TEORIA DAS PLATAFORMAS E OS DESAFIOS PARA A DOGMÁTICA PENAL DO SÉCULO 21

Por Pedro Simões -  

Desde meu primeiro ano de faculdade, ouço falar na crise da dogmática — em especial, na minha área de atuação: a crise da dogmática penal. Talvez por ter se prolongado demais, essa crise — ou como quer que se chame o momento em que a dogmática passou a perder espaço como eixo racionalizador da interpretação e aplicação das leis penais — está matando a dogmática tradicional pelos seus sintomas.

Essa morte lenta vem abrindo um abismo entre a redação dogmática mais avançada — de matiz europeia, hispano-germânica, tipológica e catalogadora — e a prática forense — cada vez mais pragmática, americanizada e com conceitos abertos.

Nos tribunais brasileiros, quiçá, essa transformação poderia ter sido notada quando a jurisprudência expressamente rejeitou a teoria da imputação objetiva, a qual nunca teve o mesmo prestígio e a mesma abrangência que sua “antecessora”, a teoria da ação final de Welzel, ou ainda na transformação da teoria do domínio do fato em uma teoria da autoria finalista.

Advogados do apocalipse anunciaram essa transformação como um velório do rígido pensamento dogmático e centrado nas leis, o que exigiria uma revolução na postura dos juristas, seja para atuar, seja para descrever o Direito.

Mas a diminuição do papel da velha dogmática não é a única transformação que impacta o Direito, pois ela vem a galope com o crescimento da força do Judiciário, que um dia foi apenas a boca da lei e, agora, busca seu espaço ao sol como um verdadeiro Poder do Estado. Outra mudança foi a entrada da empresa como um agente do crime, para muito além da arcaica discussão sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica: a estrutura organizacional e societária das companhias se mostra um desafio para a criminologia econômica, para a dogmática e para a política criminal, que se defrontam com “corrupção sistêmica”, complexas redes de lavagem de capitais e crimes financeiros transnacionais, entre outros desafios típicos da realidade empresarial.

Há muitos outros pontos da eterna crise do Direito Penal, é certo — o ressurgimento da importância das teorias genéticas em uma criminologia “conservadora” e os paradigmas do sul que questionam os vieses de gênero e de raça no Direito Penal também são dignos de nota —, mas a aproximação do nosso direito de matriz continental com o common law é a grande pendência a ser resolvida. 

Todas essas diferentes abordagens do fenômeno do crime trazem à tona a complexidade que inunda o pensamento jurídico.

Nesse cenário, um retorno ao garantismo positivista é capaz apenas de demonstrar uma nostalgia romântica que tem pouco ou nenhum impacto prático (e cada vez menos potencial analítico).

O papel do jurista que deseja ver o poder punitivo mantido sob controle democrático não pode mais ser o de lutar pelos valores que, infelizmente, são incapazes de fazer o mundo regressar, e sim o de apresentar soluções racionais (centradas no poder legiferante da democracia e que possam ser utilizadas mediante justa argumentação no Judiciário) para os problemas complexos da nossa sociedade.

Uma dessas soluções aborda exatamente a questão dos agentes empresariais do crime.

Trata-se da teoria das plataformas.

Acostumados a tratar o delito como divisível entre sujeito e objeto, a realidade dos nossos tempos demonstra que a crescente figura da interposição merece um lugar de honra a meio termo entre o sujeito ativo do delito e o objeto do crime.

A figura da interposta pessoa jurídica revela um aspecto complexo da imputação — a atribuição da ação se dilui, cada vez mais, para elementos institucionais, deixando definitivamente de lado elementos corpóreos (comissão, omissão, vontade etc.).

Na dogmática da lavagem de capitais, a operação de ocultação da origem do fruto de uma ação criminosa (identificada como crime antecedente) é um ato autônomo de lavagem, o qual, muitas vezes, não é suficiente para que os recursos sejam de fato reintroduzidos na economia formal e possam ser utilizados por quem cometeu o crime antecedente ou por terceiro.

Por essa razão, os recursos lavados são alocados em interpostas pessoas jurídicas — as quais realizam verdadeira mediação entre a origem ilícita do recurso e seu destinatário final (o qual pode ou não ser o autor do crime antecedente). A existência da interposta pessoa jurídica, contudo, não é ilícita por si só, de modo que passa a ser importante identificar se a pessoa jurídica se presta única e exclusivamente a ocultar a origem de recursos ou se, no contexto de outras atividades lícitas, também é utilizada para lavagem.

Na operação "lava jato", por exemplo, várias offshores foram utilizadas para gerar camadas de lavagem. Muitas delas existiam com o único e exclusivo propósito de lavar dinheiro. Houve, porém, remessas de recursos a offshores operacionais, braços internacionais de companhias atuantes e instituições financeiras que atuavam inclusive com lavagem. No primeiro caso, da empresa constituída para servir de “passagem”, não estaríamos falando de um verdadeiro utensílio do crime? Mas não é a empresa também uma pessoa constituída? E no caso de ser, de fato, uma empresa com atividade lícita e também ilícita? Se o objeto do delito é o recurso de origem ilícita, mas este passa a integrar o patrimônio de uma empresa (seus ativos), como diferenciar a empresa de um potencial agente criminal?

O fato de que pessoas jurídicas não podem ser penalmente responsabilizadas por lavagem não resolve o problema — até porque essa é uma realidade brasileira, não mundial.

A situação ganha um brilho a mais quando se pensa no sistema bancário e em sua relação com a lavagem de dinheiro: o banco utilizado para lavar dinheiro é vítima ou coautor? Como pode ser vítima se se beneficia do ato de lavagem? Como pode ser coautor se não toma a decisão de lavar dinheiro? Como pode ser vítima se tem o dever de evitar o delito?

Se nem sujeito nem objeto, vítima ou autor direto, os bancos podem ser considerados plataformas que permanecem em posição ambígua com relação ao crime de lavagem de capitais.

Por um lado, a lavagem favorece o banco, o qual fatura com a operação; por outro, a exposição da instituição ao recurso ilícito pode ser trágica não apenas pelas consequências regulatórias, mas também reputacionais.

O tamanho do apetite de risco da instituição é o que acaba por definir, ao fim do dia, se a instituição tem uma postura mais ativa na identificação e mitigação da lavagem ou uma postura mais complacente.

Como a dogmática pode lidar com um agente dúbio, cujo papel pode variar dentro de um mesmo caso (exemplo: um banco que era negligente com relação aos deveres de compliance, mas passa a cooperar com as autoridades a partir de determinado momento)? 

A tendência da dogmática-continental à qual nos filiamos é a da torção dos conceitos e da recorrente apresentação de novas leituras dos mesmos institutos, tendência que vem causando cada vez mais repulsa por parte dos agentes da práxis jurídica, os quais adotam estratégias dogmáticas em regime de “importação criativa” (domínio do fato à la Supremo, cegueira deliberada à la Curitiba, entre outros). 

Via reversa, podemos iniciar a definir dogmaticamente as plataformas.

Plataformas podem ser conceituadas como intermediárias de condutas comissivas e omissivas com potencial criminoso. Não apenas intermediárias no sentido de um humano que pode agir a mando de outrem, mas no sentido de que, de alguma forma, a ação criminosa ocorre na plataforma.

Plataformas são, ao mesmo tempo, agentes potenciais e “espaços” onde ações são realizadas, assim como ocorre na internet ou nas redes sociais.

Uma injúria cometida em um vídeo no YouTube ou postado no Facebook tem efeito semelhante: a repercussão do vídeo — seu maior engajamento e grande número de compartilhamentos — é benéfica para a plataforma, levando em consideração seu modelo de negócios; é, também, prejudicial em termos reputacionais e chama atenção para sua potencial responsabilidade.

Plataformas podem ou não ter deveres de evitabilidade ou de vigilância (com o intuito de evitar) da ocorrência de determinados crimes em seus “espaços”, sendo que esses deveres existem justamente para colocá-las em xeque com seu modelo de negócio ou de atuação social.

Esse conflito de interesses (imposto ou derivado de repercussão negativa) em que se encontram as plataformas deve ser levado em consideração para repensar a dogmática do delito a partir da multiplicidade de agentes que, muitas vezes, sequer são humanos.

Uma das principais características das plataformas é que as decisões por elas tomadas — ao menos em um primeiro momento — são automatizadas, tomadas por algoritmos e decorrem de um quadro de previsão inicial antevisto por humanos em momento mais ou menos distante: o momento da programação.

Não bastasse, as plataformas são também um repertório de decisões tomadas as quais, por sua vez, fomentam a tomada de decisões futuras, em processos que podem ser totalmente autônomos ou apenas parcialmente humanizados.

Um banco, por exemplo, reforça seus controles de prevenção à lavagem de dinheiro com base no histórico de transações qualificadas como suspeitas e na consulta recorrente a listas de pessoas com potencial risco de lavagem e, a partir disso, é capaz de transformar seus controles e torná-los mais efetivos ou mais seletivos.

Em uma perspectiva clássica, a responsabilidade penal do banco não existe, e a de seus gestores será avaliada a partir das complexas teorias de crimes comissivos por omissão. Para isso, será preciso identificar quem, dentro da instituição, deixou de agir de modo que sua omissão possa ser considerada causa do crime de lavagem — uma vez que o agente tinha o dever de agir, mas não agiu.

Antes, a responsabilidade de uma plataforma deveria ser mensurada muito além de um dever genérico de conhecer e evitar que é atribuído a pessoas específicas dentro da organização — uma tarefa sempre muito complexa e que nos distancia cada vez mais do bom e velho garantismo penal. Essa responsabilidade deve ser auferida levando em consideração os deveres concretos daquela plataforma de evitar ou não determinadas condutas, mas também a quantidade de informação que ela tinha à disposição para avaliar seu próprio risco e controlá-lo.

Nosso direito punitivo tem um insight nesse sentido: para o Código Penal, pode ser considerado autor de um crime aquele cuja ação deu ensejo ao “risco da ocorrência do resultado” criminoso (Código Penal, artigo 13, parágrafo 2º, "c"), inciso de raro uso em nossos tribunais. 

Estendê-lo a empresas que atuam como plataformas não apenas parece distante da nossa dogmática, parece impossível, pois os conceitos de imputação disponíveis (e cada vez mais desfigurados) não se dispõem a compreender a realidade de um agente que é também meio do cometimento de crimes.

Esta teoria, apenas muito superficialmente apresentada aqui, é um pequeno esforço para encerrar o ciclo de crise e, ao mesmo tempo, tentar resguardar a “tradição” dogmática continental a qual nos filiamos ressalvando o que ela tem de melhor: padrões de previsibilidade — sem, contudo, negar que o apelo ao pragmatismo da common law tem sua razão de ser.

 

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