PRISÃO PARA DELATAR TRANSFORMA A PREVENTIVA EM MÉTODO DE TORTURA

Valber Melo e Filipe Maia Broeto -  

O tema ora tratado tem gerado ampla repercussão desde o advento da Lei 12.850/2013 — Lei de Organização Criminosas —, quando se agigantaram as prisões preventivas como verdadeiro indutor à celebração de acordos de colaboração premiada.

No início, com uma postura mais firme e contrária à forma com que se estava a utilizar o “novo” mecanismo de obtenção de provas, grande parte dos estudiosos do Direito questionou esse reprovável “modus operandi”, através do qual se prendia — e ainda se prende — para forçar os eufemísticos “acordos” de colaboração premiada.

Ainda na fase “embrionária” da multicidada operação "lava jato”, que foi um lamentável divisor de águas no processo penal brasileiro, tentou-se, com todas as forças, contestar a ideia da já severamente criticada “prisão para delatar”. Afirmava-se, àquela época, que não existia qualquer tipo de coação nos negócios jurídicos processuais entabulados entre agentes delitivos e membros do Ministério Público.

Posteriormente, passou-se a, com certa discrição, admitir a ideia de que a prisão seria um meio válido para o atingimento de um fim justo. Era o começo da implementação da velha máxima maquiavélica, segundo a qual os fins justificam os meios.

Mais recentemente, de modo aberto e em tom empolgado, um culto Procurador de Justiça do Ministério Público de Mato Grosso, estudioso do Direito Penal, em matéria publicada no site MidiaNews, foi peremptório ao dizer que: 

“A turma do colarinho branco, que fica com os pés dobrados em cima de uma cadeira, tomando uísque e comendo caviar, e cujos filhos mamaram na mamadeira da corrupção, se criaram desde o berço com dinheiro público. Essa gente não aguenta cadeia. Porque você tira o chão dessa gente. Essa gente perde o chão quando você a coloca na cadeia”. 

Tal matéria em tudo se alinha a um despacho da lavra do juiz Sergio Moro, de Curitiba, publicado meses atrás, no qual ele revogava uma prisão preventiva de um determinado sujeito se baseando na notícia de que estavam em andamento as tratativas — “contrato preliminar/fase de negociações informais” — de um possível acordo de delação premiada. 

Esse documento trouxe à tona, tal qual a recente fala do procurador de Justiça de Mato Grosso, o que há muito tempo grande parte dos estudiosos das ciências jurídico-criminais vem questionando: a (inegável) utilização da prisão preventiva como método de coerção para a obtenção (forçada) de acordos de colaboração premiada.

Ora, não se pode perder de perspectiva, ainda, que, num passado não muito distante, o Ministério Público Federal, na pessoa do procurador da República Manoel Pestana, defendeu também abertamente a tese — que não tem qualquer respaldo legal, ressalte-se — de que as prisões preventivas podem, sim, ser utilizadas para obtenção de acordos de colaboração premiada. 

Com efeito, com o avançar da operação "lava jato”, tal prática tornou-se inegável e, pior, vem fazendo escola Brasil afora. Consolidou-se de vez a máxima já denunciada por Lênio Streck e André Trindade de que “o passarinho para cantar precisa estar preso”. É que, agora, como advertem Aury Lopes Jr. e Alexandre Moraes da Rosa, se o sujeito está preso, delata para sair; se está solto, delata para não entrar. 

Nesse cenário conturbado, a lei base das delações/colaborações (12.850/13), tão aplaudida e admirada por muitos, está a ser alvo de distorções e manipulações ilegais e, sobretudo, imorais. Esse desvirtuamento que vem sendo feito, destaque-se, em nada contribui para a consolidação dessa ferramenta legal que, se bem empregada, tem o condão gerar bons frutos do ponto de vista probatório.

Perceba-se, pois, que a Lei de Organizações Criminosas — que melhor tratou da chamada colaboração premiada — exige, no “caput” do artigo 4º, que os acordos sejam celebrados voluntariamente, ou seja, sem qualquer tipo de pressão — física e/ou psicológica.

Observe-se, ainda, que tamanha foi a preocupação do legislador com a voluntariedade do colaborador na celebração dos acordos de colaboração premiada, que o §7º, do artigo 4º, da Lei 12.850/13, estabeleceu uma audiência de homologação, cuja finalidade precípua é justamente a averiguação da regularidade, legalidade (do acordo) e voluntariedade (do colaborador).

Nada obstante, porém, o mandamento legal nesse sentido, tem-se visto às claras uma desvirtuação no emprego do instituto da colaboração premiada que leva a reboque, para a mesma vala (da ilegalidade), a já banalizada prisão cautelar. Esse desvio de finalidade que está a ser implementado, repita-se, tão somente põe em xeque a própria existência do instituto.

A questão é simples: não estando presentes os requisitos da prisão preventiva (“fumus commissi delict” e “periculum libertatis”), em tese, não se pode decretá-la. Sem a constrição cautelar da liberdade ambulatorial do investigado/acusado/réu, há mais chances para o exercício da ampla defesa e, por conseguinte, menos interesse, por parte dos acusados, no firmamento de “acordos”. 

Nesse panorama, o acusador público, sem muitas opções, mas contando com o apoio de parte do judiciário, faz uso de prisões preventivas infundadas — pois que a celebração de acordo de colaboração premiada não é requisito nem para a decretação tampouco para a revogação da prisão preventiva — como método para forçar/induzir o investigado/acusado/réu a “contar” o que sabe, sob pena de sofrer as drásticas consequências do “processo penal clássico”.

Afinal, como bem anota Aury Lopes Jr.:

Tudo é mais difícil para quem não aceita o “negócio”. O acusador público, disposto a constranger e obter o acordo a qualquer preço, utilizará a acusação formal como um instrumento de pressão, solicitando altas penas e pleiteando o reconhecimento de figuras mais graves do delito, ainda que sem o menor fundamento. [...] O processo, ao final, é transformado em um luxo reservado a quem estiver disposto a enfrentar seus custos e riscos, como adverte Ferrajoli. A superioridade do acusador público, acrescida do poder de transigir, faz com que as pressões psicológicas e as coações (a prisão cautelar virou o principal instrumento de coação) sejam uma prática normal, para compelir o acusado a aceitar o acordo e também a “segurança” do mal menor de admitir uma culpa, ainda que inexistente. Os acusados que se recusam a aceitar a delação ou acordo sobre a pena são considerados incômodos e nocivos, e sobre eles pesarão todo o rigor do Direito Penal “tradicional”, em que qualquer pena acima de quatro anos impede a substituição e, acima de oito anos, impõe o regime fechado. 

Com efeito, preso preventivamente — prisão essa sem prazo, frise-se — e tolhido do regular exercício de seus direitos constitucionalmente garantidos, o acusado/réu, muitas vezes, já sem qualquer condição psicológica, cede às pressões levadas a efeito pelas autoridades públicas e, “voluntariamente” (acredite se quiser!), celebra o tão almejado acordo de colaboração premiada, passando, assim, a ditar, inicialmente, os rumos da persecução penal.

Em síntese, tal postura transforma, de modo totalmente ilegal, a prisão preventiva em um novo método de tortura — tortura moderna —, por meio do qual ou se aceitam as condições impostas pelo órgão de acusação (contrato de adesão, e não acordo de colaboração propriamente dito), ou se aguarda preso, mesmo que sem razão para tanto (inexistência de “fumus comissi delicti” e “periculum libertatis”), o desenrolar do “processo penal clássico”. 

Deveras, ao agirem dessa forma, as próprias autoridades públicas, como dito alhures, colocam em xeque a existência de institutos que podem, sim, ser utilizados de forma positiva no desenrolar do processo penal contemporâneo. Ocorre, todavia, que do modo como estão a ser empregadas, as ferramentas legais, válidas e eficazes, por meio de uma deturpação hermenêutica, passaram a ser utilizadas de forma “equivocada” e, sobretudo, ilegal!

A toda evidência, tem-se percebido, hodiernamente, que “prisão preventiva para delatar” passou a ser o meio (ilegítimo) para alcançar o fim (espúrio), que é a colaboração premiada, a qual, na maioria dos casos que envolve réus presos, de voluntária nada tem.

Resta observar, em conclusão, que essa postura reprovável por parte de certas autoridades estatais, embasada no suposto combate à corrupção, vem somente a consolidar de vez o estado policialesco em que, como dito, infelizmente, os fins — ainda que lícitos — justificam os meios — ilegítimos e imorais.

 

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