VEÍCULOS APREENDIDOS NAS DELEGACIAS E A RESOLUÇÃO 356 DO CNJ

Por Mauro Cabral da Cunha Cavalcanti Filho -  

O presente trabalho visa abordar, sem nenhuma pretensão de esvaziar por completo o tema, a problemática dos veículos apreendidos nas milhares de delegacias de polícia judiciária espalhadas pelo país versus as principais modificações implementadas pelo Conselho Nacional de Justiça, em 27/11/2020, por intermédio da Resolução nº 356, e alterações promovidas pelas Leis nºs 13.840/2019 e 3.886/2019.

Ao ingressarmos nas delegacias de polícia civil, é bastante comum nos depararmos com motocicletas e automóveis espalhados nas dependências das unidades e nos pátios. As motocicletas são acondicionadas geralmente nos corredores de acesso, cartórios, salas, e muitas vezes até nas celas de custódia, que se transformam em desorganizados depósitos improvisados. Já os veículos, quando as delegacias não possuem pátio (fato aliás bastante frequente), são geralmente abandonados nas ruas, ficando expostos a sol, chuva, e até pequenos furtos. Com o passar dos anos, vão sendo depreciados pelos intempéries da natureza (chuva, sol e sereno), perdendo valor de mercado e a capacidade de voltar a transitar com segurança nas vias públicas.

Abandonados na rua, propiciam o acumulo de água e consequentemente proliferação de mosquitos, causando graves problemas de saúde pública, tais como dengue e chikungunya. O abandono também favorece o tráfico de drogas, na medida em que os ativos passam a ser utilizados como esconderijo de pequenas quantidades de substâncias entorpecentes nas comunidades.

A situação é assustadora, mas termina passado desapercebida, sobretudo nas unidades policiais sediadas em bairros mais carentes, onde o impacto visual e social geram menos repercussões.

A policia judiciária ao desenvolver seu mister depara-se com a necessidade de apreender bens. A Constituição Federal de 1988, nos moldes do 144, § 4º, atribui a apuração das infrações penais ao delegado de polícia.

Por sua vez, o artigo 6º do Código de Processo Penal elenca como deveres da autoridade policial:

"[...] II- apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais; III- colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias; [...]"

Desta feita, no exercício de suas atribuições o delegado de polícia deve se valer de todos os meios legais disponíveis, dentre os quais o poder/dever de apreender os objetos ligados ao crime, devendo o fazer de forma fundamentada.

Como bem pontuou Bruno Boaventura  "o inquérito policial repercute no que há de mais importante para o cidadão, a liberdade, o patrimônio e a intimidade. Ao Delegado de Polícia a lei conferiu instrumentos que possibilitam o fiel cumprimento do seu dever. Alguns desses instrumentos necessitam de prévia autorização judicial, tal qual a busca domiciliar e a prisão provisória, outros não."

O poder geral de polícia (artigo 144, §§ 1º e 4º, da CF/88 e ainda artigo 6º, III, do CPP, entre outros) permite a autoridade policial colher todas as provas necessárias para o esclarecimento dos fatos e suas circunstâncias, estando nessas faculdades o poder de romper o vínculo entre a coisa e seu possuidor, de modo a retirar res da esfera de quem a detém.

Tais medidas asseguram o indesejável perecimento do acervo probatório, indo ao encontro da necessidade de definição da autoria e materialidade do delito reclamada pela persecutio criminis .

O problema é que, via de regra, as unidades policiais não possuem estrutura apropriada para a guarda e conservação dos bens apreendidos, situação esta que se agrava quando considerado o alto número de ocorrências envolvendo a apreensão de coisas. O binômio falta de capacidade de acondicionar (inerente a estrutura de boa parte das delegacias de polícia civil do país) x o alto volume de ingresso, leva a um terrível cenário de desorganização, mau uso do espaço público, depreciação dos bens (com perda de valor de mercado e de função), pauta negativa para as polícias estaduais do Brasil, dentre outros.

A situação torna-se ainda mais grave, quando se analisa o fato das apreensões se arrastarem por longos anos, quiçá décadas, tornando-se praticamente infinitas e causando altos custos ao erário.

Com o encerramento das atividades investigativas, o procedimento policial é remetido ao Poder Judiciário, que passa a ter a responsabilidade sobre os bens apreendidos. Por sua vez, o Código de Processo Penal estabelece, no artigo 118, que é vedado restituição das coisas apreendidas antes do trânsito em julgado, enquanto interessarem ao processo, senão vejamos:

"Art. 118. Antes de transitar em julgado a sentença final, as coisas apreendidas não poderão ser restituídas enquanto interessarem ao processo."

Destarte, enquanto interessar a investigação e ao processo a coisa não poderá ser restituída.

Na prática, o Poder Judiciário recebe o inquérito policial devidamente concluído, mas pouquíssimas vezes recebe os bens apreendidos durante a investigação, deixando-os sob as expensas e guarda das unidades policias. Como a resolução dos conflitos geralmente se arrasta por anos no Brasil, o resultado é delegacias abarrotadas de bens que terminam se deteriorando (perdendo valor), "envelhecendo", e ficando sem condições de uso, gerando ainda altos custos de manutenção para os entes públicos.

Atento ao problema, o Conselho Nacional de Justiça publicou em 2011 o Manual de Bens Apreendidos . De acordo com a obra, o Juiz contemporâneo agregou à função de julgar responsabilidades administrativas, tais como conciliar, gerir pessoas, dentre outras. Dentro dessa perspectiva, editou o Manual de Bens Apreendidos com o escopo de auxiliar/estimular os juízes na destinação dos bens apreendidos.

O estudo chegou a conclusão de que a grande maioria dos bens apreendidos não são alienados, nem restituídos, ficando cerca de 93% do acervo aguardando destino (com situação indefinida), fato que fere de morte o interesse público e o princípio da eficiência consagrado no artigo 37 da Constituição Federal de 1988.

Outros importantes pontos abordados pelo Manual ConJur (além da demora no processamento das demandas e a falta de infraestrutura dos depósitos), foi o receio dos magistrados em realizar a alienação prematura dos bens apreendidos, bem como a complexidade da legislação acerca do tema.

Por fim, apontou o estudo que algumas iniciativas foram adotadas com o escopo de regular o tema, mas, ao invés de trazerem benefícios, causaram um aumento desordenado de leis deixando o tema ainda mais desafiador e complexo.

Tendo em vista a possibilidade de alienação antecipada de bens, prevista no artigo 62 da Lei 11.343/2006 (que trata de substâncias entorpecentes), o Conselho Nacional de Justiça expediu, em 10/2/2010, a recomendação nº 30  estimulando os membros do Poder Judiciário (respeitada a independência funcional) a promover a alienação antecipada dos ativos, espraiando os efeitos da Lei de Drogas, para crimes de outras naturezas. Tal medida é, inclusive, estimulada pela Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla), com vistas a dar cumprimento aos Tratados e Convenções Internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Conforme bem pontuou a professora Mylene Comploier a globalização trouxe o caráter transnacional do crime, fazendo com que a reação penal fosse deslocada também para o âmbito econômico, posto que pena de prisão tornou-se medida insuficiente/ineficaz. Encontra-se em "efervescência" no cenário mundial a extração de bens adquiridos com práticas criminosas, o que levou o Brasil a editar legislações nesse sentido, tais como as Leis 12.850/2013 (que define organização criminosa), Lei 9.613/98 (que dispõe sobre lavagem ou ocultação de bens), Lei 12.694/2012 (que dispõe sobre o processo e o julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição de crimes praticados por organizações criminosas) .

Com a mudança de paradigma, várias convenções e tratados internacionais ratificados pelo Brasil passaram a ter como objetivo colocar o criminoso na situação patrimonial que possuía antes do cometimento do crime, promovendo o sufocamento econômico das organizações.

Como destacado por Vinícius de Melo de Lima é muito mais fácil uma organização substituir dez agentes presos, do que milhões de dólares confiscados.

Em 27/11/2020 o CNJ editou a Resolução 356  dispondo sobre a alienação antecipada de bens apreendidos em procedimentos criminais, cujo ato revogou, in totum, a recomendação nº 30. O objetivo continua sendo, em resumo, enfrentar a problemática dos bens apreendidos, evitando o perecimento e os altos custos de manutenção arcados pelos entes públicos, sendo que desta feita valendo-se também das alterações promovidas pelas Leis nºs 13.840/2019 e 3.886/2019.

A Lei 13.840/2019 implementou importantes modificações em vários comandos legislativos, dentre eles no caput do artigo 61 da Lei 11.343/2006, o qual passou a prever que a apreensão de veículos, embarcações, aeronaves, quaisquer outros meios de transporte, maquinários, utensílios, instrumentos e objetos de qualquer natureza, utilizados para a prática dos crimes definidos no mencionado diploma legal, deverá ser imediatamente comunicada pela autoridade de polícia judiciária responsável pela investigação ao juízo competente. No § 1º do mesmo artigo, estipulou que o juiz, no prazo de 30, dias contados da comunicação de que trata o caput, determinará a alienação dos bens apreendidos, excetuadas as armas, que serão recolhidas na forma da legislação específica.

Após a alienação, os valores referentes ao produto da venda deverão ser depositados em conta judicial vinculada ao juízo, de acordo com a sistemática e os códigos de recolhimento divulgados no portal eletrônico do Conselho Nacional de Justiça, podendo ser destinados ao Fundo Nacional de Segurança Pública, Fundo Penitenciário Nacional ou para Fundo Nacional Antidrogas.

As novas regras legislativas visam agilizar a alienação de ativos apreendidos em processos judiciais relacionados às drogas, sendo umas das mais importantes mudanças a fixação de prazo de 30 dias (contados da comunicação de apreensão), para o juiz realizar a venda antecipada do bem, independente das condicionantes que antes estavam previstas em lei.

Também foram implementadas mudanças no artigo 62 da Lei 11.343/2006, de modo que comprovado o interesse público na utilização de quaisquer dos bens de que trata o artigo 61, os órgãos de polícia judiciária, Militar e rodoviária poderão deles fazer uso, sob sua responsabilidade e com o objetivo de sua conservação, mediante autorização judicial, ouvido o Ministério Público e garantida a prévia avaliação dos respectivos bens. Tal medida auxilia a reestruturação e no fortalecimento dos órgãos policiais no enfrentamento ao crime organizado, o que vai ao encontro do interesse público.

Por sua vez, a Lei 3.886/2019 implementou mudanças em vários comandos legislativos, tendo como escopo acelerar a destinação de bens apreendidos ou sequestrados que tenham vinculação com o tráfico ilícito de drogas. Os valores auferidos pela alienação antecipada de bens podem ser convertidos em recursos financeiros a serem aplicados em políticas públicas de enfrentamento da criminalidade

Como se vê tanto Resolução CNJ nº 356/2020, quanto as modificações legislativas implementadas pelas Leis nºs 13.840/2019 e 13.840/2019, representam importante avanço no enfrentamento da problemática dos veículos apreendidos nas delegacias de polícia judiciárias espalhadas pelo país, na medida em que proporcionam não só a redução de gastos públicos com a manutenção de pátios, mas também previnem a deterioração dos ativos e possibilitam na reestruturação dos órgãos policiais.

Outrossim, para o sucesso de tais medidas faz-se mister que os estados implantem sistema de cadastramento contendo informações detalhadas sobre os bens apreendidos (vale dizer, inventário detalhado), permitindo que sejam realizadas ações de controle, gestão e alienação da massa de bens, atento as diretrizes estabelecidas pelo Sistema Nacional de Bens Apreendidos (SNBA).

 

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