Por Leonardo Pantaleão -
Em que pese se tratar de temática absorta pela legislação processual penal desde a década de 1940 (especificamente 1942, quando da entrada em vigor do Código de Processo Penal), o assunto destacou-se recentemente por transparecer prática recorrente no âmbito de grandes operações policiais.
Desde então, a sua legalidade sob o prisma constitucional e infra fora alvo de inúmeros debates no mundo jurídico, de tal forma que o Supremo Tribunal Federal foi destinatário de ações judiciais, no sentido de que se firmasse entendimento sobre tema de absoluta relevância, qual seja, a existência ou não de sustentáculo jurídico para justificar a condução coercitiva de pessoas investigadas para atos de interrogatório.
A par de qualquer desfecho, imperiosa se faz uma análise acurada das cercanias que norteiam referido tema, na realidade jurídica vigente, razão pela qual se pretende, de forma objetiva, apresentar ao leitor uma visão panorâmica dos dispositivos legais aplicáveis, em consonância com as regras constitucionais advindas da carta política de 1988.
Vestibularmente, trata-se de previsão legal contida no bojo do artigo 260 do Código de Processo Penal. Verifica-se, assim, que o texto do dispositivo é explícito no sentido de possibilitar a condução coercitiva, entre outras hipóteses, também para fins de interrogatório, o que, prima facie, poderia fazer desaparecer qualquer interesse jurídico sobre a questão.
Porém, como já ressaltado, não se pode descurar que referida norma de natureza infraconstitucional data de período que antecedeu a Constituição da República, razão pela qual a análise acerca de sua eventual recepção se faz mister.
Sabe-se que através do mandado respectivo, o investigado (ou acusado) tem sua liberdade de locomoção cerceada pelo transcurso de tempo suficiente para ser conduzido até a polícia judiciária ou Ministério Público, para participar de ato de investigação preliminar em que se considere sua presença fundamental. Entende a doutrina, sob esse prisma, que tal restrição a liberdade ambulatorial não poderia ultrapassar o limite de 24 horas.
Destaque-se, por relevante, que a condução coercitiva não se confunde, sob nenhum aspecto, com prisão de natureza cautelar (seja temporária ou preventiva). Aliás, acerca do enfoque das medidas cautelares de natureza processual penal, tem-se que os artigos 319 e 320, ambos da lei penal adjetiva, não a contemplam em seu rol. Porém, inevitável concluir, até mesmo pelo seu efeito imediato, que corresponde, inexoravelmente, a uma medida cautelar de natureza pessoal.
A partir daí, por haver restrição (mesmo que por curto período) à liberdade de locomoção, conclui-se que somente a autoridade judiciária é que tem atribuição para a expedição de mandados correlatos, ex vi do disposto no artigo 5º, LXI, da Constituição Federal e no artigo 282, parágrafo 2º, da lei processual penal. Trata-se, assim, de cláusula de reserva de jurisdição. A suprema corte, em sentido diverso, tem precedente isolado, entendendo, sob a ótica do artigo 4º do Código de Processo Penal, que a polícia judiciária tem legitimidade para, sob o comando da autoridade policial, adotar todas as medidas necessárias à elucidação de um delito, incluindo-se aí a condução de pessoas para prestar esclarecimentos, resguardadas as garantias legais e constitucionais dos conduzidos.
Por outro lado, superada a questão atinente à autoridade competente para a expedição do mandado correspondente, com a devida venia a posicionamentos diversos, forçoso concluir que a melhor exegese do artigo 260 do CPP à luz da Constituição da República é no sentido de que a possibilidade de condução para fins de interrogatório colide com garantias individuais, entre as quais aquela decorrente do direito ao silêncio do investigado (artigo 5º, LXIII, CF), que tem como consectário lógico o direito de não produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere).
Isso não significa, entretanto, que o investigado (ou acusado) não possa ser destinatário de mandado desse jaez, desde que em circunstâncias que não o obriguem a produzir provas contra si próprio, como, por exemplo, participar de reconhecimento pessoal (é um ato que não demanda comportamento ativo por parte do investigado e, portanto, não infringe a principiologia referida), identificação criminal, entre outros.
Outra situação relativa ao tema, e capaz de gerar controvérsia, refere-se à possibilidade de a autoridade judiciária expedir mandados de condução coercitiva paralelamente a outros de busca e apreensão (usual em grandes operações), com o intuito de evitar que o investigado atue de maneira a destruir provas ou, até mesmo, sonegar fontes delas. A análise sob o manto constitucional, adotando-se o mesmo critério acima indicado, conduz a uma conclusão acerca de sua possibilidade, pois, assim como nas situações exemplificativamente mencionadas, não se impõe qualquer comportamento ativo de sua parte, capaz de lhe causar reflexos desfavoráveis no âmbito da seara penal, o que legitima tal prática.
Parece-nos, por fim, que a releitura do artigo 260 do Código de Processo Penal, sob o espectro constitucional, evidencia que, mesmo em caso de desatendimento do investigado a chamamento para ato de interrogatório, sua condução coercitiva caracteriza abuso estatal, haja vista que não se encontra razoabilidade em conduzi-lo forçosamente a ato que, caso assim pretenda, possa permanecer em silêncio por força da carta política. A insistência na adoção de procedimento desta natureza deve, indubitavelmente, ser severamente punida, pois, na maioria das vezes, está permeada por interesses outros, dentre os quais o escárnio público, o que não pode contar com o beneplácito das autoridades.