Alamiro Velludo Salvador Netto -
As formas e estruturas jurídicas não podem ser compreendidas de modo pleno se desvinculadas da realidade que as produz. Assim, as relações sociais de produção da riqueza, a cultura e em geral as ideias de um certo período histórico são fatores determinantes para que se possa perceber, afinal, porque o Direito “diz o que diz” e “não diz outra coisa”. O tema da responsabilidade penal da pessoa jurídica não é, obviamente, diferente. A questão que aqui se suscita, portanto, é: qual o motivo da força que ainda possui, principalmente no Brasil, o aforisma Societas delinquere non potest? Mais ainda: pode-se propugnar, com o vasto apoio da legislação comparada, a sua superação?
Ao jurista contemporâneo pode ainda parecer estranho pensar a hipótese de se responsabilizar penalmente empresas. Este estranhamento aparece justamente por causa da maneira como estão tradicionalmente estruturados na produção intelectual brasileira os fundamentos básicos da teoria do delito e da pena. As objeções, por esta mesma razão, são prontamente levantadas: a pessoa jurídica não poderia cometer crimes eis que não possui capacidade de ação, nem sequer de culpabilidade. Não pode ser presa e, dentre outras, a pena também não teria sobre ela, por se tratar de um ente moral, possibilidade de dissuasão.
Cumpre, entretanto, lembrar que o desenvolvimento do Direito punitivo sempre consagrou a condenações de coletividades. Exemplos inúmeros existem, valendo aqui apenas lembrar, haja vista o limitado espaço e a peculiaridade acadêmica, da condenação da Universidade Sorbonne, em 1561, por permitir a defesa de uma tese de doutorado segundo a qual o Papa poderia retirar o poder conferido por Deus ao Rei da França. O fato é que a exclusão das pessoas jurídicas da órbita penal foi um fruto direto da Revolução Francesa no século XVIII e, mais especificamente, daquilo que se poderia chamar de uma concepção jurídico-burguesa de mundo. O movimento vencedor, sob a égide do individualismo e da igualdade formal consubstanciada na fórmula abstrata do sujeito de Direito, acabou por encampar o pensamento ficcional acerca da pessoa jurídica. A França revolucionária, especialmente no tema aqui tratado, encontrou na Alemanha o pensamento que lhe serviu perfeitamente, qual seja, a construção da teoria da ficção elaborada por SAVINGY. De acordo com ele, e em termos bem básicos, a pessoa jurídica não teria existência real, seria uma pura criação da mente humana. Um ente, portanto, de existência artificial e limitada.
Esta perspectiva foi responsável por expulsar as pessoas jurídicas do Direito Penal, o que igualmente ocorreu na Alemanha com a ascensão e auge da teoria dos direitos subjetivos, sempre acompanhada da exigência humana do livre-arbítrio, categoria cuja própria essência, por razões óbvias, mostra-se incompatível com as corporações. Em outras palavras, o plano ético do Direito Penal tornava-o igualmente um ambiente refratário à responsabilização de coletividades.
Ocorre que o século XX iniciaria, por motivos histórico-materiais, um processo de gradativa erosão e desconstrução da máxima que afasta as pessoas jurídicas do Direito Penal. Primeiramente, viu-se as condenações de coletividades e órgãos estatais em decorrência das duas grandes guerras que assolaram o planeta. Posteriormente, este movimento progressivamente vai conduzindo a que um número cada vez maior de países da civil Law modifique suas legislações internas. Se a responsabilidade penal da pessoa jurídica sempre foi uma realidade nos países da common Law, destacadamente Inglaterra e Estados Unidos, a partir dos anos 1970 há, realmente, uma quebra definitiva de paradigma. Pode-se aqui exemplificativamente lembrar da adoção da punição a empresas na Holanda, Bélgica, França, Portugal, Itália e, recentemente, Espanha (2010). Igualmente, órgãos internacionais inúmeros já mostraram a relevância e pertinência do tema, como os Congressos da Associação Internacional de Direito Penal (Roma, 1953 e Rio de Janeiro, 1994) e a Convenção editada em 1997 no âmbito da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Evidentemente que, com tudo isso, a temática chegou à América do Sul, sendo adotada a responsabilidade penal da pessoa jurídica no Chile e no Brasil (Lei nº 9.605/1998), dentre outros.
É possível afirmar hoje em dia, portanto, que a imputação penal de pessoas jurídicas não é somente mais um anseio, mas sim uma realidade. Ao contrário de juristas que defendiam esta modalidade antes da sua adoção em solo nacional, como o fez AFFONSO ARINOS nos anos 1930 e SALOMÃO SHECAIRA aproximadamente sessenta anos depois, o desafio maior que hoje se coloca não reside mais no sim ou não deste tipo de responsabilidade penal. O que a vasta maioria das universidades europeias se questiona é o como construir modelos viáveis, coerentes e operacionais.
Vale dizer que as pessoas jurídicas transformaram-se definitivamente no núcleo de produção econômica da sociedade, no principal agente das finanças e, em consequência lógica de tal protagonismo, no centro produtor de riscos. Os grandes escândalos financeiros, as práticas de corrupção envolvendo o poder econômico privado, as fraudes fiscais e abusos ambientais mais do que representar condutas isoladas que se sublimam na organização empresarial, significam modos institucionais de procedimentos, de gestão administrativo-empresarial. Refletem, em outros termos, uma identidade corporativa. Punir exclusivamente as pessoas físicas culmina na falta de percepção da essência do problema, até mesmo porque neste caso é costumeiro que a reprimenda penal sempre recaia sobre um funcionário de médio ou baixo escalão, facilmente substituível na estrutura empresarial. Em suma, o núcleo fático da sociedade não pode abster-se de ser também o núcleo de imputação jurídica.
Em conclusão, as razões todas apontam não apenas para a viabilidade da adoção, de modo ainda mais ampla e voltada para a criminalidade econômica, da responsabilidade penal da pessoa jurídica no Brasil. Porém, é preciso dizer que compete à doutrina a lapidação de um modelo acadêmico, com o qual possa ser orientada a elaboração legislativa, a fim de evitar os equívocos terríveis que foram observados na já citada legislação brasileira de crimes ambientais. Do mesmo modo, a responsabilidade penal, seja de pessoas físicas ou jurídicas, deve estar coordenada com as garantias constitucionais, exigindo o respeito a princípios de legalidade, culpabilidade e individualização da pena. A culpabilidade da pessoa jurídica, por exemplo, é tema atual e dos mais complexos, compreendendo amplos debates sobre o compliance penal e ética corporativa. O legislador brasileiro, ao tentar criar uma responsabilidade administrativa na Lei Anticorrupção, mais uma vez andou mal. Adotou fórmula aberrante de responsabilidade objetiva com sanções que, se na Europa fossem, muito provavelmente seriam consideradas materialmente penais. Criou-se um modelo híbrido, o qual consegue sujeitar a pessoa jurídica a penas altíssimas sem garantir um julgamento feito por magistrado e praticamente sem possibilidades de defesa. Reflexões maiores certamente teriam evitado absurdos de tamanha cepa.
O velho MARX dizia que chegara a hora dos filósofos não apenas de tentarem compreender o mundo, mas sim de transformá-lo. No âmbito penal talvez tenha chegado a hora de não mais se debater asceticamente a aceitação ou não da responsabilidade penal da pessoa jurídica. É hora sim de pensar sua efetivação em conformidade com o Estado de Direito.