Por Eduardo Januário Newton -
A dificuldade de lidar com o novo marca a própria existência humana. Ao se adotar o critério positivado no Código Civil, vide o contido em seu artigo 2º, verifica-se que o homem e a mulher, quando adquirem a personalidade jurídica, estranham a realidade dos fatos e o primeiro pranto é o sinal de que os pulmões iniciaram as suas atividades.
Marcos Paulo Dutra Santos, ao realizar um conjunto de críticas aos detratores do juiz de garantias, aborda essa resistência ao que é novo no cenário jurídico:
"No tocante ao juiz de garantias, a reação tem sido enérgica, por impactar na estrutura da persecução penal brasileira, rompendo uma tradição quase octagenária, segundo a qual o juiz interventor no inquérito torna-se prevento para o processo (...) Como o Direito sempre se notabilizou por uma aura conservadora, verificada do trajar ao falar, prenhe de liturgias, a resistência ao novo é notável, potencializada por um indisfarçável comodismo, intelectual e material" .
Juntamente com essa constatação elaborada pelo citado defensor público fluminense, não se pode olvidar a mensagem acurada trazida em 2016 — e republicada em 2018 — pelo professor Jacinto Nelson Miranda Coutinho:
"Vive-se, no Brasil de hoje, uma situação paradoxal: tem-se uma aparente liberdade, mas ela não é dimensionada para se respeitar as regras e sim para se fazer o que se quiser, máxime por parte dos órgãos do Estado. Quando isso se conjuga com os órgãos do poder, mormente os jurisdicionais, a hermenêutica da conduta de muitos, vira um brinquedo pelo qual se interpreta como se quiser, dando ao texto os sentidos próprios, suas próprias verdades. Estaria bem, sem dúvida, se cada um estivesse autorizado a fazer suas próprias leis e pudesse dar a elas os sentidos que bem entendesse, solipsisticamente" .
Ora, e por qual razão invocar esse mosaico que aponta para uma resistência ao novo e o solipsisimo antidemocrático? Simples. Em razão da medida liminar proferida pelo ministro Edson Fachin no Agravo Regimental na Reclamação Constitucional nº 29.303, que determinou a realização da audiência de custódia em todas as modalidades prisionais, o que se tem observado, além do surgimento de atos normativos que limitam indevidamente o alcance da audiência de custódia , são comportamentos que acabam por desnaturar o instituto em tela e, por via de consequência, restringir indevidamente o gozo do direito subjetivo público de ser apresentado imediatamente à autoridade judicial em caso de aprisionamento.
Nos casos em que a audiência de custódia decorre de título prisional diverso da prisão em flagrante, a novidade da realidade aliada ao fenômeno da resistência ao inédito acaba por permitir que situações indevidas surjam, tais como a inversão da ordem de manifestação, pedido de vista do Estado-acusação após a apresentação do pleito defensivo — situação nitidamente violadora do contraditório e ampla defesa — e, o que constitui o maior dos absurdos, o encerramento da audiência de custódia sem qualquer decisão judicial.
Para o enfrentamento dessas situações — que não podem ser tidas como fruto da ficção ou relegadas a uma discussão bizantina —, ainda que se possa invocar a novidade, a verdade é que as soluções dependem do posicionamento frente ao modelo de persecução penal adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Muito antes do advento da Lei nº 13.964/19, Geraldo Prado em seminal obra já indicava que o modelo acusatório de persecução penal vai muito além da separação das funções de acusar e julgar. É óbvio que se trata de uma distinção imprescindível e não pode ser superada. Não por outra razão que o seu descumprimento enseja a máxima de que "quem tem o juiz como acusador, precisa de Deus como defensor". Porém, é preciso avançar na caracterização, definição e, principalmente, compreensão desse modelo de persecução penal, até mesmo porque ele é o que se encontra mais adequado ao texto constitucional.
A oralidade adquire uma relevância única no modelo acusatório. Assim, as decisões judiciais deverão ser precedidas de um verdadeiro duelo entre as partes do processo — acusação e defesa — e, somente depois, será franqueado o exercício do poder jurisdicional. Há, assim, uma necessidade de modificação paradigmática no agir das partes no processo, tal como apontado por Aury Lopes Júnior e Thiago Minagé:
"Observem que, todas as decisões a serem tomadas pela autoridade judicial, devem, necessariamente, ser precedidas de manifestação da acusação e da defesa em audiência. Eis o grande desafio: exigir que o judiciário respeite e aplique o disposto na lei e que todas as decisões passem a ser proferidas em audiência" .
A partir dos cenários problematizados, de plano é oportuno frisar que não há qualquer chance para pedido de vista dos autos para o Estado-acusação se manifestar sobre pleito defensivo. A audiência de custódia constitui o momento e o local adequados e válidos para qualquer alegação. Aliás, existe uma questão anterior, não há base jurídica alguma para que a defesa se manifeste antes do Ministério Público na audiência de custódia, ainda que seja o ato realizado decorrente de título prisional diverso da prisão em flagrante. Apesar de já existir manifestação ministerial, por exemplo, que requereu a decretação de uma prisão preventiva, caberá ao membro do Ministério Público reiterar o pedido oralmente e diante da parte adversa, sob pena de a manutenção da prisão decorrer de uma verdadeira atuação jurisdicional de ofício . Além disso, não há espaço para réplica em sede de audiência de custódia — até mesmo porque se existisse deveria ser assegurada a tréplica para a defesa.
Caso subsista algum questionamento sobre a ordem das manifestações realizadas na audiência de custódia, que se iniciam com o Estado-acusação, a Resolução nº 213, Conselho Nacional de Justiça poderá afagar os ânimos mais agitados diante da novidade dos fatos:
"Artigo 8º — §1º. Após a oitiva da pessoa presa em flagrante delito, o juiz deferirá ao Ministério Público e à defesa técnica, nesta ordem, reperguntas compatíveis com a natureza do ato, devendo indeferir as perguntas relativas ao mérito dos fatos que possam constituir eventual imputação, permitindo-lhes, em seguida, requerer (...)".
Sobre o não decidir — non liquet — ao término da audiência de custódia, o texto constitucional impede que o Poder Judiciário simplesmente se desincumba do seu dever, vide o disposto no artigo 5º, inciso XXXV, Constituição da República. É dever fundamental apresentar respostas as demandas. Com base nesse ponto, é que se pode questionar o que veio a ser chamada como audiência de custódia no caso que envolveu recente prisão de deputado federal. A crítica ao nominalismo jurídico feita por Lenio Streck e o posicionamento judicial assumido — decidiu-se não decidir — conferiram maior força ao posicionamento de que a audiência de custódia naquele caso deveria ter sido realizada pela Câmara dos Deputados, tal como assegura o artigo 53, §2º, Constituição da República, combinado com artigo 7º, item 5, Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
As três situações examinadas neste texto demonstram o longo caminho que a dogmática precisa enfrentar em seus estudos sobre a audiência de custódia e como a prática forense não pode querer apelar para velhas soluções como forma de resolver problemas novos. Em um país-continente, é claro que diversas outras realidades poderão ensejar novos questionamentos e novas reflexões. As análises não poderão se desviar do modelo de persecução penal consagrado constitucionalmente. E, ainda que as soluções possam ensejar o desconforto pelo ineditismo, não poderão os atores jurídicos se valerem do medo para impedir o correto agir. Caso permaneça algum receio, a música popular brasileira poderá fornecer um guia daquilo que não deve ser feito:
"Eu tenho medo e já aconteceu
Eu tenho medo e inda está por vir
Morre o meu medo e isto não é segredo
Eu mando buscar outro lá no Piauí" .