Por Bruno Amaro Lacerda -
Em On liberty (1859), um livro muito citado, mas nem sempre lido com atenção, John Stuart Mill propõe um princípio “muito simples” para solucionar uma das questões mais relevantes da vida em sociedade: quais condutas o Estado, valendo-se de seu aparato jurídico, pode legitimamente restringir ou proibir, e quais devem ficar ao arbítrio exclusivo dos indivíduos? A preocupação se justifica porque, na ausência de um critério seguro, o Estado poderia, ao menos em tese, interferir em todas as ações, eliminando a liberdade individual. Tudo seria matéria possível de legislação, e não sobraria nenhum espaço reservado à decisão soberana do cidadão. Este seria engolido pelo coletivo.
Esse critério, conhecido como “princípio do dano”, é descrito por Mill nestes termos: “Esse princípio estabelece que a única finalidade justificativa da interferência dos homens, individual ou coletivamente, na liberdade de ação dos outros, é a autoproteção. O único propósito a favor do qual se pode exercer legitimamente poder sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é para prevenir danos a outrem”. Assim, é perfeitamente válido que as leis vedem certos comportamentos, mas somente quando estes forem capazes de causar danos a terceiros. Consequentemente, a prática ou abstenção de condutas insuscetíveis de provocar prejuízos sociais deve ser deixada inteiramente à livre decisão dos particulares.
Mill insiste que o dano, ou possibilidade de dano, deve ser a outrem. Proteger os indivíduos contra males que possam causar a si mesmos não é tarefa do Estado: “Na parte que diz respeito somente a ele próprio, a independência é, por direito, absoluta. Sobre si mesmo, sobre o próprio corpo e espírito, o indivíduo é soberano”. Normas jurídicas não podem ser paternais nem afiançar a moralidade dominante. Por isso, até ações consideradas pela maior parte da sociedade como erradas, fúteis ou imorais devem ser toleradas, se não puderem acarretar agravos à liberdade alheia.
Essa soberania sobre si, expressa na “liberdade de gostos e de ocupações” e na formulação “de um plano de vida de acordo com o caráter do indivíduo”, é o valor que legitima a atuação do Estado. Este existe, portanto, para garantir as liberdades na coexistência, não para ameaçá-las ou eliminá-las. Mill, porém, constata em sua época uma tendência de crescimento das atribuições estatais, com a consequente diminuição do poder do indivíduo, concluindo que a ameaça para a qual chama a atenção (a possível intromissão indevida da legislação na liberdade dos cidadãos) poderá, com o tempo, se tornar mais temível.
O autor dá exemplos no último capítulo de sua obra. Um deles é a embriaguez: o simples consumo de álcool não pode ser proibido, diz, mesmo quando degrade por completo quem se embriaga. No entanto, o uso de bebida alcoólica que puser outras pessoas em risco, como nas relações de trabalho, pode ser juridicamente sancionado. O outro é a ociosidade: não se pode punir alguém por vadiagem, exceto se desta conduta puder resultar algum prejuízo para terceiros (caso do pai que, se esquivando do trabalho, pare de sustentar seus filhos). Esses exemplos mostram que a liberdade é um valor individual, mas não egoísta. Ser livre é poder escolher os próprios projetos de vida, mas sem inviabilizar os planos dos demais. Ou, em suas palavras: “A única liberdade que merece este nome é a de perseguir o nosso próprio bem do modo como nos convém, desde que não procuremos privar os outros da que lhes compete ou impedir-lhes os esforços para obtê-la”.
Admitindo que o princípio de Mill seja verdadeiro, pode-se perguntar: os entes federativos brasileiros, em certas ocasiões, ultrapassam seus limites de legitimidade e propõem normas que, ao invés de proteger a liberdade dos indivíduos, desprezam-na? A resposta é afirmativa.
Vale recordar que o Brasil tem certa tradição em normas jurídicas esdrúxulas. São famosas, por exemplo, as medidas do ex-presidente Jânio Quadros, que em seu breve mandato editou decretos proibindo “espetáculos ou números isolados de hipnotismo e letargia de qualquer espécie” e o uso do traje de banho em concursos de beleza feminina, “sendo tolerado o saiote”.
Antes de prosseguir, é preciso fazer uma distinção. Há projetos de lei, leis e outros tipos de normas jurídicas que parecem desnecessários e até sem sentido, mas que não causam danos. É o caso, por exemplo, da Lei Federal 12.390/11, que estabeleceu o dia 27 de junho como “o Dia Nacional do Quadrilheiro Junino”, do Projeto de Lei Federal 2.762/03, que pleiteava instituir o Dia do Saci “como uma força da resistência cultural à invasão dos x-men, dos pokemons, os raloins (sic), e os jogos de guerra” (foi arquivado), da Lei estadual 16.311/16 (SP), que criou “o Dia Estadual do Fusca”, e do Decreto 28.314/07, por meio do qual o então governador José Roberto Arruda “demitiu” o gerúndio (a forma nominal do verbo) de todos os órgãos do Distrito Federal. Essas normas e projetos, embora pitorescos, não ofendem a liberdade de ninguém.
Existem outros dispositivos, contudo, que atacam diretamente a autonomia pessoal. Estes não devem ser vistos como extravagâncias, mas como casos de desrespeito a direitos individuais. Há dois exemplos recentes que servem como amostragem do problema. O primeiro é o Projeto de Lei municipal 093/16 de Porto Alegre (RS), que pretendia impor “a obrigatoriedade da adoção de cães e gatos por unidade familiar”. Sim, obrigatoriedade. Para o vereador proponente, os planos de vida de seus conterrâneos não parecem importar muito. Se eles não gostam de animais, ou gostam, mas não podem tê-los por motivos variados (têm filhos pequenos, trabalham, moram em lugar apertado, são alérgicos etc.), não vem ao caso: o problema dos animais de rua deve ser resolvido forçando-os à “adoção”. Ora, tal proposição não é somente inusitada, mas uma pretensão absurda de restrição da liberdade, pois almeja constranger pessoas a alterarem seus planos de vida (no caso, não ter animais), quando esses planos, na situação em comento, não têm o condão de prejudicar ninguém. O projeto foi rejeitado e arquivado.
O segundo é o Projeto de Lei estadual 2.983/15, que ainda tramita na Assembleia Legislativa de MG. Dispõe, cominando sanções como multa e prestação de serviços à comunidade, sobre “a proibição de uso de celulares em bares, restaurantes e similares”. Eis a justificativa do projeto: “O que você acha de sair para jantar com alguém e a outra pessoa ficar o tempo todo mexendo no celular? Ou quando você está em um restaurante, desfrutando uma ótima companhia, em um ambiente gostoso, e o telefone celular da mesa vizinha toca, a pessoa atende falando alto, fazendo você participar da conversa mesmo sem querer? Pensando nisso, proponho esta lei, que proíbe o uso de celulares por usuários desses estabelecimentos”. A pergunta, aqui, é: o Estado pode impedir que cidadãos usem celulares em restaurantes? A resposta, sem dúvida, é “não”; isso só poderia ocorrer se houvesse uma possibilidade real de prejuízo para os clientes ou trabalhadores desses estabelecimentos. Mas que tipo de dano pode resultar do uso regular de um celular? Punir desconfortos ou incômodos como se fossem danos sociais é um erro grave, dadas as consequências potencialmente perigosas do equívoco. O risco, para o qual Mill alertava seus leitores há mais de 150 anos, é o sacrifício de uma liberdade individual (no caso, a de comunicação) em uma situação onde esta não ameaça nem lesa qualquer outra liberdade.
Como se vê, não basta constatar a atualidade do “princípio do dano” e aceitá-lo como um critério relativamente seguro de justiça; é preciso também zelar cotidianamente pela sua aplicação. Mais do que nunca, vale a máxima “O preço da liberdade é a eterna vigilância”.