Por Marina Veras -
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal analisou a ADPF nº 779 e decidiu pela inconstitucionalidade da tese de legítima defesa da honra em casos de feminicídio. Por unanimidade, o STF reconheceu que o argumento não poderá ser utilizado, direta ou indiretamente — seja por defesa, acusação, autoridade policial ou pelo próprio juízo —, sob pena de nulidade.
Mais do que acertada, a postura adotada pelo STF era necessária. Há anos, mulheres são violentadas pelos motivos mais banais, vítimas de agressores motivados por conceitos retrógrados, que estão arraigados em nossa sociedade machista e patriarcal. E qual deveria ser o posicionamento do Estado diante dessa realidade?
Historicamente, é possível observar decisões judiciais que reforçaram ainda mais as discriminações de gênero, com julgamentos em que o agressor sequer é responsabilizado. Por diversas ocasiões, o Poder Judiciário testemunhou, inerte, violações frontais a direitos constitucionalmente previstos. Assim, a violência contra mulher conta, por vezes, com a cumplicidade de um Estado omisso e, portanto, conivente. Enquanto isso, ainda andamos a passos lentos na luta pelo o enfrentamento dessa violência.
Ao longo das últimas décadas, a comunidade internacional vem chamando atenção para os dados alarmantes quanto às diversas formas de agressões e mortes de mulheres em razão do gênero. A discussão sobre os direitos humanos das mulheres e a necessidade do enfrentamento à violência de gênero compõe uma agenda global, como já reconhecido pela ONU [1], tratando-se de um verdadeiro fenômeno social.
O Brasil é signatário de importantes marcos jurídicos sobre o tema, como a Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, bem como o Modelo de Protocolo Latino-Americano para Investigação de Mortes Violentas de Mulheres. Além disso, nos últimos anos, foram criadas leis fundamentais na luta contra a violência às mulheres, como a Lei Maria da Penha, de 2006, e a tipificação do feminicídio, em 2015. Mas, infelizmente, essas convenções e leis ainda não são suficientes.
Apesar dos mencionados avanços legislativos, a visão da mulher enquanto propriedade e objeto ainda é algo latente. Por isso, o enfrentamento à violência contra as mulheres requer não apenas mecanismos de prevenção e coerção. Se engana quem pensa que o combate à violência de gênero se limita à assinatura de convenções internacionais e à promulgação de leis sobre o tema: o problema é bem mais complexo. É necessária uma mudança cultural, que, por sua vez, exige a participação ativa da sociedade e, mais ainda, do Estado.
Segundo levantamento do instituto Datafolha, aproximadamente uma em cada quatro mulheres brasileiras com mais de 16 anos sofreu agressões no ano de 2018. Na pesquisa, 27,4% das entrevistadas disseram ter sofrido alguma violência, dentre as quais, 52% não denunciaram os casos [2].
Ainda, de acordo com dados levantados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2020 verificou-se um aumento de 22% nos registros de casos de feminicídio no Brasil durante a pandemia [3]. O aumento do número de casos é assustador por si só, mas torna-se aterrorizante quando se percebe o contraste entre os dados oficiais e as pesquisas realizadas. Os números demonstram que grande parte das vítimas ainda enfrentam dificuldades para realizarem denúncias. Diante desse cenário, aqui cabe uma importante reflexão: será que a forma como essas denúncias são conduzidas e processadas pelo próprio Estado não seria um dos principais obstáculos enfrentados por essas mulheres?
Uma vez, uma cliente me relatou que seu ex-marido estava violando as medidas protetivas de urgência deferidas contra ele, pois não parava de mandar mensagens, com xingamentos e ameaças. Ao buscar a Delegacia de Defesa da Mulher mais próxima, foi informada que nada poderia ser feito. Disseram que ela deveria voltar apenas no dia que havia sido designado para sua oitiva e — pasmem — deveria comparecer juntamente com seu ex-marido e agressor. Como explicar para ela que o próprio funcionário da delegacia não passou a informação correta? Como convencê-la a continuar acreditando nas leis e na Justiça? Essa mulher teve de enfrentar a violência por duas vezes: dentro de casa e na própria delegacia. Óbvio que isso é desencorajador.
A chamada violência institucional ainda está bastante presente no processamento de casos relacionados à violência de gênero — tratando-se de um dos principais motivos pelos quais as mulheres ainda têm receio de denunciar as agressões por elas sofridas. São inúmeros os episódios em que o próprio Estado, por meio da sua estrutura, é responsável por violentar, novamente, uma mulher que já foi vítima de um crime.
Um exemplo recente é o caso do empresário André de Camargo Aranha, no processo em que foi acusado de estupro de vulnerável contra Mariana Ferrer. Nas imagens divulgadas da audiência, a revitimização de Mariana ficou escancarada. As falas extremamente agressivas do advogado de acusação, somadas à postura absolutamente omissa do juiz e do promotor, reforçam o estrago que o despreparo dos operadores do Direito pode resultar em casos envolvendo violência contra a mulher.
Assim, fica claro que o enfrentamento às violências de gênero passa, sim, pela criação de políticas públicas e elaboração de leis. Contudo, isso não é o suficiente. É importante observar a forma como essas políticas e leis serão aplicadas, e mais, a maneira como o processo será conduzido nas delegacias e nos tribunais.
Ao reconhecer a inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra, que, nas palavras do relator ministro Dias Toffoli, "normaliza e reforça uma compreensão de desvalor da vida da mulher, tomando-a como ser secundário cuja vida pode ser suprimida em prol da afirmação de uma suposta honra masculina", a mais alta corte da Justiça do Brasil assume, finalmente, postura indispensável na luta contra a violência de gênero.
Se continuarmos normalizando a violência contra a mulher, ao não reconhecer as atitudes violentas — dos agressores e do próprio Estado —, não conseguiremos avançar em seu enfrentamento. Por isso é tão importante um julgamento como esse, em que o Estado, na figura do STF, se recusa a ser novamente mera testemunha de graves violações aos direitos das mulheres.