Por Grégore Moreira de Moura -
Nos últimos dias, o noticiário brasileiro foi tomado por discussões acerca de um caso bárbaro de estupro praticado, supostamente, pelo tio contra uma criança de dez anos de idade, tipificando, portanto, o crime de estupro de vulnerável previsto no artigo 217 do Código Penal, com a causa de aumento de pena do artigo 234-A do mesmo diploma legal, uma vez que resultou em gravidez.
Como tem acontecido no Brasil nos últimos tempos, todas as discussões são polarizadas por contornos político-partidários e, mais uma vez em uma apropriação sorrateira e moralista, o debate em torno de um problema jurídico se transformou em moral e político.
Manifestações esdrúxulas foram realizadas Brasil afora e noticiadas pela imprensa, tendo inclusive tentativa de invasão do hospital onde foi realizado o procedimento, configurando em alguns casos o cometimento de ilícitos previstos na legislação penal brasileira, em franco abuso de direito de manifestação.
As redes sociais, a distância ocasionada pelos computadores, bem como a sensação de segurança e anonimato, levaram as pessoas à falsa ideia de que na internet não há leis e que ofensas, injúrias, exposição da intimidade alheia, atos de violência contra crianças e adolescentes não seriam condutas criminosas, o que proporciona um aumento vertiginoso dos crimes informáticos impróprios.
Tal fato leva a um sem número de revolucionários e juristas dos teclados, que mal sabem o que diz a lei e agem imbuídos de um falso moralismo escondido entre aspectos religiosos, políticos e éticos.
Ora, não há dúvida de que na sociedade temos diversos instrumentos de controle social como o Direito, a moral, a ética, a religião e as regras de trato social.
No entanto, ainda que o Direito sofra influência e influencie questões morais e promova adequação social de suas normas por essas interfaces, o Direito, depois de legislado, deve manter-se alheio às questões morais por uma razão bem simples: a moral é subjetiva, normalmente autônoma, concreta, volátil e variável. Já o Direito pretende ser objetivo, geral, abstrato, buscando a certeza de sua aplicação, para que se promova justiça e a mínima segurança jurídica na esteira da estabilidade das relações sociais. No aspecto político não é diferente.
Nessa esteira, o sistema penal é formado pela dogmática-jurídico penal (conjunto de princípios e regras que regulamentam o direito de punir do Estado em detrimento do direito de liberdade do cidadão), a criminologia (ciência empírica e causal-explicativa que estuda o crime, o delinquente, o controle social e a vítima) e a política criminal (as opções feitas pelo legislador com base em diagnósticos e estudos para criminalizar ou não uma determinada conduta), sendo esta última a que nos interessa neste ensaio.
A política criminal é composta pelas opções feitas pelo legislador, diante do cenário político e da adoção das diversas posições surgidas pela análise da aplicação da lei, bem como das diversas teorias criminológicas, ou seja, se baseia em uma tomada de posição.
O legislador adota opções de criminalização por ditames da política criminal, por alteração de movimentos criminológicos, por pressão social e midiática, entre outros fatores.
No caso do aborto, há previsão legal do crime nos artigos 124 a 126 do Código Penal, variando a pena e o tipo se praticado pela própria gestante, e com ou sem o seu consentimento, já que estamos diante de uma exceção à teoria monista do concurso de agentes, pois altera a tipificação e a regra geral previstas no artigo 29 do Código Penal.
Todavia, a par das questões éticas, morais, religiosas e culturais, o legislador, por razões de política criminal, trouxe a lume o artigo 128 do Código Penal, diga-se de passagem em vigor no Brasil desde o dia 1º de janeiro de 1942, para dizer que não haverá aborto se for realizado para salvar a vida da gestante ou se a gravidez é proveniente de estupro e haja o consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. São, respectivamente, as hipóteses de aborto necessário e humanitário ou sentimental.
Estamos, pois, diante de uma hipótese de excludente de ilicitude no caso do aborto necessário (vida x vida) e excludente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa no segundo caso (vida x dignidade sexual da vítima de estupro).
O legislador, por política criminal, definiu que, em casos de estupro, a vítima de tal crime, ou seu representante legal, tem o direito de escolha em ter ou não o filho produto daquela conduta criminosa e violenta que ofende não só a integridade física, mas também a saúde mental da vítima.
Para tanto, por sentimento humanitário (Hegel já dizia que existir — ser homem — é diferente de ter essência — ser humano e agir como tal), a lei permite e dá à vítima o real respeito e consideração, para que suas convicções religiosas, éticas, morais, sociais, culturais sejam respeitadas no mais amplo sistema democrático, isto é, consagra a essência hegeliana do agir humano.
Alteridade é respeito ao outro. Querer que o Estado ou qualquer revolucionário dos teclados do mundo moderno tecnológico imponha o contrário é mero egoísmo, dada a subjetividade e a autonomia que perpassam uma decisão tão íntima e complexa.
Na sociedade da vigilância que desenvolvemos, a intromissão do Estado na dignidade humana deve ser veementemente rechaçada. Obrigar uma criança de dez anos ou qualquer outra vítima de estupro a carregar um filho por nove meses em sua barriga, ou depois criá-lo contra sua vontade, é proporcionar a eternização e a repristinação de uma ferida que jamais se fechará, ou seja, o Estado estará contribuindo para a instabilidade das relações jurídicas em afronta a qualquer conceito de Justiça que se adote.
O aborto humanitário não é só legal, é democrático, respeita a alteridade e diz o óbvio: decisões íntimas e subjetivas não devem ser tomadas pelo Estado nem por qualquer radical de redes sociais, mas, sim, pelo indivíduo que sofre a conduta criminosa. Esse é o mote de qualquer democracia pluralista.
Quem quer "criminalizar" o aborto legal quer a volta de tempos sombrios em que se criminalizavam pensamentos, formas de vida e convicções religiosas, políticas e culturais.
O Direito Penal deve ser a última razão, por ser uma forma de violência estatal, logo, quando se tem nele uma pitada de humanidade, devemos resguardá-la com todas as nossas forças.
Como diria Jean-Paul Sartre: "Viver é isto: ficar se equilibrando o tempo todo entre escolhas e consequências".
Deixemos as escolhas e as consequências para quem tem o direito de fazê-las, sob pena de escolhermos para os outros sem sofrer as consequências destas escolhas. Isso sim é motivo de "criminalização"!