Por Tadeu Ricardo de Castro -
A Lei 13.431/2017, regulamentada pelo Decreto 9.603/18, alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente e estabeleceu o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente. Com isso, determinou a forma como crianças e adolescentes, vítimas ou testemunhas em situação de violência, devem ser entrevistadas e ouvidas. Tais formas são a escuta especializada e o depoimento especial.
Pois bem. Dispõe o artigo 7º da lei que: "Escuta especializada é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade".
Já o artigo 8º da mesma lei reza que: "Depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária".
No que tange ao procedimento para colheita do depoimento especial, o professor Guilherme de Souza Nucci entende que haveria conflito aparente entre o artigo 8º e o artigo 12 da lei, já que o primeiro determina que o depoimento especial seja realizado perante a autoridade policial ou judiciária e o segundo determina que o mesmo depoimento especial seja realizado por "profissional especializado", o que, em regra, ocorre na escuta especializada do artigo 7º, pois o depoimento especial é, como visto acima, realizado perante autoridade policial ou judiciária.
Não obstante, o §1º do artigo 12 da lei reza que a criança ou adolescente pode prestar seu depoimento diretamente ao juiz, se assim entender. Logo, percebe-se que se trata de uma exceção a colheita do depoimento diretamente ao juiz.
Ora, então a regra para o depoimento especial é a colheita perante a autoridade policial.
Superada essa fase, resta saber: quem será esse "profissional especializado" que acompanhará a autoridade policial, ou autoridade judiciária, no caso do §1º do artigo 12, na colheita do depoimento especial?
Pois bem. Considerando os parâmetros de atuação do Sistema Único de Assistência Social no sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, da Secretaria Especial do Desenvolvimento Social, do Ministério da Cidadania, "a rede socioassistencial não deve ter seu papel institucional confundido com o de outras políticas ou órgãos do sistema de garantia de direitos e, por conseguinte, as funções de sua equipe com as de equipes interprofissionais de outros atores. Também não deve assumir a atribuição de investigação para a responsabilização dos/as autores/as de violência, tendo em vista que seu papel institucional é definido pelo escopo de competências do Suas. A escuta especializada realizada pela rede socioassistencial, no entanto, pode ser usada pela autoridade policial ou judiciária para subsidiar o processo de investigação e responsabilização. Para isso, os serviços deverão compartilhar as informações coletadas junto às crianças e às/aos adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, aos membros da família e a outros sujeitos de sua rede afetiva, por meio de relatórios, em conformidade com o fluxo estabelecido, preservado o sigilo das informações. Tais relatórios podem conter, ainda, informações sobre a inserção das famílias no acompanhamento socioassistencial, as ações desenvolvidas e os encaminhamentos realizados".
Diante dos parâmetros definidos pelo Ministério da Cidadania, os profissionais da rede socioassistencial não devem assumir atribuição de investigação para responsabilização de autores de violência contra crianças e adolescentes.
Assim, nos parecer que a melhor forma de compatibilizar a busca pela verdade na investigação criminal e no processo penal com a proteção integral da criança, trazida pela Constituição de 1988 e regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, seria a especialização de servidores, seja das Polícias Civis, seja do Poder Judiciário, pois dessa forma estariam atendidos os preceitos da Lei 13.431/2017, em especial dos artigos 8º e 12, o que resolveria o conflito aparente de normas.
A "proteção integral" significa aplicação de todos os direitos a todas as pessoas menores de 18 anos. Isso quer dizer, aplicação de direitos da pessoa humana, além dos direitos específicos das pessoas em desenvolvimento.
A proteção das crianças e adolescentes é tão forte na legislação que sua prioridade é "absoluta e qualificada", tanto que se encontra no texto constitucional, ao passo que a prioridade de idosos e pessoas com deficiência, por exemplo, é matéria infraconstitucional.
Assim, para a preservação do melhor interesse da criança e do adolescente, em especial evitar sua revitimização, a colheita do depoimento especial deve ser realizada o mais breve possível após os fatos que originaram a violência, para que a vítima ou testemunha possa ser corretamente atendida pela rede de proteção.
Vale destacar que Constituição Federal de 1988 inaugurou uma nova ordem jurídica com a etapa da "proteção integral", substituindo a etapa "tutela", em que vigoravam os Códigos de Menores de 1927 (Código Mello Mattos) de 1979. Assim, para regulamentar essa nova fase, após a Constituição Federal, surgiu o Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, que foi concebido como um diploma regulador de toda a matéria atinente à infância e à juventude, estando de acordo com a Convenção sobre os Diretos da Criança, de 1989 (internalizada em 1990 pelo Decreto 99.710/90).
Assim, um servidor especializado, em regra um policial civil especializado com conhecimentos de psicologia, poderá colher as informações em depoimento especial conforme determina o procedimento do artigo 12 da lei, especialmente assegurando à criança ou adolescente a livre narrativa sobre a situação de violência, podendo intervir quando necessário, utilizando técnicas que permitam a elucidação dos fatos, adaptar as perguntas à linguagem de melhor compreensão da criança ou do adolescente, entre outras.