“Operadores de esquemas” devem responder por crime de favorecimento real

Ademar Rigueira Neto -

“Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador” — Eduardo Galeano

A grande mídia tem largamente difundido as investigações acerca da operação “lava jato”, uma novela que vem se arrastando ao longo de anos com intensa popularidade e audiência. Nela, destacam-se, em ritmos descompassados, atores, coadjuvantes e figurantes.

Os diretores e roteiristas contam suas histórias como pretendem que elas sejam escritas e divulgadas perante uma população ávida por uma prestação jurisdicional rápida e eficiente, independente dos desrespeitos às garantias individuais que isso possa provocar.

As prisões antecipadas, fruto de um apanhado de meros indícios, garantem a audiência almejada, anunciando na grande mídia, com requintes de elaborada publicidade, os autores (empresários e políticos), coautores (funcionários hierarquicamente inferiores) e partícipes (quase sempre denominados de operadores da famigerada propina).

O que deveria ser tratado na esfera da figuração, tornou-se emblemático, a partir da elucidação da participação do “doleiro” Alberto Youssef (confissão em condutas típicas de Lavagem de Dinheiro e Corrupção Passiva) como operador da propina no caso Petrobras/“lava jato”.

A partir deste contexto, em cada operação se faz imprescindível a indicação do corruptor, corrupto e de seu partícipe ou coautor denominado operador.

O operador, na forma que é catalogado na grande mídia, não resiste à imputação das condutas previstas no artigo 317 do Código Penal.

Ocorre que nem sempre, ou quase nunca, se tem na figura do operador uma participação requintada como a exposta pelo “doleiro” referido. Na grande maioria dos casos, o figurante operador nada mais faz do que arrecadar, não sendo peça essencial na perpetração do referido delito, e seu envolvimento possui diminuta relevância para o desenrolar fático da operação.

Um acordo em tese celebrado entre empresários e os agentes políticos visando ao pagamento de propina não passa pelo operador/arrecadador, até porque ele, normalmente, não detém qualquer poder dentro da estrutura hierárquica político governamental.

Não tendo o operador participação no acordo entre empresários e agentes políticos, não tendo poder de mando dentro do aparato estatal, em especial para tratar e decidir sobre aquele assunto específico, ainda que se negasse a cumprir as orientações de seus superiores para viabilizar o recebimento da propina negociada, não conseguiria evitar o resultado.

Neste sentido, esclarece a doutrina de Arthur Pinto de Lemos Júnior que, havendo domínio por organização, a estrutura tida por criminosa confere ao “sujeito de trás” o controle do funcionamento da associação semelhante ao de uma máquina, e os fatos se desenrolam independentemente da vontade autônoma do executor.

Para Roxin, a fungibilidade é o que garante ao “homem de trás” a execução do fato e o permite dominar os acontecimentos. Como bem explica o doutrinador, o autor imediato é apenas uma engrenagem substituível na maquinaria do aparato de poder, ou seja, em caso de falhas ou má-execução, poderá ser facilmente substituída por outra.

Assim, fácil perceber que o verdadeiro instrumento não é a pessoa individual, mas sim um mecanismo de poder que funciona de modo praticamente automático, um aparato que seguirá funcionando sem maiores dificuldades, mesmo com a eventual negativa do indivíduo executor de agir. Desaparece, portanto, a vontade do indivíduo, a qual sucumbe à vontade da organização.

Em última análise, pois, evidencia-se a inexistência de um codomínio funcional do fato pelo executor, porque, no esquema caracterizado pela sua fungibilidade, este não detém o domínio do fato ou a energia necessária para obstar o êxito do crime planejado. O executor, reitera-se, é uma mera peça dentro de uma máquina sofisticada, perfeitamente substituível por outra e por isso merece ter sua responsabilidade penal excluída.

É exatamente o caso da grande maioria dos operadores citados nas mais imagináveis operações da nossa Polícia Federal, posto que em virtude da ausência de autonomia para adotar decisões quanto ao pagamento ou não de vantagens indevidas por parte de empresários, a sua participação nos fatos geralmente é absolutamente substituível.  

Conclui-se, assim, pela absoluta ausência de domínio do fato da maioria dos operadores/arrecadadores, inserindo-os, necessariamente, em diferente patamar de culpabilidade, impossibilitando-se, pois, a pretensão ministerial de imputar-lhe sempre o crime de corrupção passiva em coautoria com os demais acusados.

Diante deste quadro, outra possibilidade seria tentar imputar a eles arrecadadores a responsabilidade pela aludida prática delitiva a título de partícipe. A referida participação, in casu, configurar-se-ia em sua modalidade material, através da chamada cumplicidade, que é, nos dizeres de Heleno Cláudio Fragoso, “o auxílio prestado à ação delituosa, com pleno conhecimento de causa”.

Entretanto, a referida hipótese tampouco é possível na grande maioria dos casos divulgados. Isto porque, conforme assente na doutrina, não existe participação quando o crime já estiver consumado. A participação só pode ser considerada desde a deliberação até a consumação do delito apurado, como parte integrante do iter criminis.

Assentado que a participação não pode ocorrer nas hipóteses em que o delito já tiver sido consumado, no caso dos crimes de corrupção passiva, por ser crime formal, a sua consumação ocorre com o mero ato de solicitar, receber ou aceitar a promessa de vantagem indevida, não sendo sequer necessária a efetiva entrega/recebimento da vantagem para que aja a consumação do delito.

Nessa seara, no caso em que o operador/arrecadador não participa dos acordos celebrados entre empresários e agentes políticos para o pagamento de vantagens indevidas, momento em que se consuma o delito de corrupção, não há como considerá-lo partícipe do crime.

Na verdade, o seu eventual envolvimento nos fatos, só ocorre na fase de exaurimento do crime de corrupção passiva, quando se estava em busca de assegurar o proveito das vantagens indevidas recebidas.

O exaurimento do crime ocorre posteriormente à consumação do fato, e, se realizado pelo próprio agente, não é punível, porque, pelo princípio da consunção, é absorvido pela própria conduta delituosa, sendo exclusivamente nela punido.

Feitas estas considerações, é de se perceber que, em primeira análise, a situação jurídica do arrecadador/operador é, no mínimo, contraditória, pois este (i) não pode ser entendido como coautor ou partícipe no crime de corrupção passiva, mas também (ii) não pode ter a punibilidade excluída pela consunção, posto que não foi o responsável por praticar o crime de corrupção passiva.

A solução para a referida questão, reside fora das telas globais, mas dentro da lei, posto que não há participação inócua. Caso o arrecadador/operador atue após a consumação do delito de corrupção pratica delito autônomo de favorecimento real, previsto no artigo 349 do Código Penal.

Nesta conduta própria, correlata, mas independente da corrupção, o agente atua para tornar seguro o proveito do crime, é o que Luiz Regis Prado define como “auxilium post delictum”.

Assim, demonstrada a impossibilidade de configuração típica do crime de corrupção passiva imputado normalmente aos operadores/arrecadadores das mais variadas operações, a desclassificação para o crime de favorecimento real, previsto no artigo 349 do Código Penal, faz-se necessário por ser a conduta tipicamente adequada. Só nos resta saber se isto interessa aos historiadores contratados pelos caçadores.

 

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