grave para um município pequeno";
- ii) Valor sonegado ou valor potencialmente sonegado. Todavia, neste último caso, o autor não indica uma baliza, distingue apenas as situações de dano daquelas em que este é potencial. Certo, no entanto, conforme anotação que faz da jurisprudência, que o STJ e o STF fixaram valores que em números redondos vão de R$ 154 mil a R$ 530 mil.
Seja como for, parece fora de dúvida que "não se deve considerar o valor final do montante de tributo suprimido/reduzido, pois ocorre a incidência de pesadas multas, que elevam a obrigação para valor muito superior àquele efetivamente resultante das fraudes praticadas" (TJ-RS, apud: Delmanto, ob. cit., p. 355). Idem, STJ, 5ª T., HC 412.205, rel. Min. Joel Paciornik, DJe 02/3/2018.
A mais recente jurisprudência do STJ fixou o montante de R$ 1 milhão para a incidência da majorante prevista no artigo 12, I, da Lei 8.137/90 em caso de tributos federais. É o que decidiu a 3ª Seção do STJ ao julgar o REsp 1.849.120/SC (DJe 25/3/2020), em acórdão da lavra do ministro Néfi Cordeiro:
"Relativamente a tributos federais, penso ser conveniente a adoção do patamar de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), acolhendo o critério disposto no art. 14 da Portaria 320 da PGFN, que define os devedores com tratamento prioritário perante a Fazenda Nacional, in verbis: Art. 14 As Procuradorias Regionais da Fazenda Nacional e a Coordenação-Geral da Representação Judicial da Fazenda Nacional designarão Procuradores encarregados de proceder ao acompanhamento especializado de processos judiciais referentes a grandes devedores que tenham valor da causa ou em discussão igual ou superior a conferindo-lhe tratamento prioritário. Esse patamar, que administrativamente já indica especial atenção a grandes devedores, é razoável para determinar a incidência de desvalor penal também especial. Claro que esse delimitador, como demonstrador do especial interesse tributário federal, será também na esfera criminal reservado como critério à sonegação de tributos da União. Confiram-se, a propósito, os seguintes precedentes: PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CRIMES CONTRA ORDEM TRIBUTÁRIA. CAUSA DE AUMENTO. ART. 12, INCISO I, DA LEI N.º 8.137/90. VALOR SONEGADO QUE CAUSA GRAVE DANO À COLETIVIDADE. DEFINIÇÃO DE VALOR VULTOSO PARA FINS DE APLICAÇÃO DA MAJORANTE. PORTARIA N.º 320/PGFN. INAPLICABILIDADE. CIRCUNSTÂNCIA QUE DEVE SER AFERIDA NO CASO CONCRETO EM RAZÃO DO VALOR SUPRIMIDO OU REDUZIDO. VALOR SONEGADO DE R$ 3.913.880,01 (TRÊS MILHÕES, NOVECENTOS E TREZE MIL, OITOCENTOS E OITENTA REAIS E UM CENTAVO). GRAVE DANO À COLETIVIDADE CONFIGURADO. PRECEDENTES. SÚMULA N. 568/STJ. INCIDÊNCIA MANTIDA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. Esta Corte Superior de Justiça possui entendimento consolidado no sentido de que, "A expressão do valor sonegado, superior a R$1.000.000,00, é fundamentação idônea para se decidir pela causa de aumento da pena do art. 12, caput e I, da Lei 8.137/90 [...]" (AgRg no REsp n. 1.566.267/RS, Quinta Turma, de minha relatoria, DJe 23/4/2018, sem grifos no original). Também é entendimento desta Corte que "Não é razoável o entendimento firmado pelo Tribunal de origem, que fixou o limite de tributos sonegados em R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais), previsto no art. 2.º da Portaria n.º 320/PGFN, para fins de definição de "quantia vultosa", dado que a própria Fazenda Nacional (art. 14 da citada portaria) confere acompanhamento especializado e tratamento prioritário aos processos judiciais de contribuintes - também denominados "grandes devedores" - que tenham em discussão valor igual ou superior a R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais)" (AgRg no REsp n. 1.282.542/SC, Quinta Turma, Relª. Minª. Laurita Vaz, DJe de 28/8/2014, grifei). Agravo regimental desprovido. (AgRg no REsp 1657618/PE, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 23/08/2018, DJe 05/09/2018.) PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ART. 1º, INCISO I, DA LEI 8.137/90. ALEGADA VIOLAÇÃO AO ART. 157, CAPUT E § 1º, DO CPP. FUNDAMENTO DO ACÓRDÃO RECORRIDO NÃO ATACADO. SÚMULA 283/STF. SONEGAÇÃO DO PAGAMENTO DE IMPOSTO DE RENDA. VALORES MOVIMENTADOS EM CONTAS BANCÁRIAS PERTENCENTES AO TITULAR. OMISSÃO DE RECEITAS. PRESUNÇÃO RELATIVA. CONTRIBUINTE QUE, INTIMADO, NÃO ESCLARECEU A ORIGEM DO DINHEIRO. TIPICIDADE DA CONDUTA. ART. 381, III, DO CPP. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO. CAUSA DE AUMENTO PREVISTA NO ART. 12, I, DA LEI 8.137/90. GRAVE DANO CAUSADO À COLETIVIDADE. EXPRESSIVO VALOR DO TRIBUTO SONEGADO. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. RECURSO DESPROVIDO. I - A ausência de impugnação de fundamento suficiente para manter, por si só, o v. acórdão recorrido acarreta o não conhecimento do recurso no ponto. Aplicação, por analogia, do Enunciado n. 283/STF. III - Configura crime de sonegação fiscal a omissão de receitas em declaração anual de imposto de renda, mormente quando confirmada a presunção relativa pela disparidade com movimentações de valores realizadas em contas bancárias e diante da hipótese de que a ré não se habilita a esclarecer a origem dos vultosos valores que circularam em suas contas bancárias. Precedentes desta Corte. IV - A expressão do valor sonegado, superior a R$1.000.000,00, é fundamentação idônea para se decidir pela causa de aumento da pena do art. 12, caput e I, da Lei 8.137/90, não configurando in casu violação ao art. 381, inc. III, do Código de Processo Penal. Agravo regimental desprovido. (AgRg no REsp 1566267/RS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 17/04/2018, DJe 23/04/2018)."
O caso versado no REsp era de imposto estadual e o voto condutor, acertadamente, ressalva:
"Cuida a hipótese dos autos de sonegação de ICMS no Estado de Santa Catarina, cuja legislação de regência não prevê prioridade de créditos, mas define como grandes devedores aquele sujeito passivo cuja soma dos débitos seja de valor igual ou superior a R$ 1.000.000,00, nos termos do art. 3º da Portaria PGE/GAB n. 094/17, de 27/11/2017, assim redigida: Considera-se grande devedor o sujeito passivo cuja soma dos débitos, inscritos ou não em dívida ativa, seja de valor igual ou superior a R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais). Com efeito, é situação de destaque do dano admitida pela Fazenda local, apta a também ser acolhida na seara criminal na definição do grave dano tributário (DJe 25/3/2020)."
O mesmo entendimento veio corroborado no julgamento do REsp 1.871.684/SC, 6ª T., relator o ministro Saldanha Palheiro, DJe 18/12/2020 e, mais recentemente, em decisão monocrática da lavra do ministro Sebastião Reis Jr. no RCD n. HC 666.425/SP (DJe 04/6/2021).
Mas há uma nota diferencial importante na decisão monocrática do ministro Sebastião Reis Jr. que atina com o fato de ter sido proferida em Habeas Corpus e em caso de condenação já transitada em julgado.
Pode o Habeas Corpus conhecer de matéria ligada à dosimetria da resposta penal? A resposta é iniludivelmente afirmativa. Desde que não haja a necessidade de rediscutir aspectos subjetivos da resposta penal e toda a discussão, como no caso em exame, gire em torno da ilegalidade do aspecto objetivo da pena aumentada, não há por que se deixar de reconhecer a ilegalidade da aplicação da causa de aumento da pena à hipótese em que não deveria incidir. Sendo patente a falta de justa causa para o agravamento da reprimenda, a matéria pode e deve ser conhecida. Parece uma demasia e um desserviço ao próprio Judiciário remeter o cidadão ao manejo de uma revisão criminal, cujo tramite é muito mais demorado e pode importar na prisão do cidadão, quando se pode resolver a ilegalidade, rapidamente, pela via mandamental.
Tampouco o trânsito em julgado impede o conhecimento do writ. É antiga e reiterada a jurisprudência nesse sentido. O ministro Cezar Peluso, processualista de mão cheia, advertia para a irrelevância do trânsito em julgado da condenação, devendo prevalecer a "tutela constitucional do direito individual da liberdade". E prosseguia: "o habeas corpus constitui remédio hábil para arguição e pronúncia de nulidade do processo, ainda que já tenha transitado em julgado a sentença penal condenatória" (STF, 2ª T., HC n.93.942, DJe 01/8/2008). Idem o Min. Celso de Mello no HC n. 172.810 (DJe 16/8/2019) e o Min. Marco Aurélio no RHC n. 128.096 (DJe 26/6/2019).
Não há razão lógica e nem jurídica ante os termos amplos da Constituição e do Código de Processo Penal para se restringir a garantia do Habeas Corpus e impedir que se afaste uma ilegalidade, mesmo havendo o trânsito em julgado da condenação. Até mesmo a sistemática de se conceder de ofício a ordem nos termos em que requerida pelo impetrante soa disfuncional e passível de crítica, pois o "conhecimento de ofício" pressupõe que não haja pedido e, havendo, ou bem se conhece da impetração porque estão presentes os pressupostos autorizadores, ou bem não se a conhece. O que parece ser um verdadeiro contrassenso é a concessão da ordem de ofício nos termos em que pedida. Seja como for, superada a questão técnica, o importante é afastar a ilegalidade.