Luciano Anderson de Souza -
O tema da responsabilidade penal da pessoa jurídica está longe de consenso. Não obstante, seu reconhecimento é crescente, a ponto de tornar este tipo de regulação praticamente inexorável na maioria dos países de tradição jurídica europeia-continental.
Referido prognóstico não significa conformismo ou anuência com o caminho trilhado. Aliás, convém observar que a questão não pode ser simplificada em simples adesismo ou rechaço, tampouco ser rotulada ideologicamente como mera postura progressista ou conservadora. A temática nestes termos somente tem produzido limitado debate no Brasil. Há de se aprofundar o assunto, mormente quando no Congresso tramitam propostas de ampliação de referida responsabilização, inclusive no projeto de novo CP.
Inegável que o ambiente corporativo ostenta potencial criminógeno, consoante demonstrado por SUTHERLAND já no início do século XX e confirmado nacionalmente nos mais diversos escândalos contemporâneos. Ocorre que esta aferição não leva necessariamente à defesa (muitas vezes com fervor próximo ao futebolístico) da responsabilização corporativa. Também a pressão internacional capitaneada por norte-americanos, fomentada por documentos internacionais, não é argumento suficiente para sua cega adoção.
A responsabilidade penal empresarial perfilhada por diversos países, como, recentemente, Suíça e Espanha, encontra-se situada no contexto que desde os anos 1990 caracteriza um forte expansionismo jurídico-penal. No Brasil, basta lembrar que sua regulamentação ocorreu em 1998, com a Lei Ambiental, mesmo período de farta edição de leis penais, as quais, em geral, notabilizam-se por péssima qualidade técnica e duvidosa eficácia.
Neste diapasão, a responsabilidade em foco enseja análise consoante dois pilares jurídico-penais: adequação e eficiência. Em termos de adequação, há problema estrutural, pois não se coaduna com a Teoria do Delito erigida desde o final do século XIX, principalmente por autores alemães. Esse é, inclusive, conforme pensamos, o ponto fulcral que faz com que Alemanha não a adote. O paradigma penal construído desde o causal-naturalismo é o delito de homicídio doloso. Conforme SILVA SÁNCHEZ, a Teoria do Delito é uma teoria de atribuição teleológica de sentido a um fato de alguém. Ao longo de sua trajetória buscam-se soluções dogmáticas generalizantes aos casos apresentados, perpetrados por quem possua capacidade de consciência e liberdade de ação.
Indubitavelmente, a Teoria do Delito ainda evolui, ostentando contradições e problemas, conforme as modernas discussões funcionalistas revelam. No entanto, a teorização da responsabilidade corporativa revela mais pragmatismo que profundidade, estando ainda abaixo do pensamento dogmático tradicional. Em outras palavras, se numa sistemática de common law inexistem maiores dificuldades, numa construção romano-germânica há mais problemas que soluções.
Fundamentalmente, em termos dogmáticos, os conceitos de ação e de culpabilidade normalmente aceitos não encontram consonância para corporações. No caso da ação para algo que não possui consciência e liberdade, no fundo, apenas se engendra responsabilização por fato alheio. Mesmo teorias como da “ação institucional” (BAIGÚN) efetivamente constroem um pensamento excessivamente normativista que transfere responsabilidades.
Quanto à culpabilidade, a noção dominante, de juízo de reprovação, com os elementos imputabilidade, consciência potencial da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa, não possui sentido lógico no caso. Mesmo a visão funcionalista de ROXIN exige capacidade de motivação pelo comando normativo. Diante disso, os adeptos da responsabilidade referida clamam pela reconstrução da culpabilidade. Alguns entendem empresas como destinatárias de expectativas sociais de conduta. Assim, a frustração destas justificaria a responsabilização. Esse pensamento excessivamente abstrato, contudo, erige um modelo bastante distinto do desenvolvimento penal até aqui, concebido para seres racionais.
Tomada a decisão política de punir criminalmente empresas, não obstante, começam profundos problemas. Se a responsabilização penal é mecanismo de atribuição de fato criminoso, como isso ocorre para corporações? Basicamente, tentando um equacionamento, dentre outras propostas, construíram-se os modelos de responsabilidade por atribuição e por ato próprio. No primeiro caso, a empresa responde por ato de seu integrante. Além das dificuldades ínsitas de justificação de punição penal por ato de terceiro, pragmaticamente não se resolvem questões como falta de identificação do infrator, ou quando este age de forma inculpável, por exemplo. Quanto à teorização por ato próprio, fundamenta-se em uma abstrata ideia de defeito organizacional empresarial, que revelaria a responsabilização do ente por omissão de vigilância. Cuida-se de ficção eminentemente utilitarista a qual, novamente, responsabiliza a empresa por ato alheio, de seus integrantes.
Não bastasse tudo isso, a responsabilidade em questão viola o princípio da personalidade da pena. Isso quer pelo sócio que não praticou crime ser atingido diretamente, quer pelo fato de que, mesmo num pensamento por ato próprio, toda empresa é punida por ato de alguns.
Há, ainda, colossais dificuldades processuais envolvidas, relativas a quem citar, interrogar, atribuir indicação de testemunhas, ou qual impacto de conflitos de interesses ou de falências.
Ademais, se o Direito Penal caracteriza-se por suas sanções, ao não se cogitar de sua resposta típica, perde-se densidade na defesa por sua incidência. Quanto à questão sancionatória, as consequências possíveis (multa, extinção ou interdição de atividades, proibição de contratação com o Estado, publicação de condenação, etc.), já que impossível prisão, são típicas do Direito Administrativo, que não possui os empecilhos teóricos apontados.
Um argumento normalmente utilizado é de que tal responsabilidade faz-se precisa diante da capacidade simbólica criminal frente às empresas. Além de não haver comprovação empírica disso e, ao revés, intuitivamente o pretendido sinalizar pela operação lógica de custo/benefício, essa compreensão é quase um ato de fé em prol do Direito Penal, do qual se espera demais e cujo valor simbólico transmuta-se em simbolismo carente de eficácia mesmo para situações para as quais foi pensado. Aliás, Darryl BROWN identifica moralismo na incriminação corporativa, algo incompatível com esse ramo.
Não se nega que empresas ostentam potencial criminógeno e que o Direito Penal tradicional revela significativas dificuldades de incidência nestes casos. Dentre outras razões, pela dificuldade de identificação de autoria. Todavia, tamanho o descompasso entre responsabilidade corporativa e Teoria do Delito, a demandar radical reconstrução, bem como tão similar a tutela pretendida com a administrativa (e pense-se, dentre outras, nas sérias atuações de CVM, BACEN, CADE, PROCON, SUSEP, IBAMA ou MP nas improbidades), que tanto em termos de adequação como eficiência esta última mostra-se como melhor seara cerceadora de ilícitos empresariais, sem prejuízo de responsabilidades individuais.
A eventual necessidade de fortalecimento do Direito Administrativo, com viés sancionador, demanda mera reforma pontual, enquanto a responsabilidade penal da pessoa jurídica exige uma refundação do Direito Penal.