Por Marcella Mascarenhas Nardelli, Rodrigo Faucz Pereira e Silva e Daniel Ribeiro Surdi de Avelar -
O Código de Processo Penal brasileiro foi idealizado para que os jurados apreciem os fatos e o juiz presidente aplique o Direito. O artigo 497 do CPP enumera uma gama de atribuições do magistrado, as quais podem ser divididas em funções administrativas (incisos III, VII, VIII e XII), de polícia (incisos, I, II, VI) e de decisão (incisos IV, V, IX, X, XI). As matérias ligadas ao poder/dever de decisão do magistrado são tipicamente de Direito, como resta claro da leitura do inciso X: "Resolver as questões de Direito suscitadas no curso do julgamento". Já a decisão do Conselho de Sentença se circunscreve à matéria de fato e se o acusado deve ser absolvido (CPP, artigo 482). Tal raciocínio desconsidera a dificuldade de se separar, em todos os casos, a apreciação das questões de fato das de direito e, acima de tudo, a impossibilidade de aplicar corretamente o Direito sem determinar adequadamente os fatos. Desta forma, partindo-se da falsa premissa de que fato e direito seriam questões passíveis de uma clara demarcação, o sistema estabelece uma barreira entre as funções do juiz e dos jurados, pressupondo que a adoção do modelo de decisão seriada por meio de quesitos tornaria desnecessária a compreensão do Direito pelos cidadãos. Por outro lado, acaba também incorrendo na falácia de considerar que as questões de direito inerentes à decisão — atribuídas ao juiz — se resumiriam àquelas relacionadas à aplicação da pena.
O modelo de júri da common law, por sua vez, delega aos jurados a função de decidir sobre a responsabilidade do acusado em sentido amplo, o que fazem por meio dos chamados general verdicts — que se limitam a indicar a culpa ou inocência em cada imputação formulada Desse modo, os cidadãos analisam não somente questões puramente fáticas, mas, também, as classificações jurídicas relacionadas à conduta e as questões de direito interligadas com a caracterização do fato previsto na lei como punível. Entretanto, sobre todos esses pontos os cidadãos estarão sujeitos às instruções do juiz presidente.
O caráter leigo dos cidadãos é inerente ao juízo popular e por meio deste se espera que os padrões da comunidade, juntamente com seus valores de justiça e equidade sejam aplicados aos julgamentos. Entretanto, segundo a lógica norte-americana, isso não importa admitir que devam os jurados realizar esse papel sem qualquer direcionamento ou orientação. Em outras palavras, o sistema não consente que os jurados exerçam de forma totalmente livre a atividade de valoração da prova e de decisão sobre os fatos, segundo a sua própria intuição ou simples "íntima convicção". Ao contrário, procura fornecer aos mesmos os parâmetros legais de valoração e decisão aceitáveis, de modo que sejam capazes de lidar com a vasta gama de informações apresentada em juízo e raciocinar adequadamente a partir dela. Daí se justificam todos os esforços dos tribunais no sentido de sistematizar — por meio de extensos manuais — as principais instruções que devem ser apresentadas aos jurados nas diversas fases do procedimento .
Algumas instruções do juiz presidente aos jurados são procedimentais (por exemplo, não discutir a prova até o momento inicial da fase de deliberação); outras são de orientação, inclusive no que se refere aos parâmetros de valoração da prova (por exemplo, como o depoimento de um perito deve ser avaliado e como certas provas podem ou não ser valoradas para um propósito específico); e algumas envolvem o direito aplicável ao caso (apresentando cada elemento da infração a ser provado pela acusação e as definições dos principais termos jurídicos utilizados) e também sobre a presunção de inocência, o standard e o ônus da prova .
Como regra, as instruções são apresentadas antes do início da deliberação dos jurados. Porém, é comum o magistrado advertir o júri no início e no decorrer do próprio julgamento, por exemplo: 1) esclarecendo que os jurados apenas devem levar em consideração as provas apresentadas durante o julgamento e não outras informações; 2) pontuando que as afirmações das partes — e do próprio juiz — não representam meios de prova; 3) aduzindo que as provas são constituídas do relato das testemunhas, documentos, objetos admitidos ao processo e acordos entre as partes. Outrossim, os jurados são orientados para que mantenham a mente aberta durante a fala das partes e quando da apresentação das provas, evitando discutir o caso antes do momento formal de deliberação .
A preocupação em educar os cidadãos quanto aos aspectos essenciais de um julgamento perante o júri é considerada uma das funções primordiais inerentes à própria lógica da participação popular na administração da justiça. A natureza imotivada dos veredictos e a hipótese de que os jurados possam, ao final, não compreender ou não se orientar pelas instruções do juiz não são circunstâncias capazes de afastar a premissa de que é obrigação do sistema instrui-los. Ademais, esse aspecto da configuração do modelo denota a atmosfera construtiva que se estabelece entre o tribunal e os cidadãos. Ao mesmo tempo em que essa dinâmica das instruções se configura como uma forma de controle sobre a racionalidade dos veredictos, também demonstra a confiança do sistema na capacidade dos cidadãos de compreender e aplicar adequadamente os parâmetros e princípios ao caso em análise.
Voltando ao sistema brasileiro, o juiz presidente raramente se comunica com os jurados. Os momentos em que tal aproximação ocorre estão restritos aos esclarecimentos sobre os impedimentos, suspeição e incompatibilidade (CPP, artigo 466, caput); a advertência quanto à incomunicabilidade e à impossibilidade de manifestar opinião a respeito do caso penal (CPP, artigo 466, §1º.); bem como quando da exortação legal (CPP, artigo 472).
O CPP admite que os jurados façam perguntas ao ofendido, testemunhas e ao acusado por intermédio do juiz presidente (CPP, artigo 473 e 474, §2º), porém, não determina que o magistrado explique aos jurados a forma como as perguntas devem ser feitas, se oralmente ou por escrito, por exemplo. Também não é comum que os jurados requeiram ao orador que indique a folha (movimento) dos autos onde se encontra a peça por ela lida ou citada, permanecendo por vezes sem examinar com atenção um elemento importante para a solução do caso (CPP, artigo 480).
Os únicos momentos de real interlocução entre magistrado e jurados ocorrem ao final do julgamento, fase em que a legislação determina que o juiz pergunte aos jurados se estão habilitados a julgar ou se necessitam de outros esclarecimentos (CPP, artigo 480, §1º); e, na sequência, após a leitura dos quesitos em plenário, explique aos jurados o significado de cada quesito (CPP, artigo 484, parágrafo único).
O modelo brasileiro precisa avançar no caminho de melhor informar e esclarecer aos jurados, ao menos, a respeito do exercício da sua função e dos atores processuais; das normas básicas que estruturam o nosso sistema de justiça — em especial, a presunção de inocência em suas dimensões de regra de tratamento e de julgamento; das fases do Tribunal do Júri.
Contudo, consideramos que o silêncio da atual legislação não impede uma postura ativa por parte do magistrado, o qual possui competência para esclarecer ao Conselho de Sentença sobre os princípios e regras fundamentais que estruturam o nosso sistema de justiça e que devem ser aplicadas ao caso . No sentindo de melhor preparar os jurados, a exibição do vídeo institucional elaborado pelo CNJ (Recomendação n. 55, de 8/10/2019), que objetiva ambientar o jurado a respeito da sessão de julgamento é uma excelente prática! E seria ainda melhor se os jurados, após alistados, fossem convocados para se dirigir até o Tribunal do Júri e lá recebessem um treinamento prévio, ministrando-se conhecimento a respeito da função e incentivando-o a assistir um julgamento ao vivo ou transmitido pelas redes sociais. Tais orientações seriam elementares para evitar o receio de julgar crimes contra a vida e propiciariam uma melhor adaptação quanto ao rito do julgamento.
Acreditamos que o esclarecimento das regras do fair trial deve ser uma preocupação constante do magistrado, evitando que o desconhecimento possa gerar uma decisão apressada ou equivocada (tanto em benefício da acusação quanto da defesa). Veja-se, por exemplo, a entrega da pronúncia aos jurados (CPP, artigo 472, parágrafo único) sem qualquer explicação sobre a sua natureza jurídica e alcance processual. Tal fato tem o condão de fomentar um prejulgamento antes mesmo do início da instrução. Para tanto, basta verificar que muitas vezes é nominada como "sentença" e, em seu corpo, encontra-se fundamentada a materialidade e os indícios suficientes de autoria ou participação. Caso o juiz não explique a sua real função de mera admissão da acusação, os jurados podem, mesmo inconscientemente, acabar influenciados pelo seu teor, mesmo quando não formalmente evidenciada a nulidade prevista no artigo 478, I, do CPP. Sendo assim, sugerimos que os magistrados expliquem aos jurados da seguinte forma:
"Prezados membros do Conselho de Sentença, a partir desse momento, os senhores terão acesso ao relatório do processo e também à decisão de pronúncia. Esclareço que a decisão de pronúncia representa um mero juízo de admissibilidade da versão acusatória, sem a qual o acusado não poderia ser julgado perante o Tribunal do Júri. Em hipótese alguma, constitui um prejulgamento do caso e não deverá ser considerada pelos Srs. como um argumento de autoridade apto a qualquer juízo de valor a respeito do mérito do processo que está sendo aqui julgado na data de hoje. Por mandamento constitucional, depois da devida instrução e sustentações orais em plenário, o Conselho de Sentença é soberano para, sigilosamente, apreciar as teses que envolvem o presente caso, livre de qualquer influência de terceiros ou mesmo da justiça togada. A sociedade espera dos Srs. uma decisão justa, imparcial, livre de qualquer preconceito e amparada nos elementos de prova trazidos aos autos e nas alegações das partes. Para que os Srs. possam fazer a leitura das peças já referidas, suspendo a sessão por ______ minutos" .
De maneira similar ao que se dá no sistema norte-americano, a intervenção pontual do magistrado precisa ocorrer também quando dos debates, especialmente diante de abusos e excessos de linguagem (CPP, artigo 497, III), contribuindo para evitar nulidades a partir do uso de argumentações vedadas pela lei (CPP, artigo 478) e outras criadas à luz da jurisprudência de nossos tribunais. É o que poderia ocorrer — seguindo a orientação do STF — caso as partes fizessem uso da tese da "legítima defesa da honra". Aliás, no corpo do voto exarado pelo ministro Dias Toffoli na ADPF 779/DF, resta claro que a nulidade apenas ocorreria caso não obstada pelo presidente do júri .
A propósito, a intervenção do magistrado nesses casos já era obrigatória antes mesmo da decisão na ADPF 779/DF, pois, nos termos do disposto no CPP, artigo 201, §6º, é dever do magistrado adotar as "providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido". Nesse caso, seria importante que o juiz também se valesse de instrução específica ao final dos debates, alertando os jurados, de maneira comedida e técnica, sobre a inconstitucionalidade da referida tese.
As instructions são consideradas elemento essencial do juízo por jurados no âmbito da common law, desempenhando um papel fundamental em meio a um sistema destinado a conjugar a ânsia pela racionalidade com a atuação de julgadores leigos , no qual a garantia do acusado ao julgamento pelo júri compreende seu direito a que o juiz instrua adequadamente seus membros sobre os critérios legais que devem ser atendidos para que um veredicto justo seja alcançado .
Sendo assim, precisamos reconhecer que as instruções são importantes instrumentos de aprimoramento da atuação do Conselho de Sentença e de garantia da racionalidade de seus veredictos e, desta forma, sua utilização necessita ser expandida no modelo brasileiro.