Por Rômulo de Andrade Moreira -
O que será, que será?
Que andam suspirando pelas alcovas
Que andam sussurrando em versos e trovas
Que andam combinando no breu das tocas
Que anda nas cabeças, anda nas bocas
Que andam acendendo velas nos becos
Que estão falando alto pelos botecos
E gritam nos mercados que com certeza(...)
Será, que será?
O que não tem decência nem nunca terá
O que não tem censura nem nunca terá
O que não faz sentido(...)
O que não tem governo nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo.”
(O Que Será - À Flor da Terra, Chico Buarque)
Na última quinta-feira (14/6), por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou que a condução coercitiva de réu ou investigado para interrogatório permitida pelo artigo 260 do Código de Processo Penal não foi recepcionada pela Constituição Federal. A decisão foi tomada no julgamento das arguições de descumprimento de preceito fundamental 395 e 444.
Adotou-se o entendimento segundo o qual a condução coercitiva “representa restrição à liberdade de locomoção e viola a presunção de não culpabilidade, sendo, portanto, incompatível com a Constituição Federal”.
Pela decisão do Plenário, “o agente ou a autoridade que desobedecerem a decisão poderão ser responsabilizados nos âmbitos disciplinar, civil e penal. As provas obtidas por meio do interrogatório ilegal também podem ser consideradas ilícitas, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.
Obviamente que decidiu acertadamente o Supremo Tribunal Federal, pois, como já escrevemos algumas vezes, o artigo 260 do Código de Processo Penal não foi recepcionado pela nova ordem constitucional, pouco importando, ressalte-se, ter havido prévia notificação do investigado ou do acusado. Esse fato não tem a menor importância frente ao direito constitucional ao silêncio e ao direito convencional de não produzir prova contra si mesmo. Não tem nada que ver uma coisa com outra coisa! Aqui, confunde-se alhos com bugalhos ou, como diriam os espanhóis, “confundió peras con manzanas”.
Nada obstante, chamou a atenção a seguinte afirmação do ministro Luís Roberto Barroso, do alto de sua fina erudição e com a sua peculiar e indelével pose ascética: “Quando juízes corajosos começam a delinear Direito Penal menos seletivo, há um surto de garantismo”.
Bem, eu imagino que, ao se referir a “juízes corajosos”, o ministro não tenha feito alusão a magistrados arbitrários e inescrupulosos; recuso-me a acreditar em tal hipótese tão absurda, afinal de contas, trata-se de um reconhecido constitucionalista brasileiro avesso, portanto (supõe-se), a tais juízes.
É bem verdade que, aparentemente, vivemos tempos festivos, tempos de decisões judiciais ativas, de protagonismos judiciais etc., mas não esqueçamos a lição de Guy Debord: “Essa época, que mostra seu tempo a si mesma como sendo essencialmente o giro acelerado de múltiplas festividades, é também uma época sem festa”.
Não foi a primeira vez que o ministro se manifestou curiosamente; no ano passado, mais exatamente em uma palestra proferida no dia 11 de agosto, em São Paulo, no 7º Congresso Brasileiro de Sociedades de Advogados, ao defender a prisão antes do trânsito em julgado, afirmou que “a criminalidade se difundiu na sociedade brasileira porque não havia nenhum tipo de punição. As pessoas tomam suas decisões baseadas em incentivos e riscos. Você tinha o incentivo do ganho fácil e farto e não tinha o risco de qualquer punição, porque a decisão tardava, os recursos procrastinatórios se eternizavam e você tinha prescrição. Nós criamos uma sociedade em que, frequentemente, o crime compensa”.
Ora, ora... Será?
Será que o ministro tem conhecimento de que no Brasil temos a terceira população carcerária do mundo, e não mais a quarta?
Será que é do conhecimento dele que quase metade desses presos cumpre prisão provisória, portanto, sem condenação definitiva?
Será que toda essa gente encarcerada foi investigada, processada ou condenada por corrupção ou qualquer outro tipo de crime contra a administração pública ou contra a ordem econômico-financeira?
Será que estamos mesmo sob um “surto de garantismo”?
Será mesmo que não estaríamos, na verdade, vivendo um surto odioso e perverso de punitivismo capitaneado, exatamente, por alguns ministros da suprema corte?
Pois é, como escreveu Roger Scruton, “o Estado de Direito não é uma realização simples, para ser pesada contra os benefícios de algum esquema social rival e renunciado em seu favor. Pelo contrário, ele define nossa condição social e representa o ponto alto da realização política europeia. Há um Estado de Direito, contudo, somente onde todo poder, ainda que amplo, esteja sujeito à lei e limitado por ela”.