Vladimir Passos de Freitas -
Os que viveram no século XX lembram que as ações penais no Brasil eram, principalmente, relacionadas com homicídios, furtos, roubos, estelionatos, falsidades em suas diversas formas e ilícitos contra a administração pública.
Esses processos criminais, regra geral, envolviam apenas acusado e vítima, figurando o Estado como garantidor da ordem pública. Na apuração dos fatos não havia maior complexidade. A prova testemunhal era a preponderante. Nos homicídios realizava-se perícia no IML. Eventualmente, um exame técnico atestava um quase ingênuo furto praticado com escalada.
A tortura era comum, veladamente admitida, e não apenas durante o regime militar, mas antes dele também. Era praticada, geralmente, contra suspeitos pobres em crimes contra o patrimônio. Atualmente, tal conduta é repudiada por todos e punida severamente pela Lei 9.455, de 1997.
Mas, a partir da queda do Muro de Berlim, aos 9 de novembro de 1989, o mundo passou por enorme transformação econômica. Empresas multinacionais flexibilizaram as fronteiras entre os Estados, as viagens internacionais tornaram-se intensas e a evolução da eletrônica e das comunicações fez com que um jovem da Colômbia pouca diferença tenha de outro do Cazaquistão.
Como era de se esperar, novas modalidades criminosas surgiram, muito mais sofisticadas, com transferência de capitais para paraísos fiscais, assistência por profissionais capacitados e métodos de organização empresarial. Para Douglas Fischer, “os dados estatísticos sobre os efeitos da delinquência econômica realmente são surpreendentes, chegando-se a ponto de se poder concluir que os danos materiais que produzem são muito maiores do que aqueles ocorrentes na (assim denominada) tradicional delinquência”.
Enquanto isso se passava, em Palermo, na Sicília (Itália), a organização criminosa conhecida como Cosa Nostra ou Máfia eliminou em 1992 dois magistrados que se dedicavam ao combate ao crime organizado: Giovanni Falcone e Paolo Borsellino. Desses fatos originou-se a “Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Transnacional”, mais conhecida como “Convenção de Palermo”, aprovada em 15 de novembro de 2000 em Nova York e no Brasil pelo Decreto 5.015, de 2004.
A partir de então, nosso país, como outros, passou a editar leis mais severas no combate à criminalidade organizada. Todavia, foi a Lei 12.850, de 2013, que trata das organizações criminosas e dos meios de provas para apuração de seus crimes, que promoveu a grande mudança.
Houve objeções contra esta lei e a primeira delas é de ordem ética. Guilherme Nucci registra que alguns a criticam porque, no caso da colaboração premiada, haveria um contrato antiético entre o Estado e o criminoso. Ele, porém, manifesta-se favoravelmente, sublinhando que deve ser “submetida, naturalmente, à rigorosa análise do julgador”.
Nesta modalidade de prova, o momento da delação premiada é muito importante. Se os fatos são complexos, aquele que primeiro colaborar poderá não ser denunciado pelo MP, é dizer, nem responderá ação penal (artigo 4º, parágrafo 4º, inciso II). Se vier a ser processado, poderá até ser perdoado, ou seja, não cumprir pena (artigo 4º). Mas, se a colaboração vier depois da sentença, a vantagem será menor, apenas a redução da pena até a metade (artigo 4º, parágrafo 5º).
A diferença de tratamento não é indevida. Pretender que as situações sejam iguais fere a lógica da vida, onde, em tudo, há opções, vantagens e desvantagens. O brocardo jurídico prior in tempore, potior in jure (quem antecede em tempo, avantaja-se em direito), lembrado por Carlos Maximiliano, aplica-se ao caso como uma luva.
Os resultados estão à vista, a partir da chamada operação “lava jato”, com decisões judiciais que dão a todos, independentemente da condição econômica ou do poder político, o mesmo tratamento. Por força de colaborações premiadas e das provas colhidas em razão destas denúncias, pessoas da mais alta hierarquia política (por exemplo, o ex-deputado federal André Vargas, que chegou a exercer a presidência da Câmara dos Deputados) ou econômica (como o empresário Marcelo Odebrecht) passaram a ter por domicílio a Polícia Federal ou o Complexo Médico-Penal, em Pinhais, Região Metropolitana de Curitiba.
As operações se sucedem e, com elas, novas prisões, buscas e apreensões judiciais, confisco de valores e bens oriundos de crimes. Na mais recente, denominada operação custo Brasil, foi preso o ex-ministro Paulo Bernardo, marido da senadora Gleise Hoffman. O detalhe é que a ordem de prisão veio do juiz Paulo Bueno de Azevedo, da 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo, portanto, a mostrar que a nova forma de ver o Direito Penal Econômico não se confina mais à 13ª Vara Federal de Curitiba.
Por outro lado, investigações e denúncias não se restringem mais ao Partido dos Trabalhadores. O Procurador Geral da República denunciou ao STF e requereu a prisão preventiva de Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), presidente da Câmara dos Deputados afastado do cargo, do senador Romero Jucá (PMDB-RR) e, ainda, do ex-presidente da República José Sarney (PMDB-AP). A iniciativa, de um rigor inusitado, mostra o propósito de deixar bem claro que o Ministério Público Federal não mira este ou aquele partido e que nenhum partido ou pessoa goza de tratamento privilegiado.
Mas é cedo para festejar. Pairam no ar nuvens de que haja flexibilizações na legislação. No dia seguinte à delação premiada de Sérgio Machado, Eliseu Padilha, chefe da Casa Civil, afirmou que os agentes envolvidos nas investigações deveriam sinalizar o momento dela chegar ao final. Referida afirmação mereceu enérgica resposta do professor Modesto Carvalhosa, autor de livros de combate à corrupção, receoso de leis que tragam a impunidade.
Neste ponto é inevitável a comparação com o ocorrido na Itália, através da operação Mani Puliti, a partir de 1992. Os magistrados que conduziram a operação que abalou aquele país foram Antonio Di Pietro, Gherardo Colombo e Piercamilo Davigo. Di Pietro atraiu as atenções e passou a ser visto como um herói nacional. Em 1998 largou a toga e ingressou na política. Fundou um partido político, Italia Dei Valori, que acabou tendo suas contas colocadas em discussão. Foi acusado de ter um patrimônio maior que suas rendas. Muito embora tenha sido inocentado em todas as investigações, ele sofreu enorme desgaste e as investigações perderam a força.
O golpe de morte à operação Mãos Limpas foi a “flexibilização” de leis pelo Parlamento. Segundo Rafael Carielo, “As condições de admissibilidade de confissões e depoimentos foram restringidas. A gravidade e as penas impostas a vários crimes, reduzidas. Além disso, processos passaram a poder ser transferidos para outros juízes, caso a imparcialidade dos magistrados originais fosse considerada duvidosa”. Além destas medidas, em 2005 uma lei cortou os prazos de prescrição pela metade, fazendo com que muitos casos ficassem impunes.
Portanto, no Brasil, a ameaça pode vir do próprio Poder Legislativo, pois, como se diz em Portugal “cá como lá... más fadas há”. A enorme quantidade de senadores e deputados federais envolvidos nas acusações, alguns da mais alta expressão política, poderá fazer com que sejam editadas leis com o objetivo de reduzir as condenações ou anistiar as penas impostas.
E aí chegamos ao ponto. Como reagirá a sociedade? Com certeza não será com a passividade do passado, atualmente há maior conscientização. Políticos corruptos e empresários acusados têm sido, constantemente, vaiados em aeroportos e restaurantes. As redes sociais transmitem e convocam, em tempo real, a tomada de posição.
Portanto, se parlamentares tentarem esvaziar, por novas leis os processos criminais em curso ou os que surgirão, a reação virá com certeza. Certamente se concretizará a previsão de Modesto Carvalhosa, que ao final de seu já citado artigo afirma: “pelo visto, precisamos voltar às ruas, e muito breve”.