OS RISCOS DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL NAS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA

Por Myrella Antunes Fernandes -  

A busca por respostas e soluções rápidas pela sociedade se aproxima cada vez mais do processo penal. E a sessão de terça-feira (24/11) do Conselho Nacional de Justiça, com a apreciação da proposta do Ato Normativo 9.672, que alterou a Resolução nº 329 de 30/7 deste ano em seu artigo 19, possibilitando a realização de audiência de custódia em meio virtual no contexto de pandemia, é uma das demonstrações disso.

Em meio à discussão, foi inserido em referido artigo parágrafo que possibilita a realização de acordo de não persecução penal (ANPP) em audiências de custódia. Algo inédito e que ficou em segundo plano na discussão ante o problema maior enfrentado pelas defensorias e entidades de direitos humanos presentes na sessão: a realização de audiências de custódia de modo virtual, que parece frustrar o objetivo primordial do instituto. O presente artigo aborda os riscos da adoção do ANPP nas audiências de custódia e possíveis reflexos no sistema de garantias posto com sua realização. Vejamos.

A inserção de institutos negociais da legislação pátria que tentam resolver o problema de administração da Justiça existe desde a Lei 9.099/95 e se estende até ao mais recente ANPP. Este nasce pela Resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público, tendo sido incorporado pela via legislativa com a Lei 13.964/2019 (pacote "anticrime"). Em breve síntese, o instituto processual se apresenta como aplicável no momento em que, após a conclusão da investigação preliminar, o promotor, nos casos de infrações que possuam pena mínima inferior a quatro anos, consideradas as causas de aumento e diminuição e desde que não envolva violência ou grave ameaça (CPP, artigo 28-A), oferece o acordo mediante confissão circunstanciada e cumprimento de algumas obrigações fixadas.

Já a audiência de custódia, conquista histórica que não se insere na discussão da Justiça penal negociada, está prevista em tratados internacionais de que o Brasil é signatário (artigo 9º, item 3, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, bem como o artigo 7º, item 5, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos) foi implementada a partir de 2015 em São Paulo e atualmente está presente em todos Estados da federação. A função das audiências de custódia em linhas gerais é apresentar o custodiado em 24 horas ao juiz para que este possa verificar em audiência eventuais abusos ou ilegalidades decorrentes da prisão para em seguida analisar eventual necessidade de permanência da privação de liberdade, ou se é possível fixação de medidas cautelares ou concessão de liberdade provisória (CPP, artigo 310).

Em audiências de custódia que pude acompanhar de 2017 a 2019 no Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo, a advertência realizada no início dos atos era uma constante: "Essa audiência aqui não tem como objetivo analisar a culpa do senhor ou ouvir seus esclarecimentos sobre o ocorrido. Isso será realizado em outra audiência com outro juiz. Vou verificar aqui a somente questão da prisão do senhor, ok?".

 

Nos intervalos das audiências, ouvia-se discussões de que seria interessante aproveitar a audiência de custódia e já encerrar tudo no mesmo ato saindo o averiguado com uma eventual condenação em casos "simples". No entanto, parecia mais uma utopia do que um vislumbre de atores do sistema de Justiça que lidam com grande carga de trabalho. Não houve discussões extramuros do fórum.

É com choque, portanto, que se observa o Ato Normativo 9.672 do Conselho Nacional de Justiça, aprovado na sessão de terça-feira, que alterou o artigo 19 da Resolução nº 329 de 30/7. O foco das discussões estava direcionado para a permanência de não realização de audiências de custódia de modo virtual, o que foi bravamente defendido pelos diversos amicus curiae lá presentes.

No entanto, o §3º do artigo 19 com redação a partir do ato normativo proposto apresentou-se como o ovo da serpente:

"§3º. A participação do Ministério Público deve ser assegurada, com intimação prévia e obrigatória, podendo propor, inclusive, o acordo de não persecução penal nas hipóteses previstas no artigo 28-A do Código de Processo Penal".

Parece claro, que pela localização do artigo no Código de Processo Penal e pelo início do caput do artigo 28-A, que prevê "não sendo caso de arquivamento (...)"  que a proposição do acordo de não persecução penal se dá num segundo momento após a conclusão das investigações preliminares que demonstrem indícios de autoria e prova da materialidade.

De fato, o inquérito policial não é indispensável para propositura da denúncia. No entanto, não é possível afirmar que a confissão circunstancial de um réu ou eventuais bens que lhe acompanhem no momento da prisão em flagrante possam por si só embasar uma eventual denúncia caso não seja possível o ANPP na audiência de custódia. O que a inserção do §3º no ato normativo dá a entender é que uma confissão circunstancial na audiência de custódia poderia eventualmente suplantar uma denúncia por si só sem qualquer outro elemento de prova. E não pode. Não no nosso sistema posto. Nem mesmo incontroversa é a constitucionalidade da necessidade de confissão para realizar o acordo de não persecução penal. E muito menos de que essa pode ser base de denúncia em caso de descumprimento de acordo (CPP, artigo 28-A, § 10).

As concessões e mitigações de garantias geradas pela Justiça negociada demandam um debate franco entre a academia, os atores do sistema de Justiça criminal, o Legislativo e, principalmente, com a sociedade, já que coloca em risco o sistema de garantias posto para sua proteção em face do poder estatal. A inserção legislativa do ANPP pelo pacote "anticrime" não apresenta previsão de autorização de supressão de investigações preliminares, por meio de uma confissão circunstancial, em troca de uma pena. Importante consignar nesse sentido que, em caso de descumprimento do acordo, há previsão de imediato oferecimento de denúncia (CPP, artigo 28-A, §10) e em uma única audiência de custódia não parece crível que seja possível reunir elementos de autoria e materialidade para suplantá-la.

Em disciplina de pós-graduação oferecida nesse semestre, de modo virtual, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, que tinha como proposta a análise da Justiça penal negociada e o futuro do processo penal brasileiro à luz do processo penal comparado, tive a oportunidade de estudar o modelo chileno. E o que chamou atenção foi estudo realizado por Valentina Zagmutt Venegas nos anos de 2016 e 2017 , que apresenta análise de audiências de controle de detenção, a nossa audiência de custódia, e os acordos que nela se realizam.

Demonstra a pesquisadora  que a proposta e a realização de acordos quando o acusado ainda está impactado por sua recente prisão e sabendo que sua decisão impacta diretamente na manutenção ou não da prisão e na quantidade de pena proposta impele o aceite do acordo. Isso porque os promotores observados nas audiências acompanhadas por Zagmutt Venegas afirmavam para os custodiados que as penas poderiam ser outras em caso de não realização de acordo e eram mais incisivos sobre a manutenção da prisão ou impossibilidade de liberdade do custodiado em caso de sua não realização .

O modelo aprovado nos anos 2000 no Chile não apresentava nenhuma previsão de possibilidade de proposição de acordos logo na primeira audiência. Com a Lei 20.074/2005 é que se tornou possível o oferecimento de acordo já na audiência de controle de detenção ou nas audiências de formalização. Mauricio Duce, um dos reformadores do Código de Processo Penal Chileno, apresentou recentemente estudo  sobre o risco de condenações errôneas pela possibilidade de acordos já na audiência de custódia e a ausência de controle por parte dos magistrados, já que que só existe um rápido aceite da confissão sem maiores análises, já que ausentes elementos de investigação para se analisar, reafirmando a seletividade do sistema. O resultado dessa celeridade almejada não resolveu problemas sociais do Chile, que permanece com índices de criminalidade no mesmo patamar anos após anos, sem apresentar resultados satisfatórios.

A experiência do sistema chileno mostra um prelúdio do que podemos passar em breve (se já não passamos). A análise econômica do Direito, temática de claro interesse do chefe do Poder Judiciário, e a busca por um rápido fim ao processo a todo custo acaba por permanecer não resolvendo o problema no fim do dia e, o pior, coloca em risco o sistema de garantias já tão mitigado no dia a dia do sistema de Justiça criminal. E quem sofre os efeitos dessa decisão não é a academia, nem os integrantes do sistema de Justiça criminal, mas, sim, o indivíduo que se senta no banco dos réus. Que ao final pode ser qualquer um da sociedade. Precisamos ficar atentos.

 

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