Por Arthur Martins Andrade Cardoso -
Muito se discute acerca do ônus probatório no processo penal. Digladiam-se comentadores do Direito se incumbe a quem alega o fato o ônus de prová-lo ou se cabe exclusivamente à acusação a carga probatória de todas as circunstâncias que imputa ao acusado.
A doutrina majoritária entende que:
"Cabe provar a quem tem interesse em afirmar. A quem apresenta uma pretensão cumpre provar os fatos constitutivos; a quem fornece a exceção cumpre provar os fatos extintivos ou as condições impeditivas ou modificativas. A prova da alegação (onus probandi) incumbe a quem a fizer (CPP, artigo 156, caput). Exemplo: cabe ao Ministério Público provar a existência do fato criminoso, da sua realização pelo acusado e também a prova dos elementos subjetivos do crime (dolo ou culpa); em contrapartida, cabe ao acusado provar as causas excludentes da antijuridicidade, da culpabilidade e da punibilidade, bem como circunstâncias atenuantes da pena ou concessão de benefícios legais" .
Ao revés, outros argumentam que:
"A primeira parte do artigo 156 do CPP deve ser lida à luz da garantia constitucional da inocência. O dispositivo determina que 'a prova da alegação incumbirá a quem a fizer'. Mas a primeira (e principal) alegação feita é a que consta na denúncia e aponta para a autoria e a materialidade; logo, incumbe ao MP o ônus total e intransferível de provar a existência do delito. Gravíssimo erro é cometido por numerosa doutrina (e rançosa jurisprudência), ao afirmar que à defesa incumbe a prova de uma alegada excludente. Nada mais equivocado, principalmente se compreendido o dito até aqui. A carga do acusador é de provar o alegado; logo, demonstrar que alguém (autoria) praticou um crime (fato típico, ilícito e culpável). Isso significa que incumbe ao acusador provar a presença de todos os elementos que integram a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade e, logicamente, a inexistência das causas de justificação" .
Ousamos discordar do posicionamento majoritário, segundo o qual nos termos do artigo 156, in initio, do Código de Processo Penal (CPP), a prova da alegação incumbirá a quem a fizer, filiando-nos aos que entendem que o ônus da prova no processo penal é integralmente do acusador.
Isso porque o entendimento literal do dispositivo supramencionado fere de morte os ditames constitucionais e convencionais, impondo-se uma interpretação conforme a Constituição.
Explica-se.
É sabido que o processo penal tem uma finalidade retrospectiva, em que, através das provas colhidas, pretende-se criar condições à atividade recognitiva do juiz acerca de um fato passado .
Qualquer decisão só pode se basear nas provas colhidas licitamente no decorrer do devido processo penal.
E mais: os fundamentos legitimadores das decisões são o respeito às regras do jogo democrático, em especial a imparcialidade, o embasamento em provas e a motivação das decisões.
Necessário, então, desconstruir pensamentos inquisitivos pré-Constituição de 1988, que seguem vivos e mais fortes do que nunca.
Diga-se, outrossim, que não interessa a linha criminológica defendida, o que importa é o programa constitucional imposto, de matriz garantista.
Assim, é evidente que o ônus probatório à luz da Constituição Federal é todo do acusador. E não poderia ser diferente.
O sistema acusatório adotado pela Carta Magna impõe o afastamento do magistrado, sai a figura do juiz ator e entra em cena a figura do juiz espectador .
O magistrado é e tem que ser um ignorante (Aury Lopes Jr.), vale dizer, ele deve ignorar os fatos, cabendo ao acusador apresentar detalhadamente os fatos imputados ao acusado e provar a autoria, a materialidade e a ausência de causas de justificação, sob pena de improcedência do pedido condenatório .
Ao acusado, frise-se, não cabe provar nada, todo ônus é do acusador.
Ressalte-se que cabe à acusação a prova robusta dos fatos imputados para afastar o status de inocência do acusado (Princípio da Presunção de Inocência).
A defesa pode até ser singela, contentar-se em alegar a inocência e nada mais. Mesmo assim, quem tem que provar além da dúvida razoável é a acusação, uma vez que no processo penal dúvida é certeza da inocência do acusado.
Situação interessante e que traz à tona constantes erros práticos é a da alegação de causas excludentes de antijuridicidade pelo acusado. A quem cumpre provar?
Evidentemente que cabe à acusação provar a ilicitude da conduta.
A defesa, como dito, pode apenas negar ou singelamente apontar que houve um fato que excluiria a ilicitude da conduta, sem que com isso tenha que prová-lo.
Isso porque a defesa não tem que provar nada, se alega e não prova, perde uma chance probatória de convencimento do julgador , entretanto não pode haver qualquer ônus, até porque no processo penal a prova da culpa além da dúvida razoável é do acusador.
Imperioso salientar que a tática corriqueira da inversão do ônus da prova é inadmissível e afronta o texto constitucional. Não é porque se alegou uma causa excludente de antijuridicidade que a defesa tem que prová-la, ao revés, cabe à acusação derrubá-la, v.g., em caso de alegação de legítima defesa, caberá à acusação provar que não houve injusta agressão ou que esta agressão não era atual ou iminente ou, ainda, demonstrar que houve excesso na legítima defesa .
Assim, a toda evidência, parece que o senso comum teórico dos juristas foi constrangido.
Tudo que foi dito aqui é o óbvio ululante, contudo, em tempos sombrios é necessário dizer o óbvio.
Ocorre que não basta o conhecimento teórico no plano das ideias, a resposta correta tem de ser implementada na práxis.
Por isso, conclamamos a todos a lutarem pela correta aplicação do ônus probatório no processo penal. Em especial, conclamamos a advocacia a lutar por essa causa, a fim de extirpar esse e outros ranços inquisitórios do sistema penal, fazendo jus à sua indispensabilidade à administração da Justiça e a seu juramento de defesa do Estado democrático de Direito, afinal a advocacia não é "profissão de covardes".