Por João Marcos Buch -
A violência é um fenômeno que tem assombrado todos os brasileiros, com mais gravidade as populações econômica e socialmente vulneráveis, que enfrentam diariamente confrontos entre as forças públicas de segurança, milícias e facções.
Na perspectiva do Estado, há uma necropolítica que reduz os direitos humanos e os paradigmas constitucionais a meros obstáculos ao enfrentamento do crime. As leis penais de emergência, cujo ápice está na Lei Antidrogas e, mais recentemente, em boa parte do pacote "anticrime", continuam ideológica e prioritariamente comprometidas com o aprisionamento e a neutralização.
Dentro do sistema de Justiça criminal e penitenciário vive-se sob a égide de um Direito Penal segregacionista, destinado a encarcerar na sua maioria pessoas de 18 a 28 anos de idade, pretas, pardas e pobres. Atualmente, são mais de 800 mil presos no Brasil, o que em números absolutos significa a terceira maior população carcerária mundial, ficando atrás dos EUA e da China. Há pouco mais de uma década esse número era pela metade. A perspectiva é de se chegar durante a terceira década deste século com mais de um milhão de presos. E não há vagas para todo esse contingente. O Estado não investiu e não investirá o suficiente em prisões e recursos humanos por uma questão puramente de cálculo e erário público.
O resultado do superencarceramento se constata nas unidades prisionais por todo o país, onde, ressalvadas exceções, detentos vivem em condições subumanas, sem colchão para dormir, sem vestuário, sem kits de higiene, sem trabalho, sem estudo, sem acesso à saúde primária, sem nada.
Nesse contexto, para suplantar o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário, declarado pelo STF na ADPF 347, além dos pressupostos básicos da distribuição de renda, oferta de oportunidades iguais a todos, descriminalização das drogas e combate ao racismo, ações imediatas devem ser tomadas.
É claro que, num país cujo governo insufla polarizações e ataques contra quem não se encaixa em sua ideologia, pode soar romântico apresentar propostas para a superação da cultura do encarceramento em massa. Entretanto, quando a onda passar e a retificação vier, os espaços democráticos precisarão ser novamente ocupados. Para isso, os pilares fundamentais deverão estar em pé.
Pois bem, a partir de leituras, permanentes reflexões e muito trabalho, compartilho do entendimento daqueles que apontam as alternativas penais e a assunção efetiva das responsabilidades pelos atores jurídicos em face das garantias fundamentais das pessoas privadas de liberdade, devidamente capacitados para tanto, como caminhos viáveis a serem trilhados e que teriam reflexos positivos em todos o sistema prisional.
Sem adentrar na importância das audiências de custódia, imprescindíveis para qualquer política de Estado que se pretenda séria, o investimento e fomento na criação de unidades judiciárias exclusivas para execução de penas restritivas de direitos e privativas de liberdade em regime aberto, bem como livramento condicional e sursis, com apoio na instalação de centrais em cooperação entre o Poder Judiciário e o Poder Executivo, faria o cárcere desafogar. Há quem alerte que medidas nesse sentido apenas aumentariam o braço penal e que, além de nada desafogar, ainda fariam com que mais pessoas se submetessem ao controle estatal. Essa é uma advertência importante e deve ser considerada, exatamente para que as alternativas penais não se afastem de sua essência originária de rompimento do ciclo da opressão e se constituam efetivamente de instrumentos libertadores. Isso é possível.
Além do mais, inspeções prisionais pelos juízes da execução penal e a fiscalização por outras instituições, com escuta específica de presos e trabalhadores, tratamento e seguimento das questões que envolvam tortura, atenção à saúde (Covid-19) e finalmente tomada das inspeções como atestado das condições de custódia, com o intuito de orientar decisões sobre prisões e início da implantação de numerus clausus, distensionariam o sistema. Tudo a partir de atores jurídicos capacitados em ética e humanismo, com concentração na execução penal e conteúdos mínimos, como Regras de Nelson Mandela, Protocolo de Istambul, Regras de Bangkok e Princípios de Yogyakarta, entre outros.
A concretização de penas restritivas de direitos e de medidas alternativas à prisão, com o protagonismo efetivo dos atores jurídicos capacitados, é urgente. Reduzindo o encarceramento, deixando o Direito Penal no seu devido lugar, de última ratio, o Estado conseguirá cuidar conforme a Constituição daqueles a quem, depois do devido processo legal, não restou outra possibilidade que não a privação da liberdade.
Há poucos dias estive no cárcere para mais uma inspeção. Como muitos outros colegas, reputo o trabalho do juiz da execução penal e corregedor do sistema prisional como o de um médico de pronto-socorro, que deve ser presencial. Respeitando os protocolos sanitários, dialoguei com os gestores e trabalhadores e entrevistei detentos. É exaustivo ver a dor que a prisão causa, uma dor não prevista em lei e nem exarada na sentença condenatória, que não decorre apenas da privação da liberdade, mas advém de um flagelo insculpido em pele humana, que torna indelével a crueldade sem fim do Estado em face do ser humano.
O chão da prisão não ouve e nem aguarda reuniões intermináveis nos palácios. Ele é manchado a cada segundo com a cor vermelha do sangue humano. Enquanto o Brasil continuar a violar os direitos fundamentais, a ignorar a Constituição e, especialmente, a dignidade da pessoa humana (artigo1º, III, da CF), essa terrível mancha permanecerá.