Por André Nicolitt -
Em 2017, publicamos um artigo dando conta de que, em 7 de março daquele ano, a 1ª Turma do STF se debruçou sobre o HC 118.770/SP para decidir sobre a liberdade do paciente que se encontrava preso havia nove anos, cinco meses e 21 dias, aproximadamente, sem que a condenação do tribunal do júri tivesse transitado em julgado. O caso poderia simplesmente ter sido resolvido pelo não conhecimento do Habeas Corpus, ao argumento de que se tratava de HC substitutivo de recurso ordinário, reproduzindo-se os precedentes da corte, também criticáveis, que restringem o manejo do instituto do Habeas Corpus nos tribunais superiores.
Todavia, uma preocupação tomou-nos o pensamento naquela altura. O referido julgado do órgão fracionário do STF possuía estrutura e razões que revelavam certa pretensão de tese a ser estabelecida. Vale transcrever a ementa:
"STF – HC 118.770, Rel. ministro Roberto Barroso.
Direito Constitucional e Penal. Habeas corpus. Duplo homicídio, ambos qualificados. Condenação pelo Tribunal do Júri. Soberania dos veredictos. Início do cumprimento da pena. Possibilidade. 1. A Constituição Federal prevê a competência do Tribunal do Júri para o julgamento de crimes dolosos contra a vida (artigo 5º, inciso XXXVIII, d). Prevê, ademais, a soberania dos veredictos (artigo 5º, inciso XXXVIII, c), a significar que os tribunais não podem substituir a decisão proferida pelo júri popular. 2. Diante disso, não viola o princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade a execução da condenação pelo Tribunal do Júri, independentemente do julgamento da apelação ou de qualquer outro recurso. (...) Tese de julgamento: 'A prisão de réu condenado por decisão do Tribunal do Júri, ainda que sujeita a recurso, não viola o princípio constitucional da presunção de inocência ou não-culpabilidade'".
Não obstante o resultado das ADCs 43, 44 e 54, a presunção de inocência como princípio de raiz iluminista não tem sossego em tempos de obscurantismo e autoritarismo.
Em fevereiro de 2019, o Ministério da Justiça e da Segurança Pública apresentou o seu famigerado pacote "anticrime" (PL 882/2019), propondo a execução provisória das decisões condenatórias do júri (artigo 492, I, "e", CPP).
Em sua justificativa, Sérgio Moro invoca exatamente o julgamento do HC 118.770/SP, cujo acórdão foi redigido pelo ministro Barroso, fundando ainda seu projeto no princípio da soberania dos veredictos:
"Os artigos 421, 492 e 584, na sua nova redação, dizem respeito à prisão nos processos criminais da competência do Tribunal do Júri. A justificativa baseia-se na soberania dos veredictos do Tribunal do Júri e a usual gravidade em concreto dos crimes por ele julgados e que justificam um tratamento diferenciado. Na verdade, está se colocando na lei processual penal o decidido em julgamentos do Supremo Tribunal Federal que, por duas vezes, admitiu a execução imediata do veredicto, tendo em conta que a decisão do Tribunal do Júri é soberana, não podendo o Tribunal de Justiça substituí-la" (STF, HC nº 118.770/SP, Rel. ministro Marco Aurélio, Rel. para o Acórdão ministro Luís Barroso, j. 7/3/2017 e HC nº 140.449/RJ, Relator ministro Marco Aurélio, Relator para o Acórdão ministro Luís Barroso, j. 6/11/2018).
Também em 2019 (setembro) foi distribuído ao ministro Barroso o RE 1235340, tendo sido reconhecida a repercussão geral em outubro de 2019. No julgamento iniciado em maio de 2020, votaram três ministros e houve pedido de vista pelo ministro Ricardo Lewandowski.
Nessa altura, já se encontra em vigor a nova redação dada ao artigo 492 do CPP em razão do pacote "anticrime", já desfigurado pelo Congresso, que se converteu na Lei 13.964/2019, transcreve-se:
"Artigo 492 — Em seguida, o presidente proferirá sentença que:
I – no caso de condenação:
- e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas (...)".
Note-se que o texto aprovado não prevê a execução provisória em qualquer caso, mas apenas nas condenações cuja a pena aplicada seja igual ou superior a 15 anos de reclusão.
Diante desse cenário vem ocorrendo o julgamento do RE 1235340, no qual já há três votos. Os ministros Roberto Barroso (relator) e Dias Toffoli (presidente) esposam a seguinte tese:
1) "A soberania dos veredictos do tribunal do júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada".
Diametralmente em sentido oposto, o ministro Gilmar Mendes sustenta a tese:
2) "A Constituição Federal, levando em conta a presunção de inocência (artigo 5º, inciso LV), e a Convenção Americana de Direitos Humanos, em razão do direito de recurso do condenado (artigo 8.2.h), vedam a execução imediata das condenações proferidas por Tribunal do Júri, mas a prisão preventiva do condenado pode ser decretada motivadamente, nos termos do artigo 312 do CPP, pelo juiz-presidente a partir dos fatos e fundamentos assentados pelos jurados". Portanto, é inconstitucional a nova redação determinada pela Lei 13.964/2019 ao artigo 492, I, "e", do Código de Processo Penal.
Tanto no pacote "anticrime" como no voto do ministro Barroso, o fundamento para a execução provisória da pena decorreria da soberania dos veredictos. Segundo o parecer da PGR nos autos do RE 1235340, não obstante o entendimento fixado pelo STF, a soberania dos veredictos confere às decisões do tribunal do júri um especial e próprio caráter de intangibilidade material, o que permite um tratamento jurisprudencial diferenciado.
Ora, essa linha de interpretação é absolutamente equivocada. Ademais, a nova redação dada ao artigo 492, I, alínea "e" do CPP, sequer pode ser incluída na discussão sobre soberania dos veredictos. Vejamos.
O princípio da soberania dos veredictos está previsto na alínea "c" do inciso XXXVIII do artigo 5º da CRF/88, portanto, sob o título "Dos Direitos e Garantias Fundamentais". Não há dificuldade alguma em reconhecer em tal princípio a natureza jurídica de direito fundamental .
O tribunal do júri é marcado pela plenitude de defesa e pela íntima convicção dos jurados leigos, pelo julgamento do réu por seus iguais e pela soberania da decisão. A soberania refere-se à decisão sobre o fato, até porque a decisão sobre a pena é do juiz-presidente e pode, inclusive, ser reformada pelo tribunal. Assim, a soberania em nada se refere à pena, à prisão cautelar ou ao início da execução..
Por sua vez, a presunção de inocência também está prevista no artigo 5º da CRF/88, no inciso LVII, com a redação de que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Além de fixar o ônus da prova para acusação e proclamando o in dubio pro reo, serve como limitação teleológica à aplicação das prisões cautelares vedando a antecipação da pena.
Assim estamos diante de dois direitos fundamentais: presunção de inocência e soberania dos veredictos. São eles fruto do pensamento liberal do século XVIII. Tratava-se de um catálogo de limites que visava à proteção do indivíduo diante do Estado, isto é, um leque de limites ao exercício do poder .
Essa noção é essencial para qualquer atividade interpretativa e de aplicação dos direitos fundamentais e, ao que nos parece, foi olvidado no julgamento do HC 118.770 do STF, em dois dos votos até então prolatados no RE 1235340, passando longe do pacto "anticrime".
A soberania dos veredictos e a presunção de inocência, como direitos fundamentais que protegem o indivíduo, não podem agigantar o Estado em detrimento do homem.
Parece-nos verdadeiro que é inevitável reconhecer a importância da ponderação. Mesmo Ferrajoli, que possui posição crítica ao tema, destaca que há espaços de incidência da ponderação judicial atinentes à interpretação jurídica, espaços estes que se tornam mais amplos quando estamos diante de princípios. Contudo, a crítica que se faz refere-se à excessiva ampliação da ponderação judicial que transforma a ponderação em uma espécie de bolha terminológica, tão dilatada que chega mesmo a esvaziar e tornar inaplicáveis as normas constitucionais .
A jurisprudência no Brasil faz uso sem critério algum da teoria de Robert Alexy e transforma a ponderação em um enunciado performático, um álibi teórico, capaz de fundamentar os posicionamentos mais diversos. A ponderação não é colocar dois princípios em uma balança e ver o que pesa mais. Isso está longe de ser a concepção alexyana .
Já tivemos oportunidade de assinalar que a dignidade humana é o farol que ilumina a ponderação, ou seja, é o critério para definir o princípio, valor ou interesse prevalente. Ana Paula Barcellos, indicando parâmetros normativos para a ponderação, ensina que a solução deve ser a que "prestigia a dignidade humana", tendo esta preferência sobre as demais. A centralidade constitucional da pessoa humana, sua dignidade, é a diretriz que indica qual princípio a ser sacrificado no caso concreto e qual deve prevalecer. A dignidade humana é o parâmetro e diante das soluções possíveis que se chocam, deve ser "escolhida" a que fortalece a ideia de dignidade humana , e não a que prestigia o direito de punir etc.
A dignidade humana confere unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais. Esse princípio funciona como fonte ética, fazendo da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado . A ideia de unidade de sentido e concordância prática indica claramente sua função de balizar a solução que envolve a colisão entre direitos fundamentais. Aliás, isto está muito evidente na obra "A Nova Interpretação Constitucional" , organizada em 2006 pelo então professor, hoje ministro, Luís Roberto Barroso.
Acreditamos que os fundamentos do voto ainda não publicado do ministro Barroso no RE 1235340 não terão contornos muito diversos dos apresentados no HC 118.770, que vê na soberania dos veredictos autorização para antecipar a execução da pena, não sendo a presunção de inocência impeditiva .
Ora, a decisão ignora a dignidade como critério de ponderação ou de "escolha" da solução. A soberania dos veredictos, apesar de ser garantia fundamental, é usada em prejuízo do réu. Fazer prevalecer a presunção de inocência restitui a liberdade do paciente, fortalecendo sua dignidade. Ao contrário, a prevalência da soberania dos veredictos implica na execução antecipada da pena, na tutela do interesse do Estado. Na verdade, este último caso não é fazer prevalecer uma garantia em um processo de ponderação, mas, sim, subverter a garantia, aplicá-la onde não é cabível. Direito fundamental usado para se atentar contra a dignidade do acusado.
Já nos antigos manuais de processo penal encontramos solução diversa. Magalhães Noronha já advertia que a soberania dos veredictos não poderia ser óbice ao direito de liberdade do réu . José Frederico Marques ensinava que:
"A soberania dos veredictos não pode ser atingida enquanto preceito para garantir a liberdade do réu. Mas se ela é desrespeitada em nome dessa mesma liberdade, atentando algum se comete ao texto constitucional. Os veredictos do júri são soberanos enquanto garantem o ius libertatis" .
Tourinho Filho é preciso:
"Assim, entre manter a soberania dos veredictos intangível e procurar corrigir um erro em benefício da liberdade, obviamente o direito de liberdade se sobrepõe a todo e qualquer outro, mesmo porque as liberdades públicas, notadamente as que protegem o homem do arbítrio do Estado, constituem uma das razões do processo de organização democrática e constitucional do Estado .
Com efeito, não há dúvida de que a execução provisória da pena decorrente da condenação do júri é inconstitucional.
Contudo, no que tange à peculiaridade do artigo 492 do CPP, que prevê a execução relativamente às condenações igual ou superior a 15 anos, nem mesmo o equivocado argumento da soberania dos veredictos está em seu socorro, pois a decisão sobre os fatos é que está coberta pela soberania dos veredictos. No júri, a pena é aplicada pelo juiz presidente, cuja decisão não é soberana e está sujeita ao controle pelo segundo grau. A quantidade da pena aplicada não pode fundamentar a antecipação da execução, pois sequer possui o alegado amparo da soberania dos veredictos.
Sintetizando, a tese de que a decisão do júri pode ser executada provisoriamente, independentemente da pena aplicada, tem em seu socorro a aplicação equivocada do direito fundamental à soberania dos veredictos. Já a execução provisória da pena igual ou superior a 15 anos (artigo 492) imposta pelo tribunal do júri não se socorre, sequer, do emprego equivocado da soberania dos veredictos.
Com efeito, a execução provisória da pena decorrente de condenação do júri viola a presunção de inocência, princípio prevalente na hipótese examinada. Ademais, assiste razão a proposta de declaração de inconstitucionalidade da alínea "e" do inciso I do artigo 492 do CPP, na linha do que já ficou decidido nas ADCs 43, 44 e 54 do STF.
Oxalá o STF reafirme o compromisso com a tutela dos direitos fundamentais, explicitando, mais uma vez, a correta dimensão da presunção de inocência como princípio basilar do Estado democrático de Direito.