Por Alexandre de Oliveira Ribeiro Filho -
Está lá, no preâmbulo da Constituição da República, que nosso Estado foi instituído democraticamente para “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”.
Quem tiver a curiosidade de ir além verificará, já no artigo 1º, que a Constituição de 1988 dispõe que a República Federativa do Brasil tem como fundamentos, entre outros: a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; enquanto, no artigo 3º, diz serem objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a promoção do bem de todos, sem preconceitos etc.
Os direitos e garantias individuais encontram abrigo nos incisos do artigo 5º, sendo digno de nota, para os fins deste texto, os seguintes: ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante (III); ninguém será privado dos seus direitos por motivos de convicção filosófica ou política (VIII); é livre o exercício de qualquer trabalho ou profissão (XIII); a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdade fundamentais (XLI); não haverá penas de banimento e/ou cruéis (LVII).
Por sua vez, os chamados direitos sociais encontram-se elencados nos incisos do artigo 6º, com especial destaque para o trabalho. Afinal, “ao lado dos direitos individuais, que têm por característica fundamental a imposição de um não fazer ou abster-se do Estado, as modernas Constituições impõem aos Poderes públicos a prestação de diversas atividades, visando o bem-estar e o pleno desenvolvimento da personalidade humana, sobretudo em momentos em que ela se mostra mais carente de recursos e tem menos possibilidade de conquista-los pelo seu trabalho”.
A simples leitura dos primeiros dispositivos constitucionais revela que a promoção do direito ao trabalho é imprescindível para a manutenção do Estado Democrático. Mais, corresponde a uma das principais maneiras que o Estado tem para contribuir com o desenvolvimento da personalidade humana.
Em outras palavras, não é preciso doutorado em Direito Constitucional para saber que, sem trabalho, a pessoa humana carece de dignidade.
Estabelecidas essas premissas, causa espécie a notícia² de que o Supremo Tribunal Federal decidiu que motorista profissional condenado por homicídio culposo decorrente de acidente de trânsito pode ter a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) suspensa e ser impedido de dirigir (RE 607.107).
A decisão do Plenário, proferida em caráter unânime, neste ano de 2020, diz respeito a um acidente de trânsito ocorrido em 2004. No caso concreto, o motorista foi condenado pela prática do crime previsto no artigo 302 do Código de Trânsito, mas o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, muito embora tenha-lhe aplicado as sanções previstas em lei, o autorizou a continuar a dirigir para não inviabilizar o seu sustento como motorista profissional.
Irresignado, o Ministério Público recorreu ao Supremo, e o ministro Roberto Barroso, relator do caso, entendeu que o direito constitucional ao trabalho não é absoluto e a medida de suspensão da habilitação é uma forma de individualizar a pena para punir adequadamente cada crime cometido.
A justificativa apresentada foi a seguinte: “O Brasil é um dos recordistas mundiais de acidentes de trânsito, embora tenha havido uma paulatina redução nos últimos anos. A pessoa fica impedida de dirigir, mas não de trabalhar”.
Vivêssemos uma situação de pleno emprego, talvez pudéssemos concordar com tal fundamento. No entanto, a realidade é outra: a taxa de desocupação no Brasil ficou em 11.8% no trimestre encerrado em setembro, representando praticamente 13 milhões com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), divulgados pelo IBGE.
Nesse contexto, em se tratando de conduta culposa (não intencional, acidental), não nos parece acertado, justo e humano impedir que motoristas envolvidos em acidentes possam exercer o seu mister.
Todos aqueles que dirigem veículos automotores em via pública estão sujeitos a acidentes, invariavelmente. E aqueles que dirigem de forma profissional, habitualmente, têm as chances matematicamente incrementadas, fato da vida que muitas vezes pode passar despercebido pelas autoridades ciceroneadas, que circulam no banco de trás.
Se é verdade que “a interpretação constitucional” deriva “das decisões proferidas pelo STF — a quem se atribuiu a função eminente de ‘guarda da Constituição’ (Constituição, artigo 102, caput)”, e que o tribunal “assume papel de essencial importância na organização institucional do Estado brasileiro, a justificar o reconhecimento de que o modelo político-jurídico vigente em nosso país confere, à Suprema Corte, a singular prerrogativa de dispor do monopólio da última palavra em tema de exegese das normas inscritas no texto da Lei Fundamental”.
Não menos verdade é que “nada compensa a ruptura da ordem constitucional. Nada recompõe os gravíssimos efeitos que derivam do gesto de infidelidade ao texto da Lei Fundamental. A defesa da Constituição não se expõe, nem deve submeter-se, a qualquer juízo de oportunidade ou de conveniência, muito menos a avaliações discricionárias fundadas em razões de pragmatismo governamental. A relação do Poder e de seus agentes com a Constituição há de ser, necessariamente, uma relação de respeito... A defesa da Constituição da República representa o encargo mais relevante do STF. O STF — que é o guardião da Constituição, por expressa delegação do poder constituinte — não pode renunciar ao exercício desse encargo, pois, se a Suprema Corte falhar no desempenho da gravíssima atribuição que lhe foi outorgada, a integridade do sistema político, a proteção das liberdades públicas, a estabilidade do ordenamento normativo do Estado, a segurança das relações jurídicas e a legitimidade das instituições da República restarão profundamente comprometidas”.
O precedente do motorista impedido de trabalhar é mais um entre os exemplos recentes de julgados nos quais prevaleceu uma exegese eminentemente utilitarista em detrimento da letra e do espírito da Constituição.
Mas, ainda que não fossem suficientes as razões humanitárias, fato é que, a pretexto de influir positivamente nas políticas criminal e de trânsito, o STF olvidou os possíveis efeitos colaterais na economia, tais como desemprego, aumento da criminalidade etc.
Enfim, se a leitura da Constituição não se revela suficiente para barrar a “sabedoria convencional” que embasou a decisão do eminente ministro relator, talvez valha conferir outro livro mais objetivo, escrito por Steven D. Levitt e Stephen J. Dubner, intitulado Freakonomics, sobre o lado oculto e inesperado de tudo o que nos afeta.
Os incentivos advindos das decisões do Supremo Tribunal Federal exercem papel fundamental na instituição do Estado Democrático. Está lá, no preâmbulo.
Faltou à corte, dessa vez, sensibilidade e consciência de sua alta responsabilidade política, social e jurídico-institucional.