Preceitos fundamentais e prestação jurisdicional

Luiz Edson Fachin.

 Ao Judiciário cumpre zelar pela observância dos preceitos constitucionais fundamentais, inclusive no âmbito da própria prestação jurisdicional pelos tribunais. Tal dever abre as portas à arguição de descumprimento, designada usualmente ADPF.

 A ordem constitucional não deixa margem a dúvidas quanto a direitos fundamentais que carregam, em si, preceitos. Mas não é somente neles que a noção de preceito se encapsula.

 Também se alçam no estatuto erigido pela Constituição Federal (artigo 102, parágrafo 1º.), os fundamentos da República, do Estado de Direito democrático, além de princípios cardeais como a dignidade humana, a igualdade, e a livre iniciativa.

 Ato do Poder Público, tanto administrativo quanto judicial, que viole algum desses preceitos pode dar ensejo ao aforamento da arguição, cuja finalidade é cassar os efeitos do objeto da impugnação mediante interpretação conforme à Constituição. Custodia-se, assim, os preceitos fundamentais.

 Calha citar como exemplo que tem magnitude na ordem constitucional as hipóteses de afronta à soberania nacional e ao pluralismo político. Mais ainda: o princípio da interdependência dos poderes implica, no respeito à separação entre si, em preceito fundamental.

 No arquétipo da ADPF não cabe, como se assentado, impedir detrimento a qualquer preceito constitucional, mas tão somente a preceito fundamental. Em mister coerente com seu papel, a doutrina jurídica pode contribuir de modo construtivo e isento de enumeração a priori.

 Em determinados casos podem emergir a dúvida quanto aos preceitos que podem ser compreendidos como fundamentais. Com efeito, as matérias constitucionais sobre esse terreno são vastas, principiando, nas regras expressas pela própria Constituição, pelos princípios fundamentais (artigos 1.º a 4.º), passando pelas garantias da magistratura (artigo 95) e do Ministério Público (artigos 127, § 1.º e art. 128, § 5.º), alcançando ainda as cláusulas pétreas (artigo 60, § 4.º, incisos I a IV), bem como princípios de direito tributário (artigo 150), de direito econômico (artigo 170), da administração pública (artigo 37), nomeadamente neste caso o da impessoalidade e o da moralidade.

 Inexiste, pois, enumeração numerus clausus de preceitos fundamentais da Constituição passíveis de lesão que justifique a arguição de descumprimento. Alguns desses preceitos estão enunciados explicitamente no texto constitucional; nessa expressão estão preceitos fundamentais da ordem constitucional quanto aos direitos e garantias individuais, bem como aqueles inseridos na forma federativa de Estado, na separação de Poderes e no voto direto, secreto e universal.

 Outros se colhem implicitamente do cenário normativo constitucional, como por exemplo, aquele inserido na regra pode dar ensejo à decretação de intervenção federal nos Estados-membros (artigo 34, inciso VII da Constituição Federal).

 Considerando-se que o controle da constitucionalidade tanto se procede de modo concentrado quanto na forma difusa, esse arco constitucional fiscalizatório expõe um importante palco no qual se apresentam as discussões sobre a função jurisdicional à luz do contexto histórico. A propósito, numa síntese, impende registrar que a função que desborda da clássica estrutura de atribuições deferida ao Poder Judiciário, reclama na contemporaneidade um juiz diverso daquele que se apresentava na Modernidade; não se trata mais de uma expressão alongada do poder no Estado e da lógica formal embutida na subsunção. Se o Direito se resume à forma, tem a função jurisdicional um conceito mecânico.

 Diversas são as teorias que debatem a racionalidade jurisdicional: de uma parte, os argumentos para um Juiz Hércules, responsável por uma resposta correta, como se infere do pensamento de Ronald Dworkin, na hierarquização sistemática de princípios; de outra, a retomada da lógica do razoável, como sustentada por L. Recaséns Siches; e ainda os princípios e sua ponderação, como haurida de Roberto Alexy. Tais teorizações são precedidas, no debate contemporâneo sobre o bom juiz, pelas formulações inscritas no pensamento pretérito, retroagindo aos cânones da denominada escola do direito livre e da jurisprudência dos conceitos.

 Não basta, contudo, idealizar a função jurisdicional na realização substancial da Constituição. O Direito presta contas à realidade. Aqui há um débito em aberto. Em sede de efetivação constitucional, realmente deve se ter em mira o mundo como ele mesmo é, isto é, a realidade em si, empiricamente tomada, e não apenas uma ideal função jurisdicional. Afasta-se da busca de demiurgos. Nada obstante, a Constituição reclama preservação não apenas defensiva e sim também promocional.

 Para tanto, não pode, pois, a ordem jurídica chancelada pelo Judiciário ser a transposição simétrica das relações de poder. Independência e imparcialidade se conjugam com o Direito na sinônima expressão da justiça, fazendo emergir um conceito substancial da função jurisdicional. Tem, por isso, o Direito notável função instrumental, a serviço da realização dos direitos na seara pública e nas relações interprivadas, nomeadamente dos direitos fundamentais, do desenvolvimento e da segurança jurídica.

 A ordem jurídica arrosta, por tal via, os tempos da judicialização da política, propondo-se, por conseguinte, como limite, regulação e controle do exercício de poderes. Sem poderes mágicos, mas sempre atento à realidade, ao Judiciário não interessa apenas o resultado de suas decisões, mas especialmente o processo de sua respectiva construção, o que denota ainda mais relevância na tarefa de velar pelos preceitos fundamentais.

 As decisões precisam comunicar à sociedade uma prestação de contas na sua fundamentação, por meio de uma interpretação sistematizada das normas (regras e princípios), com amparo na doutrina, na jurisprudência e em saberes úteis ao desfecho processual. Conhecimentos e experiências aí podem dialogar positiva e construtivamente nas instâncias decisórias de índole constitucional.

 No âmbito do Supremo Tribunal Federal, custodiar preceito fundamental corresponde ao exercício pleno das prerrogativas de Corte Constitucional e à posição sobranceira do STF na hierarquia do Poder Judiciário brasileiro. Essa vocação não pode ser amesquinhada com a redução da abrangência sobre o entendimento do objeto da arguição.

 

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