Por Leonardo Magalhães Avelar e Beatriz Machado Seleme -
Ao longo da semana foi publicada decisão do Ministro Celso de Mello, proferida incidentalmente no Inquérito 4831 — que investiga as declarações do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro, sobre alegada tentativa de intervenção do presidente Jair Bolsonaro na Polícia Federal —, em que rejeita a possibilidade de ser concedida ao presidente da República, na condição de investigado, a prerrogativa de prestar depoimento por escrito, bem como reconhece o direito do ex-ministro da Justiça, na condição de coinvestigado, de formular perguntas ao presidente na primeira fase da persecução penal.
A decisão se deu por ter o procurador-Geral da República, Augusto Aras, em resposta a expediente encaminhado pela Chefe do Serviço de Inquéritos da Diretoria de Combate ao Crime Organizado da Polícia Federal (Sinq/Dicor), Christiane Correa Machado, requerido a intimação do presidente da República para exercer o direito constitucional ao silêncio; encaminhar por escrito respostas a questões formuladas pelas partes e/ou pelo ministro relator; ou indicar data e local para oitiva por autoridade policial.
Assim, o ministro Celso de Mello entendeu ser necessário tecer considerações sobre o modo de realização do interrogatório do presidente da República, considerando que a questão a ser apreciada se referiria à seguinte indagação: "o presidente da República, quando figurar como investigado, dispõe, ou não, da mesma faculdade que o ordenamento processual lhe confere (CPP, artigo 221, "caput" e § 1º) quando ostentar a qualidade de testemunha? Ou seja, pode o Chefe de Estado, sob investigação criminal, optar por responder por escrito ao seu interrogatório?".
Embora tenha reconhecido a existência de prerrogativas próprias e específicas, de ordem jurídico constitucional, titularizadas pelo presidente da República, bem como de prerrogativas genéricas, extensíveis a qualquer cidadão que figure como investigado ou réu, o ministro adiantou que, em seu entendimento, a resposta a tal questionamento seria negativa.
Para tal, ressaltou que o interrogatório se rege pelo princípio da oralidade; que a prerrogativa lhe é reconhecida unicamente quando ostentar a figura de testemunha ou de vítima, conforme localização topográfica no Capítulo VI ("Das Testemunhas") do Código de Processo Penal; e que, em conformidade com o princípio republicano e seu dogma da igualdade, o presidente da República não dispõe, quando figurar como pessoa sob investigação criminal, de benefícios derrogatórios do direito comum, ressalvadas as prerrogativas específicas a ele outorgadas pela própria Constituição, lembrando que ninguém está acima da autoridade da Constituição e das leis, não podendo, assim, supor-se titular de tratamento seletivo não previsto ou autorizado pela Constituição.
O ministro argumenta que o interrogatório é um meio viabilizador do exercício das prerrogativas constitucionais da plenitude de defesa e do contraditório, ou ato de defesa, em sentido firmado na própria jurisprudência do STF e na doutrina pátria. Entende que, portanto, o interrogatório configura uma das principais manifestações do postulado do "due process of law", tendo em vista que é este o momento em que o acusado estrutura, plena e adequadamente, sua autodefesa, concretizando o princípio constitucional da ampla defesa.
Neste contexto, afirma que o interrogatório possui formalidades essenciais, cuja omissão acarreta a nulidade do ato, conforme precedentes firmados pelo STF sobre a matéria, em que advertiu, de acordo com a finalidade do artigo 563 do CPP (sobre a nulidade dos atos processuais), que deve-se presumir a ocorrência de prejuízo quando inobservados requisitos substanciais que densificam princípios constitucionais. Destarte, a necessidade de observância dos direitos de presença e de audiência daqueles submetidos à persecução penal, respeitados seus direitos ao silêncio e à não autoincriminação, seriam corolário dos princípios da ampla defesa e do contraditório. Demais disso, ressalta que o interrogatório é caracterizado por seu caráter público, sua natureza personalíssima e sua índole oral.
Portanto, conclui que a persecução penal não se projeta nem se exterioriza como manifestação de absolutismo estatal, de sorte que, em seu exercício indeclinável, a "persecutio criminis" deve ser limitada de acordo com os condicionamentos que lhe impõe o ordenamento jurídico. Afirma que a tutela da liberdade, nesse contexto, representa insuperável limitação constitucional ao poder persecutório do Estado, sendo que o processo penal é instrumento de proteção dos direitos e garantias fundamentais daquele que é submetido, por iniciativa do Estado, a atos de persecução penal, cuja prática somente se legitima quando circunscrita às restrições fixadas pela Constituição, tal como tem entendido a jurisprudência do STF .
O ministro Celso de Mello passa, então, a considerar certas questões que se revelam pertinentes à não aplicabilidade, no caso, do artigo 221 do Código de Processo Penal e de seu § 1º. Defende, então, que a regra inscrita nestes dispositivos legais tem por destinatárias, única e exclusivamente, as autoridades neles referidas, quando ostentarem a condição de testemunhas ou de vítimas de práticas delituosas — de modo que suspeitos, investigados, acusados e/ou réus não dispõem dessa especial prerrogativa de índole processual.
Neste sentido, argumenta que o artigo 221 do CPP constitui regra de direito singular e deve ser interpretado de maneira estrita, não se estendendo ao investigado ou réu, que, independentemente de sua posição funcional, deve comparecer perante a autoridade competente, em dia, hora e local por esta unilateralmente designados, ressaltando que assim tem reiteradamente decidido, em processos de sua relatoria, há mais de vinte anos . Afirma, ainda, que o entendimento não está embasado apenas na literalidade e topografia do dispositivo, mas, também, nos ensinamentos da doutrina pátria e em orientação do STJ .
Entende, portanto, que disso resulta a impossibilidade da aplicação das prerrogativas do artigo 221 do CPP, no caso concreto, ao Presidente da República, tendo em vista que ocupa a condição única de investigado.
Em seguida, o Ministro passa a expor significativa tese de inconstitucionalidade da prerrogativa fundada no artigo 221, § 1º, do CPP, ou seja, da faculdade de prestar depoimento por escrito, instituída exclusivamente em favor dos Chefes dos Poderes da República, tão somente quando figurarem como testemunhas.
Argumenta, citando lições de diversos autores, que o dispositivo tem sido severamente criticado pela doutrina, que reconhece, na prerrogativa, violação direta aos postulados constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do "due process of law", por inviabilizar a plena participação das partes na produção das provas, de modo que chegam a sugerir ser o dispositivo inconstitucional.
Deste modo, entende que essas autoridades, quando arroladas como testemunhas, deverão ser inquiridas, como qualquer outro cidadão, "pela forma normal", ou seja, pessoalmente, em respeito ao princípio da oralidade e do devido processo legal, perante a autoridade competente.
No mesmo tópico, o ministro considera o aspecto do controle de convencionalidade, que compete ao Poder Judiciário e refere-se à aplicação do direito fundamental contido no artigo 8, nº 2, da Convenção Americana de Direitos Humanos, que prevê o "direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos".
Para ele, o direito ao confronto no processo penal, cujo exercício exige a presença física do interrogado, reconhecida nos pactos internacionais àqueles submetidos pelo Poder Público à persecução penal, resta prejudicado pelo privilégio de prestar depoimento por escrito, instituído em favor dos Chefes dos Poderes da República.
O ministro, então, reconhece que, não obstante os fundamentos apresentados para questionar a constitucionalidade do dispositivo, tem o STF observado a prerrogativa inscrita no artigo 221, § 1º, do CPP, em situações nas quais as autoridades mencionadas estejam arroladas como testemunhas e optem pela prestação do depoimento por escrito. Citando como exemplo as decisões em favor de Lula e Michel temer, quando presidentes da República e da Câmara dos Deputados, respectivamente, bem como destacando decisão proferida pelo ministro Joaquim Barbosa, na condição de relator da Ação Penal do Mensalão, ressalta que a prerrogativa foi aplicada tão somente pelo fato de as autoridades ostentarem, nas situações mencionadas, a condição formal de testemunha.
Lembra, também, que os ministros Edison Fachin e Roberto Barroso deferiram a Michel Temer, quando presidente da República, a possibilidade de apresentar depoimento por escrito , com apoio no artigo 221, § 1º, do CPP, apesar de sua condição de investigado. Contudo, em seu discernimento, não pode tal entendimento ser a essas autoridades, inclusive ao presidente da República, quando se estiver diante de situação em que figurem eles como suspeitos, investigados ou réus.
Conclui, portanto, que o presidente Jair Bolsonaro não pode, no caso, utilizar-se da prerrogativa de prestar depoimento por escrito, uma vez que, mesmo se considerada constitucional, tem sua incidência legitimada apenas quando a autoridade ostentar a condição de testemunha. Destaca que, não obstante às considerações anteriores, terá, como qualquer pessoa na condição de investigado ou réu, as garantias individuais fundadas na cláusula do "due process of law".
Finalmente, o ministro Celso de Mello passa ao tópico referente ao direito do coinvestigado (ou, quando for o caso, do corréu) de formular reperguntas ao outro investigado (ou, caso já instaurada a relação processual penal, ao corréu) nos procedimentos estatais de persecução criminal.
Defende que a relevância de qualificar-se o interrogatório no curso do inquérito como meio de defesa conduz ao reconhecimento de que a possibilidade de o investigado coparticipar, ativamente, do interrogatório dos demais coinvestigados/corréus materializa a garantia constitucional da plenitude de defesa, cuja integridade deve ser preservada pelo Poder Judiciário, sob pena de sua arbitrária denegação.
Deste modo, afirma que admitir-se o acesso formal do investigado/acusado aos demais coinvestigados/corréus, por meio de reperguntas a eles dirigidas nos respectivos interrogatórios, é meio viabilizador do exercício das prerrogativas constitucionais da plenitude de defesa e do contraditório, conforme entendimento jurisprudencial do STF .
O ministro Celso de Mello cita, inclusive, trecho de decisão do ministro Joaquim Barbosa na Ação Penal do Mensalão: "Essa particular qualificação jurídica do interrogatório judicial justifica o reconhecimento de que se revela possível, no plano da "persecutio criminis in judicio", "(...) que as defesas dos corréus participem dos interrogatórios de outros réus (...)".
Argumenta, ainda, que o entendimento está também embasado na doutrina, citando trechos das obras de Eugênio Pacelli de Oliveira e Antonio Scarance Fernandes, bem como mencionando, a título exemplificativo, a produção de outros doutrinadores.
O Ministro determinou, então, que deve ser assegurado ao coinvestigado Sérgio Moro o direito de, querendo, por meio de seus advogados, estar presente no interrogatório de Jair Bolsonaro, a ser realizado pela Polícia Federal, garantido, ainda, o direito de formular perguntas.
Em conclusão, a decisão proferida é bastante significativa, na medida em que reconhece o escopo limitado de incidência do artigo 221 do CPP e fortalece a aplicação do princípio constitucional da ampla defesa no âmbito da primeira fase da persecução penal, ao permitir que se participe ativamente dos depoimentos realizados no Órgão Investigatório.