Por Pedro Zucchetti Filho
O reconhecimento facial não se encontra regulamentado como novo sistema de identificação pessoal no PL 8.045/10 (projeto do novo Código de Processo Penal, ou CPP). Não obstante essa omissão, já vem sendo utilizado como ferramenta em grandes metrópoles ao redor do planeta .
O reconhecimento facial funciona graças à utilização de um sistema computadorizado mediante o qual, recorrendo-se a um banco de dados, consegue-se acessar o histórico do indivíduo (profissão, estado civil, antecedentes etc.) que teve a imagem da face capturada pela câmera de vigilância . O computador, ao utilizar um sistema de inteligência artificial, consegue analisar diversas características do rosto gravado/fotografado (a distância entre os olhos, o tamanho do nariz e da boca, a linha da mandíbula, dentre outras). Essas informações, que se transformam em um algoritmo, um número (tornando-se a identidade biométrica da pessoa), ficam armazenadas para eventual necessidade de comparação futura desses dados com outros.
A despeito de seu uso encontrar justificativa em finalidade aparentemente inofensiva, qual seja, facilitação do serviço de segurança pública — localização de veículos furtados/roubados e de suspeitos de crimes e de foragidos da Justiça —, conferindo celeridade a procedimentos prolongados, esta forma de reconhecimento não é imune a várias críticas.
Os dados do reconhecimento facial frequentemente derivam de imagens de detidos em delegacias, antes mesmo de o juiz ter a chance de determinar sua culpabilidade ou inocência. Esses retratos policiais usualmente são mantidos em banco de dados, mesmo quando o detido não foi oficialmente acusado de nenhum delito. Em algumas cidades dos Estados Unidos, o reconhecimento facial é também utilizado mediante dispositivos móveis e permite aos agentes estatais utilizarem celulares ou tablets para bater fotografia de um motorista/pedestre e imediatamente compará-la com outras insertas em banco de dados .
Dada a elevada quantidade do número de rostos nessas bases de dados, e tendo em conta que muitas pessoas assemelham-se, elevadas são as possibilidades de o sistema identificar rostos similares, havendo sério comprometimento do nível de acurácia. Daí advém uma das principais críticas que podem ser feitas a esta tecnologia, é dizer, ao invés de identificar positivamente uma pessoa desconhecida, normalmente o sistema calcula a probabilidade de semelhança entre ela e moldes de rostos específicos armazenados no banco de dados .
Em virtude da comparação realizada por esse sistema geralmente basear-se em informações padronizadas (elevada quantidade de imagens de indivíduos brancos e adultos), a tecnologia acaba sendo particularmente deficitária na identificação de negros e outras minorias étnicas, mulheres e crianças, impactando de forma discrepante determinados grupos sociais.
Não bastasse a potencialização do risco de ocorrerem erros por semelhança e a viabilização da manutenção permanente de imagens em banco de dados, o reconhecimento facial traz também a consequência de reduzir a privacidade em espaços públicos , não sendo trabalhoso imaginar-se que muitos indivíduos deixariam de realizar determinados comportamentos e atividades (não criminosos) se soubessem que estivessem sendo vigiados.
Por isso que, na contramão do que aparentemente é tendência, São Francisco recentemente editou lei proibindo a utilização de reconhecimentos faciais pelos departamentos de polícia e por outras agências públicas do município, ressalvando que a restrição não afeta outros serviços como, por exemplo, o uso da tecnologia em aeroportos ou em outras dependências cuja regulamentação seja da competência do governo federal.
Além desse efeito proibitivo, a decisão aprovada no Parlamento municipal, em 14/5/2019, contém a previsão de que a aquisição pública de quaisquer dispositivos que monitorem os cidadãos terá de ser aprovada previamente pelos parlamentares. De acordo com a lei, há propensão da tecnologia de reconhecimento facial para colocar em perigo os direitos e as liberdades civis, além do fato de que o reconhecimento facial poderia "exacerbar a injustiça racial e ameaçar nossa capacidade de viver sem a contínua vigilância do governo" .
Sobre a possibilidade de serem realizadas gravações públicas de imagens dos indivíduos, Huertas Martín alude à decisão exarada pelo Tribunal Supremo espanhol , de 6 de abril de 1994 – R. A. 2889, na qual a corte entendeu que a prova resultante de gravação por videocâmaras terá validade se não tiver violado a intimidade e a dignidade da pessoa atingida pela gravação, e que não se estará vulnerando nenhum direito do indivíduo afetado quando a captação de imagens, ainda que feita de forma velada ou sub-reptícia, fundamentar-se no esclarecimento de conduta supostamente delitiva. A corte também estipulou que a filmagem, para ter validade, deve ser realizada apenas em lugares públicos, sendo exigida autorização judicial fundamentada para que eventual imagem do indivíduo possa ser coletada em seu domicílio.
Importa ainda registrar que a autora faz menção ao informe do Consejo General del Poder Judicial (CGPJ) ao anteprojeto da LO 4/1997, datado de 12 de agosto de 1996, segundo o qual não se pode desconsiderar que a captação de sons e imagens por meios audiovisuais tem reflexos importantes sobre os direitos e liberdades fundamentais, tais como a imagem e a intimidade dos indivíduos. O informe também esclarece que, para que essa intervenção do poder público seja considerada legítima, deve ser precedida de uma lei que regulamente os casos em que poderá ocorrer, além de aduzir que, à luz dos princípios da necessidade e da proporcionalidade, a atividade de vídeovigilância fundamente-se na existência de um "perigo claro, atual e iminente para a segurança das pessoas e bens", não sendo suficiente para seu uso a existência de meras suspeitas ou de um perigo meramente potencial .
Ao comentar a referida LO 4/1997, a autora critica o excesso de generalidade da norma ao autorizar o emprego da videovigilância fixa quando verificar-se, na situação concreta, razoável risco para a segurança pública, sendo permitido o emprego de câmeras móveis quando verificar-se a existência de um perigo concreto. Em razão de tratar-se de medida restritiva de direitos fundamentais, seria importante que a lei regulamentadora do uso de videocâmeras pelos agentes de segurança contivesse critérios específicos, de modo que impedisse a possibilidade de emprego arbitrário ou indiscriminado destes meios .
Se as limitações dos direitos fundamentais (privacidade, intimidade, direito à imagem) devem atender a determinadas circunstâncias, resulta que da interação entre reconhecimento facial e princípio da proporcionalidade (o qual requer a ponderação de interesses para legitimar a ingerência estatal nos direitos individuais) haverá um (razoável) sacrifício quando não houver a captação casual e aleatória das imagens, sendo mister a demonstração de uma suspeita razoável de que delitos serão ou de que há indícios de que serão perpetrados (situação de perigo concreto para interesses públicos) .
Portanto, além de o reconhecimento facial ter seu uso condicionado à regulamentação legal e a determinados critérios, o tratamento normativo dessa tecnologia também deve dispor acerca da quantidade de tempo que as imagens ficarão à disposição das autoridades, além de estabelecer quem terá direito a acessá-las.
Requisitos para avaliar-se a credibilidade da imagem capturada também devem estar normativamente previstos, a exemplo da obrigatoriedade de sua submissão à perícia.
Porém, a necessidade de regulamentação legal, embora necessária, não é suficiente, sendo indispensável que o emprego do sistema seja acompanhado pela elaboração de estudos sobre suas consequências (estatísticas de erros e de acertos, principalmente).