Recompensa: impossibilidade

Alamiro Velludo Salvador Netto

Não é de hoje o aparecimento no Brasil de algumas fórmulas utilizadas pelo Poder Público e destinadas a facilitar e estimular a participação do cidadão na dinâmica de persecução ao crime. Alguns modelos são, de fato, louváveis, como, por exemplo, a instalação dos denominados disque-denúncias, em que pese dúvidas procedimentais quanto à identidade dos denunciantes. Seja como for, a tecnologia, neste ponto, é colocada em prol do cidadão, facilitando sua comunicação com as autoridades policiais e, em consequência, capaz de acelerar a obtenção de informações acerca de delitos de que fora vítima e seus respectivos esclarecimentos. Inegável, portanto, que o bom trabalho policial e judicial demanda, em alguma medida, a participação de todos, proporcionando redes de inteligência e mútua cooperação.

A questão aqui colocada em análise, entretanto, é outra. Não se trata simplesmente da colaboração de cidadãos com o esclarecimento de crimes ou paradeiro de condenados e suspeitos. O problema está fundamentalmente sediado no fato da existência de programas públicos, cada vez mais difundidos, no qual as autoridades oferecem recompensas financeiras em troca de informações. Cuida-se, assim, de uma espécie de privatização difusa do serviço persecutório, de remuneração pela contribuição, com a qual a participação do cidadão abandona o seu caráter de espontaneidade e ganha finalidades outras, consistentes no recebimento de valores monetários como recompensa. No Estado de São Paulo, por exemplo, a Secretaria de Segurança Pública anunciou recentemente recompensas no valor de até R$ 50.000,00 para aqueles que ajudarem a polícia a esclarecer delitos ou localizar foragidos. No Rio de Janeiro, o programa “Recompensa” apresenta formatação similar.

Uma visão um pouco mais apressada sobre o assunto poderia culminar em perguntas do gênero: afinal, quais poderiam ser os males de impulsionar denúncias desta natureza pelos indivíduos em geral? Por quais motivos não poderiam o Estado premiar aqueles que contribuem com a atividade repressiva? Sem dúvidas, uma visão simplista, pragmática e superficial destas modalidades de incentivo não conduziria às maiores objeções. A imagem estereotipada dos filmes de faroeste norte-americanos surge de imediato na lembrança. A própria tradição utilitarista do direito anglo-saxão sempre anuiu com tais procedimentos, dentre os quais a delação premiada funciona como um primo próximo. O jurista inglês JEREMY BENTHAM, no início do século XIX, já advogava em favor deste expediente. Em seu Tratado das provas judiciais, asseverava que o sentimento de comiseração com o culpado era indevido, eis que “piedade para com o criminoso é crueldade para com o público”. Ainda segundo o autor oitocentista, “o ofício de denunciante é tão necessário e tão meritório como o de juiz”.

A nossa tradição jurídica continental (civil law), contudo, caminha em sentido oposto. Sua maior elaboração, para além de um utilitarismo cego e frio, consegue perceber que o problema maior não reside em meros sentimentalismos, nem sequer no desprezo à importância de denunciantes necessários. O que se coloca em pauta é se, assim como o ato de julgar, o ato de perseguir não deve remunerar apenas aqueles imbuídos juridicamente de tal função, evitando transformar a todos em investigadores, espiões de vizinhança ou longa manus do aparato repressor do Estado. O próprio desenvolvimento do Estado moderno, e sua especialização e burocratização inerentes, impõe a observância de papeis específicos pelos cidadãos, respeitando-se regras, procedimentos e garantias. Da mesma forma que para julgar é necessário estar investido na magistratura, o mesmo se deve dizer a respeito da persecução remunerada. Explica-se.

O pensamento penal moderno permite atribuir a BECCARIA destacada oposição a esta indevida imbricação das funções públicas com o ambiente privado. Diz o autor italiano que o oferecimento de recompensa já aponta, em primeiro lugar, uma fraqueza do próprio Estado. Em suma, “quem tem força para se defender não procura comprá-la”. Em seu célebre Dos delitos e das penas, anota o milanês que o oferecimento de recompensa implica em contradição inerente às atividades estatais. Ou seja, o mesmo legislador que estreita os vínculos de família, de parentesco, de amizade, simultaneamente passa a premiar aquele que os rompe, desorganizando todas as ideias de moral e virtude que deveriam preponderar na comunidade.

Não é diferente, para citar apenas mais um, o postulado por JEAN-PAUL MARAT. Em seu conhecidíssimo Plano de legislação criminal, o revolucionário francês, após afirmar que prender criminoso é trabalho da polícia, aponta que “para descobri-lo, jamais se deve propor recompensa aos cidadãos, o que seria corromper os costumes”. O máximo que se exige é que os cidadãos não abriguem os criminosos, conduta, aliás, que constitui aqui no Brasil o crime de favorecimento pessoal (art. 348 CP).

O oferecimento de recompensas conduz ao risco da criação daquilo que MARAT intitulou como “caçadores de malfeitores foragidos da vingança pública” ou, no linguajar policial mais contemporâneo, o “ganso assalariado”. Esta privatização policialesca remunerada de atividades estrita e essencialmente públicas, movidas exclusivamente pelo desejo econômico do particular, tende, em primeiro lugar, a diluir a diferença fundamental entre a esfera pública e a privada. Ademais, investigar e colher informação não são atividades ilesas de observâncias de regras jurídico-legais, sobre as quais o particular, tantas vezes, sequer tem conhecimento. Para o devido esclarecimento do crime, é ciente o policial acerca da necessidade de respeitar a inviolabilidade do domicílio, o sigilo telefônico e de correspondência etc. Não se pode, pois, em prol da segurança pública subverter a liberdade individual e suas garantias.

Nota-se que o ponto central deste breve artigo não consiste em impedir a salutar relação e troca de informações entre cidadãos e aparatos repressivos. O que se mostra abjeto é a mediação desta relação em torno de favores e benesses financeiras. A autoridade do Estado, bem como o monopólio da força, possui como face oposta a supressão destas tarefas das mãos do particular. Todas as vezes que estas díspares realidades se imiscuíram, o que apareceu foram milícias e mercenários organizados, os grupos de extermínio, os justiçamentos populares.

O interesse econômico que move o particular pode não encontrar barreiras, superar o limite da legalidade em nome da satisfação do recebimento da recompensa. Mais uma vez, não se corrompe a legalidade em favor da segurança. Do contrário, e novamente nas lições de MARAT, esses caçadores de malfeitores, em nome de realizar a justiça e seus recebimentos premiais, poderão se entregar a todos os vícios e, após, “se entregam a todos os crimes”.

 

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