“Porte de arma de traficante” e caso Bolsonaro: o que têm em comum?

Lenio Luiz Streck -  

Para quem gosta de ativismo, basta lembrar o que já digo de há muito em Verdade e Consenso: o ativismo não é um sentimento constitucional. Ele depende da composição do Tribunal. É behaviorista (comportamental). Logo, depende da opinião pessoal. Logo, é antidemocrático. Às vezes pode até nos agradar. Por vezes, pode acertar. Mas, não há como confiar. Como somos apaixonados pelo ativismo norte-americano, poderia trazer dados do livro The Constitution - An Introduction, em que Michael Stokes Paulsen e Luke Paulsen (New York, 2015), mostram os estragos feitos pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Mas penso que é despiciendo isso. O Brasil fez diversas importações inadequadas, entre elas, o ativismo norte-americano e a ponderação alexiana, da qual a dogmática queiro-suíço fez uma vulgata sem tamanho.

Por que estou escrevendo isso? Para mostrar que o ativismo é caolho. Há uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 3ª Câmara Criminal, que causou celeuma e espanto. Demonstrarei como o espanto se deu pelo motivo errado. A decisão (ler aqui) deixou de dar uma interpretação constitucional ao artigo 212 do CPP em um caso de tráfico de entorpecentes e, ao mesmo tempo, absolveu o traficante do crime de uso de arma de fogo, por entender que, por ser majorante específica do crime de tráfico de drogas, não pode o acusado ser denunciado pelo porte de arma como se fosse conduta autônoma, uma vez que a arma destinava-se ao guarnecimento da atividade de traficância, caso em que supostamente o concurso material restaria por prejudicar o réu.

Ao que sei e vi, ninguém reclamou da decisão que ignorou o artigo 212, mas houve uma grita geral contra uma suposta validação da possibilidade de o traficante poder portar arma na atividade de tráfico. Menos. A Câmara pode não ter sido feliz na confecção do acórdão, que deve ter sido deixado a cargo do estagiário (outro estagiário levanta a placa “ironia”). Mas, no âmago, a Câmara acertou, por se tratar de caso de consunção. Outra coisa: é sempre bom ler todo o acórdão. A ementa pode ser uma caricatura da decisão.

Todavia, o que importa discutir é o modo como essa absolvição do traficante se transformou em uma caja chino (caixa chinesa) escondendo o principal: a adoção pela aludida Câmara de uma tese do século XIX, relativizando um princípio fundamental e uma lei aprovada democraticamente. Quer dizer, a Câmara é progressista de um lado e, de outro, “conservadora”.

Explicarei isso melhor. A preliminar fundamental restou afastada com menor empenho argumentativo, na medida em que o descumprimento da aplicação do artigo 212, do CPP, sem qualquer exercício de jurisdição constitucional, foi simplificado. Isto é, a “relativização” da aplicação de uma garantia fundamental de categoria constitucional — a maior nulidade do sistema — que, inclusive, separa objetivamente a figura do juiz e do Ministério Público e assegura o devido processo legal, não causou o mesmo espanto! Optar pelo emprego de uma velha (e ultrapassada) tese dogmática entre nulidades absolutas e relativas, numa espécie de “katchanga” para dar uma volta na Constituição não traz perplexidade. É difícil olhar o novo com os olhos do velho.

Continuamos a descumprir o artigo 212 do CPP. É curioso ver como a dogmática processual penal segue trabalhando com uma "teoria das nulidades" que antecede qualquer problematização constitucional mais séria. Será que ainda faz sentido falar em coisas como "nulidades absolutas", "nulidades relativas", "anulabilidades" e "meras irregularidades"? Há um encobrimento do fenômeno "invalidade processual" em cada um destes conceitos, quando aplicados, digamos, como "primordiais-fundantes".

Se a nulidade é "absoluta", deve ser decretada de ofício, não preclui e não envolve discussão a respeito do prejuízo; se é "relativa", deve ser alegada tempestivamente, sob pena de preclusão. Será isso assim mesmo? Tenho impressão de que nossos juízes e aplicadores do Direito em geral passam mais tempo tentando "encaixar" determinadas situações processuais nestas classificações "duras" do que "botando o olho na coisa", do que se perguntando pelo sentido que está por trás da aplicação de cada uma das regras do jogo. Ora, a invalidade é uma sanção que se atribui a algum defeito do ato processual, certo?

Se este defeito comprometer alguma garantia constitucional, algum direito fundamental dos sujeitos processuais (seja acusação ou defesa, no caso do processo penal), parece-me que isto não pode ficar "encoberto" pelo manto da "nulidade relativa" ou da "anulabilidade". Não importa o nome que se dê à coisa. O fato é que processo penal é coisa séria demais para ser tratada deste modo. É o direito à liberdade de alguém que está, em última análise, em questão.

Vejam: o processo jurisdicional é a forma encontrada pelo Estado para legitimar o uso da coerção contra alguém acusado de uma infração grave, certo? O resultado de um processo como este é o mais grave possível: a imposição de uma reprovação à conduta de um indivíduo com a marca do Direito Penal, a tal última "ratio". Bem, se é assim, e se o Poder Público só se justifica enquanto tal quando preserva os direitos dos integrantes da comunidade, é preciso que se estabeleçam regras claras a serem por ele respeitadas. As regras do "jogo". O devido processo legal. Então, como é que se "relativiza", assim sem mais, uma regra que serve, justamente, para a imposição de limites ao Estado-juiz? Que delimita os contornos da sua atuação e dos demais atores processuais? Não foi por acaso, e não é sem justificativa, que o artigo 212 do CPP foi aprovado pelo Parlamento. Esta aproximação com o modelo "adversarial", que amplia os poderes das partes (dentre estas, diga-se, o próprio Ministério Público!) e que delimita os poderes do Juízo, decorre de uma interpretação (aliás, correta) das diretrizes constitucionais sobre o processo penal. A Constituição aponta para um sistema acusatório — aqui entendida, ao menos, a separação formal entre as figuras de quem acusa e de quem julga. Pergunto: o artigo 212 CPP é inconstitucional? Se não é, tem de ser aplicado. Simples assim.

Vejam como o ativismo é nocivo: há quem o aplauda no caso da "relativização" da nulidade decorrente do descumprimento do artigo 212 CPP, mas tem um "piti" ao ler sobre o "direito-fundamental-do-bandido-ao-exercício-armado-da-traficância". O reverso é rigorosamente verdadeiro. Isso é assim porque ninguém dá bola para o Direito. Não se argumenta com princípios. A visão é sempre teleológica, finalística.

Post scriptum: imunidade pode ser relativizada? Se, sim, quando? Pergunto: O recebimento da denúncia contra o deputado Jair Bolsonaro (PP) é um ponto fora da curva ou a partir de agora o Supremo Tribunal Federal aplicará esse novo entendimento para todos os casos de discussão de imunidade? Ou o STF só o fez porque era “esse caso”? Sem discutir o mérito do caso (despiciendo falar do abjeto ato do deputado), quero saber se o STF, a partir de agora, dirá que “em casos x, y e z, a imunidade do parlamentar não prevalece”? Só para saber. Veja-se que dias antes, Jandira Feghali (PCdoB) manteve sua imunidade sem máculas, quando associou Aécio Neves ao consumo de cocaína. O senador Fernando Collor (PTC) chamou o procurador-geral da República de f.d.p. Então? Ah, dirá o Líder da Minoria no Congresso, mas esse caso do Bolsonaro é (mais) grave. OK. É grave. Mas a apreciação é moral? É política? Discutimos a imunidade pela apreciação moral do que foi dito? Como sabem, decisões devem ser por princípio e não por política ou moral.

Mas, calma. Quem sabe, não teria errado o STF no caso de Jandira e acertado no caso Bolsonaro? Como saber? Difícil é dizer que o STF acertou nos dois casos. A distinção que o STF faz não é forte e, sim, fraca (subinterpretação), limitando a discussão da diferença entre injúria e outros crimes. Entretanto, isso é suficiente? Por exemplo, “Vossa Excelência é ladrão”: pode? É injúria. Parece que pode. Mas dizer: “Vossa Excelência é um ladrão porque meteu a mão na bolsa x”: não pode? Mas, em termos de imunidade, qual é a diferença entre injúria e calúnia? Ou se um deputado disser: “— Vossa Excelência apoia esse governo sonegador de direitos; seria bom que os contribuintes também sonegassem o pagamento de seus impostos”. Não é injuria e nem calúnia e tampouco difamação. Mas, nesse caso, estará abrangido pela imunidade? Se, sim, OK. Mas, e se não? O que mais não estará abrangido? Cada decisão do STF ilumina (ou escurece) o sistema de justiça. Cada decisão tem efeitos colaterais. Decisões não podem ser ad hoc.

O que está e o que não está abrangido pela imunidade? Como aplicar no futuro o “precedente Bolsonaro”? Esse é o problema: pontos fora da curva, quando se estabelece algum ou alguns, quebram a coerência e a integridade. Para o bem e para o mal. E imunidade está restrita ao prédio do Parlamento? Hoje em dia, na era virtual, isso ainda faz diferença? “—Ah: falei isso, mas foi da tribuna”. Ah, bom. Parafraseando um livro famoso, “precisamos falar sobre a imunidade”. Urgente. Sob pena de o STF escolher em cada caso um determinado tipo de delito que fique dentro ou fora da abrangência. Vem aí uma porção de ações que Eduardo Cunha move(rá) contra os deputados que o ofenderam na votação do impeachment. Estavam abrangidos pela imunidade?

No fundo, tudo tem a ver com o que acima falei. Aplicação do direito de forma subjetiva, por moral ou por política, dá nisso. Isso se vê tanto em habeas corpus quanto em qualquer processo. A linha divisória entre direito e moral já foi ultrapassada de há muito. A questão é saber: quem corrigirá a moral? O direito? OK. Depois a moral volta e corrige, de novo, o direito. Que por sua vez terá que corrigir a moral... ad infinitum.

Moral da história: pau que bate em Chico hoje, pode afofar o lombo de Francisco amanhã.

 

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