Diogo Tebet da Cruz -
Em abril de 2009 foi firmado entre os chefes dos três Poderes da República o “II Pacto Republicano de Estado por um Sistema de Justiça mais Acessível, Ágil e Efetivo”.
Do referido pacto, originaram-se diversos projetos de lei, sendo alguns deles convertidos em lei como a Lei 11.900/09 (interrogatório por videoconferência), Lei 12.012/09 (criminalizou o ingresso de telefones celulares em penitenciárias), Lei 12.019/09 (convocação de magistrados para instrução de processo no STJ e STF), Lei Complementar 132/09 (Defensoria Pública da União).
Dentre os projetos que ainda não foram convertidos em lei encontra-se o polêmico PLS 280/2016, que define os crimes de abuso de autoridade. Tal projeto tramita no Senado Federal e seu conteúdo vem causando inusitada apreensão entre algumas associações de classe de agentes públicos que atuam na persecução penal.
Em recente artigo de jornal (“Chamem o ladrão”, publicado em O Globo, de 13 de julho de 2016), procuradores da República afirmam que o referido projeto é pautado por motivos “espúrios”, espelhando “a vontade do criminoso de prender quem o investiga” e que visa “paralisar investigações de criminosos do colarinho branco”.
Inicialmente, é de se destacar que o referido Pacto firmado, repita-se, no ano de 2009, trata como matéria prioritária a proteção dos direitos humanos e fundamentais como a “revisão da legislação relativa ao abuso de autoridade, a fim de incorporar os atuais preceitos constitucionais de proteção e responsabilização administrativa e penal dos agentes e servidores públicos em eventuais violações aos direitos fundamentais”.
Deixando de lado as insinuações não tão indiretas à autoria do referido projeto de lei e ao tempo e/ou à conveniência de sua colocação em pauta no Legislativo, deve-se louvar a iniciativa de se discutir tema de suma importância, vez que ainda vigora no ordenamento jurídico brasileiro a vetusta Lei de Abuso de Autoridade, datada do ano de 1965 (Lei 4.898/65), editada em pleno regime de exceção militar (essa sim, feita sob encomenda dos detentores do poder), que conta com a reduzida penalização de dez dias a seis meses de detenção, cujos autores do fato são processados perante Juizado Especial Criminal, contando com todos os benefícios despenalizadores.
No que se refere à tipificação penal constante no projeto — cujo conteúdo não é divulgado nos meios de comunicação por seus críticos — é de se dizer que contempla diversas hipóteses de graves violações aos direitos e garantias do cidadão investigado que necessitam, decisivamente, a tutela do Estado.
Merece destaque a criminalização das seguintes condutas: (i) deixar de comunicar imediatamente a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontra, à sua família; (ii) prolongar a execução de prisão deixando de executar a soltura do preso, no próprio dia em que foi expedido alvará (hipótese corriqueira no sistema penal carcerário brasileiro); (iii) deixar de informar ao preso seu direito de ter advogado, com ele falar pessoalmente, bem como o de permanecer em silêncio; (iv) constranger o preso a submeter-se a situação vexatória ou produzir prova contra si mesmo; (v) impedir que o preso se entreviste com seu advogado; (vi) executar mandado de busca e apreensão de forma vexatória para o investigado, ou extrapolar seus limites; (vii) promover interceptação telefônica e telemática, ou escuta ambiental, sem autorização judicial; (viii) proceder à obtenção de provas por meio ilícito ou delas fazer uso, tendo conhecimento de sua origem ilícita; (ix) reproduzir ou inserir, na investigação ou ação penal, diálogo do investigado com advogado sobre fatos que constituam objeto da investigação; (x) negar, sem justa causa, ao defensor acesso aos autos de investigação penal.
Em adição, um dos mais inovadores tipos penais é o que criminaliza a conduta de dar publicidade a relatórios, documentos ou papéis obtidos como resultado de interceptação telefônica e telemática e de escuta ambiental (se deveria atualizar o rol para incluir conteúdos de acordos de delação premiada). Tal costumeira e odiosa prática verificada nas grandes operações persecutórias penais é a causadora da denominada publicidade opressiva, expediente que tende a aniquilar a garantia a um processo justo, enfraquecendo o direito de defesa efetiva e subvertendo o principio da presunção de inocência.
Como se vê, diversos dos tipos visam a tutela não só da dignidade do sujeito passivo da persecução penal, mas também o direito de defesa, bases de um Estado Democrático de Direito.
As críticas postas como a do artigo jornalístico citado, revelam verdadeiro non sense: afirmar que o referido projeto de lei constitui intimidação feita por membro do Poder Legislativo ao Poder Judiciário ou ao Ministério Público, significaria o mesmo que aceitar que ações persecutórias penais ou condenações obtidas no âmbito das grandes operações criminais consistiriam intimidação feita por membros do Poder Judiciário ou do Ministério Público contra o Poder Legislativo, hipótese de todo descabida.
Atualmente, vive-se uma quadra muito complicada no que tange à persecução penal. Entes públicos que propõe discussão e ampla revisão da legislação penal e processual penal, catapultada por campanhas publicitárias maciças, se negam a discutir de forma democrática a questão do abuso dos agentes estatais. Almeja-se a dita ampla reforma com vistas a “combater” a corrupção (alcunhando seus projetos com nomes com vistas a imunizá-lo de qualquer crítica ou posicionamento contrário), mas tratam como dogma o combate ao abuso de autoridade.
Em verdade, já é o momento de se despersonalizar as instituições e buscar, verdadeiramente, de forma republicana, o accountability dos agentes públicos, incluindo os envolvidos na persecução penal. Fato é que, no Brasil, o excesso e as arbitrariedades dos que exercem a autoridade pública não são punidos, nem mesmo devidamente apurados na esfera administrativa (os avanços de órgãos de controle externo como CNMP e CNJ são extremamente tímidos e seus resultados na punição administrativa absolutamente insatisfatórios), isso sem falar na imensa cifra oculta existente, explicada pelo justificado receio das vítimas em registrar a ocorrência (cada vez mais comum é o arquivamento de reclamações disciplinares ser quase que causa automática de persecução penal pelo crime de denunciação caluniosa em desfavor do cidadão reclamante).
Não se nega contudo que o projeto detém um caráter simbólico próprio das leis penais e a redação de alguns dos tipos não são precisos, merecendo alguns ajustes.
Inobstante, a discussão sobre as práticas de abuso de autoridade e mecanismos para coibi-la é de suma importância e vem em boa hora, tudo com vistas a frear o poder punitivo hipertrofiado que desborda frequentemente do regramento legal e constitucional a ele impostos.
Concluindo, nada justifica o temor dos que são contra o projeto, caso o mesmo seja convertido em lei, seja porque toda a conduta de abuso de autoridade há de ser comprovada dolosa, seja pelo fato de que todos os eventualmente processados terão à sua disposição as garantias processuais penais conferidas ao cidadão pela Constituição Federal, como o devido processo legal, presunção de inocência e direito a defesa técnica exercida por advogado habilitado.