Por Marco Alexandre de Souza Serra -
Meu propósito neste texto é avaliar a recente decisão do ministro Celso de Mello, reafirmando, no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas-Corpus n. 117.076, a constitucional soberania do Tribunal do Júri para o julgamento de crimes dolosos contra a vida. Para o ministro Celso os jurados atualmente desfrutam de “ampla e irrestrita autonomia na formulação de juízos absolutórios, não se achando adstritos nem vinculados, em seu processo decisório, seja às teses suscitadas em plenário pela defesa, seja a quaisquer outros fundamentos de índole estritamente jurídica.” O ensejo deve também servir para celebrar os 30 anos de Celso de Mello como ministro do Supremo Tribunal Federal.
Finalmente, a correspondente e importante repercussão que tal julgamento tem merecido, sobretudo na internet, também reclama atenção. A este último respeito, cabe o registro de matérias verdadeiramente jornalísticas, veiculadas em sites especializados, a exemplo das publicadas pelo ConJur e pelo Jota. Menção especial merece ainda a coluna do professor Afrânio da Silva Jardim, no Empório do Direito, “publicada com um misto de tristeza e alegria”, como ele próprio assinalou em alusão ao entendimento de sua finada filha, Eliete Costa Silva Jardim, na mesma direção do adotado pelo ministro Celso de Mello, ensejando ao ministro também rememorá-la respeitosamente.
Meu interesse sobre o caso não é apenas aquele, já por si suficiente, do advogado e professor que atua na área criminal. É mais íntimo: o RHC 117.076, me tem como o advogado da causa, responsável pela preparação do recurso no ano de 2012 e da própria defesa em plenário do Júri no ainda mais distante ano de 2009.
O recurso apresentado ao STF derivou da anulação, pelo Tribunal de Justiça do Paraná, do julgamento realizado pelo Tribunal do Júri da comarca de Maringá. Compreendeu então o TJPR que o Júri teria decidido de forma manifestamente contrária à prova dos autos, determinando, de consequência, novo julgamento pelo mesmo tribunal popular. Antes de chegar ao STF, o caso, claro, também passou pelo Superior Tribunal de Justiça, que concordou com o tribunal paranaense.
Prolatada no último dia 1º de agosto, na decisão comentada o ministro Celso de Mello concluiu de modo bastante enfático que eventuais absolvições reconhecidas pelo Júri a partir da resposta ao quesito previsto no artigo 483, caput, III e seu § 2º (cujo teor textual é “O jurado absolve o acusado?”) do Código de Processo Penal, não mais se sujeitaria ao juízo de revisão do tribunal de segunda instância, sob a forma da apelação há muito consagrada no artigo 593, III, d do mesmo código.
Dir-se-á, claro, como fez certo promotor de justiça de São Paulo, que a soberania, mesmo instituída como direito e garantia individual, não é absoluta. Sua relativização estaria autorizada, segundo um argumento tão raso quanto frequente, pela incidência do malversado princípio da proporcionalidade – sobre o qual costumeiramente se ampara a noção de ponderação (balancing) -, de sorte que, naturalmente, a liberdade individual “deverá conviver harmonicamente com outras normas constitucionais, de modo que nenhuma delas coloque em risco a ordem pública.” A contradição, que decerto incomodaria Aristóteles em seu merecido e profundo descanso, é evidente: nenhum direito é absoluto, com oportuna exceção a uma errática ordem pública.
Em contraste com este argumento é possível ainda agregar que ao truísmo de dizer que não há direito ou garantia absolutas não deve corresponder o chavão-fácil de que eventual contradição entre quaisquer direitos deve ser resolvida por meio do recurso à ponderação, cuja malversação, tanto mais no Brasil, tem se revelado mais do que suficiente para também perturbar, não o descanso eterno, claro, mas por certo o sono de Robert Alexy, seu principal artífice. Fundamentalmente porque a ponderação só emerge como admissível como forma subsidiária ou residual de solucionar o concreto antagonismo entre princípios constitucionais, entre os quais estão os direitos fundamentais.
Disso já deriva que eventual antagonismo entre regras e princípios não se soluciona pela ponderação. Ademais, quando presente, uma colisão entre princípios só poderá resolver-se por esta técnica quando outros instrumentos e métodos argumentativos mostrarem-se desaconselháveis. Para não se alongar demais, diga-se que a utilização da ponderação ou sopesamento, hábeis, pela teoria constitucional contemporânea, a admitir a redução ou até mesmo a anulação do espaço de proteção de um direito fundamental, não parece aplicar-se à hipótese versada, tanto mais sob o ângulo de uma indemonstrável colisão entre o direito a ter o julgamento pelo Júri prestigiado, por um lado, e a preservação da ordem pública, por outro.
Pouparemos a audiência (nossos leitores e leitoras) de nos acompanhar no cotejo entre a soberania dos vereditos e a liberdade individual. Digamos apenas que quem o fez concluiu que “o direito de liberdade é um bem proporcionalmente maior à soberania dos veredicta.” Pois, “a posição topográfica da instituição do Júri no corpo da Constituição, precisamente no capítulo destinado aos direitos e garantias fundamentais do homem, tem um alto significado.”
Talvez em oportunidade um tanto inadequada. O certo, porém, é que a perspectiva adotada pelo ministro Celso de Mello foi a de encaminhar a solução da causa concreta em direção a uma mutação da interpretação da previsão constitucional que prevê soberania às decisões do Júri. Assim como nós, o ministro a tanto viu-se impelido pelas modificações que a lei 11.689 de 2008 introduziu no procedimento do julgamento pelo Tribunal do Júri.
Como dissemos na impetração apresentada ao STF, o Júri existe para reverenciar a liberdade. Para isso é que ele também prestigia o direito de defesa. E o faz de forma plena, ao contrário do que a Constituição assegura aos demais sujeitos passivos processuais. É o que emerge do artigo 5º, XXXVIII. Para alguns, esta compleição normativa sempre desautorizou que a decisão do Conselho de Sentença seja cassada pela constatação de error in judicando. O já citado Tourinho Filho, reconhecendo, embora, a lisura das possibilidades previstas no artigo 593, III, d do Código de Processo Penal, mesmo antes da reforma de 2008 já propunha, a partir de ótica constitucional, que apenas a defesa pode apelar de decisão soberana do Júri. O princípio do favor rei, segundo salienta, seria o suficiente para justificar tal possibilidade.
O resultado do julgamento foi além do necessário para a restituição da soberania ao Júri no caso concreto. Para este objetivo mais modesto bastaria reconhecer que a decisão do TJPR, determinando a invalidação do Júri por contrariedade à prova dos autos, destoava do sistema processual penal, que há muito assevera inexistir possibilidade de o tribunal de apelação optar, entre as teses em contraste no julgamento ante o Júri, por uma diferente daquela aceita em plenário.
O ministro Celso de Mello, no entanto, sinaliza que a apelação contra o mérito da decisão pelo Júri, doravante, estará limitada apenas à defesa. Assim se garantiria simultânea eficácia à homenagem que a Constituição de 1988 consagrou à soberania do Júri e à liberdade individual.
Na impetração apresentada sugerimos uma outra possibilidade interpretativa, inconfundível com a restrição da apelação contra o mérito apenas à defesa. Deste modo, a apelação quanto ao mérito só estaria autorizada ante a evidência de que a contradição entre o veredito e a prova dos autos se estabelecesse em relação aos mais rudimentares pressupostos para a imposição de uma condenação.
Isto é, em relação à materialidade ou existência do fato imputado e sua autoria, enfrentados pelo Conselho de Sentença nas respostas aos obrigatórios primeiro e segundo quesitos, previstos, respectivamente, nos incisos I e II do artigo 483 do Código de Processo Penal em sua atual redação. Esta saída, mais heterodoxa, talvez não seja a que mais reverencie o conjunto dos direitos humanos e fundamentais tão maltratados ultimamente. Continuaria a preservar, porém, a soberana decisão do Júri, ao menos no caso concreto.
Mais especificamente, de forma paralela ou subsidiária a esta da superveniente inadmissibilidade da apelação contra a absolvição pelo Júri com base no quesito atualmente previsto no artigo 483, III, uma outra questão jurídica, de equivalente ou maior envergadura, também se coloca: mesmo pressuposta a possibilidade de a absolvição com base no quesito genérico ser revista pelo tribunal de 2º grau, há limites bastante evidentes para que eventual apelação postulando pela anulação da decisão do Conselho de Sentença mereça provimento.
Basicamente porque a escolha entre condenar, absolver ou eventualmente “aliviar” uma dada condenação é tarefa que compete, com exclusividade, ao tribunal popular. Que julga, no jargão jurídico, ex informata conscientia. Isto é, devendo contas apenas à sua consciência, por convicção íntima. Como disse o ministro Celso de Mello, por razões de índole eminentemente subjetiva ou de natureza destacadamente metajurídica, a exemplo do juízo de clemência, de equidade, ou de caráter humanitário.
Com base nesta premissa é que também se estabeleceu na jurisprudência brasileira que a contrariedade à prova dos autos, para admitir a cassação do julgamento que a Constituição reconhece como soberano, somente se afigura viável quando a prova dos autos não lhe emprestar qualquer apoio. A decisão entre as possibilidades colocadas - menos ou mais prováveis, melhores ou piores -, é competência reservada ao tribunal popular. Neste ponto, a decisão prolatada no RHC 117.076 não implica propriamente uma novidade.
Sem embargo da alvissareira inovação que a decisão do ministro Celso de Mello representa, não se deve perder de vista que ela foi individual. Não contou com o aval ou mesmo a indulgência dos demais ministros que integram o STF e nem mesmo a 2ª turma - que o ministro Celso compõe. Talvez não traduza um precedente no sentido mais tradicional da expressão. O julgamento monocrático quem sabe representasse, assim, a perda de uma importante oportunidade de se avançar rumo a uma inovadora interpretação, e de também de projetá-la, por assim dizer, num horizonte mais largo.
Na verdade, estamos diante de dois comportamentos que, apresentando-se antagônicos no caso, traduzem uma dupla tendência, neste caso censurável, do atual STF: de um lado, a de decidir monocraticamente processos cuja competência está reservada a órgãos colegiados; de outro, a de objetificação de processos que em princípio envolve casos subjetivos.
O fato é que o Ministério Público Federal recorreu, por meio de agravo regimental, da decisão do ministro Celso de Mello. Augura-se que a 2ª turma ou quem sabe o plenário do STF, em homenagem ao verdadeiro magistério que seu mais antigo ministro já legou, mais do que a justiça para o caso concreto, continue a enaltecer, mesmo que em nível de maior abstração, e quanto os tempos atuais exigem, o conjunto das liberdades que nossa ordem jurídico-constitucional ainda é pródiga em consagrar.