Por Patrick Assunção Santiago e Thales Souza Silva -
Antes de nos imiscuirmos no mérito da temática, vale apontar algumas advertências sobre os limites do próprio texto. De início, ressaltamos não ser o seu objetivo "obviar o óbvio", como poderia parecer. Pelo contrário, a importância de proceder com a (re)leitura sistemática da norma é taxonômica, destacadamente no cenário atual, haja vista a confusão de conceitos que acerca os seus contornos interpretativos, não só no imaginário popular como também no dia a dia dos tribunais. Se pudermos adiantar, o problema decorre da má compreensão da linguagem. Aliás, segundo Wittgenstein, os maiores problemas filosóficos exsurgem do mau uso da linguagem.
Não suficiente a advertência inicial, oportuno trazer à baila a lição de Sebastián Soler, quem afirmou:
"A só existência de lei prévia não basta; esta lei deve reunir certos caracteres: deve ser concretamente definitória de uma ação, deve traçar uma figura cerrada em si mesma, por meio da qual se conheça não apenas qual é a conduta compreendida, mas também qual é a não correspondida".
Vamos além: a norma há que ser clara e a interpretação deve ser honesta e prudente, respeitados os limites traçados pelo legislador, nomeadamente no campo criminal, por lidar com tão mais severa constrição do estado de liberdade do indivíduo (status libertatis-status dignitatis).
Nessa linha de entendimento, o doutrinador italiano Luigi Ferrajoli, em paráfrase, acentua que a solução das incertezas relativas e correlativas subjacentes ao processo penal deve se dar, no âmbito normativo, por critérios de interpretação; no âmbito da prova, pelo convencimento racional. Em outras palavras, não pode o operador do Direito, mascarando os defeitos da legalidade estrita, preencher lacunas com arbítrio, sob o argumento de livre convicção; tem ele o dever de interpretar a norma acorde com as alternativas e os limites por ela própria acusados (Ferrajoli, 2014, p. 106).
Posta a questão nesses termos, passaremos à apresentação dos limites hermenêuticos do artigo 133, §2º, do Código Penal (abandono de incapaz com resultado morte).
De início, destacamos se tratar de crime de perigo, não de um crime de dano ou resultado. Mais especificamente, o abandono de incapaz é crime de perigo concreto, consoante remansosa doutrina nacional. Nesse sentido, Rogério Greco (2017, p. 280), Rogério Sanches Cunha (2016, p. 145) e Damásio de Jesus (2020, p. 246).
Em sua modalidade fundamental, é crime de perigo concreto, ao passo que, quando resulta a morte, é crime de perigo concreto qualificado pelo resultado. A distinção entre o perigo concreto e o abstrato reside na desnecessidade de sua efetiva demonstração, não no nível de previsibilidade do resultado, como se poderia supor.
Primeiro limite interpretativo: é possível que o indivíduo, ao abandonar criança de cinco anos num elevador, responda nos termos da norma penal de que falamos, desde que demonstrada, em concreto, a provocação do perigo e o resultado morte, independentemente de, em prognose póstuma objetiva, ter sido ou não o resultado previsível.
Veja-se que, ao falar em previsibilidade, adentramos a análise do elemento subjetivo do tipo penal. Seja por se tratar de um crime de perigo, seja em razão do princípio da excepcionalidade do crime culposo (artigo 18, parágrafo único, do CP), o sujeito somente responderá nos termos da norma penal se atuou com o dolo direto (vontade e consciência) ou eventual (consentimento), acrescemos, não para com o resultado morte, mas para com o abandono.
Quando falamos em dolo, estamos abordando um elemento cujo teor é formado pela classificação jurídica de aspectos subjetivos de conteúdo anímico do sujeito, verificados por ocasião da realização de determinada conduta de interesse do Direito.
Vale ressaltar que o dolo consiste em um "recurso operacional", na medida em que a conduta será classificada como subjetivamente típica quando os aspectos psicológicos e intelectuais que a compõem correspondam à hipótese taxativamente prevista no texto legal. Desse modo há certa "adequação típica" subjetiva e anímica entre uma conduta implementada pelo sujeito na realidade empírica e o evento típico.
O dolo de perigo é incompatível com o dolo de dano, pois possuem naturezas irreconciliáveis. Assim, dados os limites hermenêuticos do artigo 133, a lesão corporal de natureza grave e a morte, caso haja, somente podem constituir frutos da culpa, nunca do dolo.
Com precisão maior, o delito de que falamos é preterdoloso. O dolo no antecedente pressupõe a culpa no consequente, daí se falar em crime qualificado pelo resultado. Aliás, se a conduta consciente e voluntária estiver voltada à realização do resultado morte, estaremos diante de infração penal diversa, prevista no artigo 121 do Código Penal.
Segundo limite interpretativo: é possível que o indivíduo, ao abandonar criança de cinco anos num elevador, responda nos termos da norma penal de que falamos, desde que tenha desejado provocar o perigo ou assumido o risco de provocá-lo, respondendo, a título de culpa, pelos desdobramentos desse perigo (delito preterdoloso).
A esta altura, o leitor já está consciente do pano de fundo do debate. O enigmático caso do garoto Miguel, que não há muito tempo levantou dúvidas a respeito da aplicação do artigo 133, §2º, do CP sobre aqueles fatos. Entendemos que a suposta falta de previsibilidade do resultado não é capaz de afastar a incidência do dispositivo penal sob exame. Por outro lado, a conduta não se subsume à figura delitiva em questão. Explicamos o porquê.
Ao promover a adequação de um fato à norma penal, deve-se trabalhar, logo de início, com os elementos descritivos do tipo. Diz a norma incriminadora: "Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono (…) pena de seis meses a três anos se resulta morte" (artigo 133, §2º, do CP).
O verbo nuclear é o ato de abandonar pessoa incapaz, quer dizer, deixar ao desamparo, afastar-se para sempre ou por um longo período de tempo, deixar à própria sorte. Embora os tribunais, para fins de caracterização do delito, tendencialmente, se satisfaçam com a mera separação física entre os sujeitos, o que se faz é extrapolar os limites hermenêuticos do tipo penal. Isso porque a separação física por exíguo período de tempo, no nosso entender, não significa abandono; é necessário o decurso de tempo juridicamente relevante. Também nesse caminho, o magistério de Rogério Sanches Cunha:
"Pode ser praticado mediante ação ou omissão, sendo indiferente se o abandono é definitivo, desde que por tempo juridicamente relevante".
Interpretações em sentido diverso terminariam por deslegitimar a atuação do Direito Penal. É que a separação física é acontecimento comum entre pais e filhos, tutores e tutelados etc. Sendo o objetivo primeiro da tutela penal evitar a prática de delitos, é certo que não ostentaria poder dissuasório algum ao incidir sobre condutas que, em princípio, não violam a sociabilidade, melhor, não são antissociais.
Mesmo que assim não fosse, no caso Miguel, o tempo transcorrido entre a separação física dos sujeitos e a eclosão de efetiva situação de perigo dá a entender que a autora da conduta não estava, de modo consciente e voluntário, inclinada a abandonar. Isso dizemos por ser impossível incursionar pela mente do sujeito ativo, tal que o dolo haveria de ser extraído das circunstâncias objetivas do caso concreto. É dizer, salvo por mera especulação, não podemos afirmar que o sujeito ativo pretendesse deixar o incapaz ao desamparo, à própria sorte, ou afastar-se por longo período de tempo.
Terceiro limite interpretativo: seja por ausência de tipicidade objetiva, seja por ausência de tipicidade subjetiva, o desamparo por interregno de tempo juridicamente irrelevante não é abandono, para os fins colimados pelo dispositivo legal.
Chegamos à seguinte conclusão: O crime exige efetiva demonstração de perigo, presente na espécie pelo próprio resultado morte. A previsibilidade do resultado, por sua vez, não está em causa, por se tratar de um delito preterdoloso. Por outro lado, não há falar em abandono de incapaz quando, diante do estreito período de desassistência, as circunstâncias objetivas do caso concreto levam a crer que não houve intenção de abandonar (dolo no antecedente).
Retomando o primeiro parágrafo, o objetivo deste artigo não é "obviar o óbvio". Apesar do título, cuida-se de uma análise tão concreta quanto abstrata. No caso concreto, não estamos afastando as inúmeras possibilidades de tipificação da conduta, mas esclarecendo que a figura do artigo 133, §2º, do Código Penal, por falta de tipicidade objetiva e subjetiva, é inaplicável.