HABEAS CORPUS 172.091

RELATOR :MIN. EDSON FACHIN -  

Decisão:

Trata-se de habeas corpus impetrado contra decisão monocrática que, proferida no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, indeferiu liminarmente o HC 513.000/SP, porque ausente manifesta ilegalidade a viabilizar a superação do enunciado contido na Súmula n. 691 desta Corte. Narra o impetrante que: a) o paciente, preso em flagrante por suposta prática do crime de tráfico de drogas (art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006), teve sua prisão convertida em preventiva, tão logo realizada a audiência de custódia; b) o édito prisional, no entanto, está desprovido de fundamentação idônea, pois arrimada tão somente na gravidade abstrata do delito imputado e na presunção de periculosidade do agente; c) conquanto as condições pessoais do paciente sejam favoráveis à restituição de sua liberdade, ainda que parcial, com a imposição de uma ou mais medidas cautelares previstas no art. 319 do CPP, o pedido liminar formulado no writ impetrado perante a Corte estadual foi indeferido; d) o Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, apesar da ofensa ao disposto no art. 312 do CPP e nos arts. 5º, XLI e 93, IX, ambos da Constituição Federal, manteve a segregação ante tempus do paciente. À vista dessa argumentação, pugna seja revogada a prisão cautelar do paciente. É o relatório. Decido. 1. Cabimento do habeas corpus 1.1 O sistema de recursos e meios de impugnação previsto na Constituição Federal, enquanto regra de distribuição de competências, tem uma razão de ser. Não por outra razão, esta Corte firmou posição pela impossibilidade de admissão de habeas corpus impetrado contra decisão proferida por membro de Tribunal Superior, visto que, a teor do artigo 102, I, “i”, da Constituição da República, sob o prisma da autoridade coatora, a competência originária do Supremo Tribunal Federal somente se perfectibiliza na hipótese em que Tribunal Superior, por meio de órgão colegiado, atue nessa condição. Nessa linha, cito o seguinte precedente: “É certo que a previsão constitucional do habeas corpus no artigo 5º, LXVIII, tem como escopo a proteção da liberdade. Contudo, não se há de vislumbrar antinomia na Constituição Federal, que restringiu a competência desta Corte às hipóteses nas quais o ato imputado tenha sido proferido por Tribunal Superior  .   Entender de outro modo, para alcançar os atos praticados por membros de Tribunais Superiores, seria atribuir à Corte competência que não lhe foi outorgada pela Constituição. Assim, a pretexto de dar efetividade ao que se contém no inciso LXVIII do artigo 5º da mesma Carta, ter-se-ia, ao fim e ao cabo, o descumprimento do que previsto no artigo 102, I, “i”, da Constituição como regra de competência, estabelecendo antinomia entre normas constitucionais. Ademais, com respaldo no disposto no artigo 34, inciso XVIII, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, pode o relator negar seguimento a pedido improcedente e incabível, fazendo-o como porta-voz do colegiado. Entretanto, há de ser observado que a competência do Supremo Tribunal Federal apenas exsurge se coator for o Tribunal Superior (CF, artigo 102, inciso I, alínea “i”), e não a autoridade que subscreveu o ato impugnado. Assim, impunha-se a interposição de  agravo regimental” (HC 114.557 AgR, Rel.  Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 12.08.2014, grifei). É nessa perspectiva, aliás, que foi reconhecido o descabimento de habeas corpus dirigido ao combate de decisão monocrática de indeferimento de liminar proferida no âmbito do STJ. Tal entendimento pode ser extraído a partir da leitura da Súmula 691/STF: “Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar.” Pelo mesmo motivo, o respeito à competência constitucionalmente disposta, de acordo com a tradicional jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não é admissível a superposição de habeas corpus contra decisões denegatórias de liminar (HHCC 79.238/RS e 79.776/RS, relator Ministro MOREIRA ALVES, DJU de 6.8.1999 e de 3.3.2000, respectivamente; HC 79.748/RS, relator Ministro CELSO DE MELLO, DJU de 23.6.2000; HC  79.775/AP, relator Ministro MAURÍCIO CORRÊA, DJU de 17.3.2000). Isso porque não se tem por inaugurada a competência do Supremo Tribunal Federal, nas hipóteses em que não esgotada a jurisdição antecedente, visto que tal proceder acarretaria indevida supressão de instância. Precedentes: Há óbice ao conhecimento de habeas corpus impetrado contra decisão monocrática do Superior Tribunal de Justiça, cuja jurisdição, à falta de manejo de agravo regimental ao Colegiado, não se esgotou. (HC 123.926, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 14.04.2015, grifei) Inexistindo deliberação colegiada do Superior Tribunal de Justiça a respeito da questão de fundo suscitada pelo impetrante, não compete ao Supremo Tribunal Federal analisá-la originariamente, sob pena de indevida supressão de instância. (HC 124.561 AgR, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 10.02.2015, grifei) 1.2. Sob essa perspectiva, não seria o caso de conhecimento do presente writ, seja porque impetrado em substituição ao agravo regimental não manejado oportunamente perante o STJ seja porque, quando da impetração deste mandamus nesta Suprema Corte, nem mesmo havia pronunciamento de mérito no habeas corpus impetrado na origem, de modo que, tal qual decidido no âmbito da Corte antecedente, mostrava-se recomendável aguardar a manifestação conclusiva do Tribunal estadual. Afinal, a exigência de motivação estabelecida pelo artigo 93, XI,  CF, deve ser compreendida à luz do cenário processual em que o ato se insere. Vale mencionar, por exemplo, a evidente distinção da motivação exigida entre medidas embrionárias, que se contentam com juízo sumário, e o édito condenatório, que desafia a presença de arcabouço robusto para fins de desconstituição do estado de inocência presumido. Assim, o deferimento de liminar em habeas corpus constitui medida excepcional por sua própria natureza, que somente se justifica quando a situação demonstrada nos autos representar, desde logo, manifesto constrangimento ilegal. Ou seja, no contexto do writ, a concessão da tutela de urgência é exceção, e, nesse particular, seu indeferimento deve ser motivado de acordo com essa condição. Sendo assim, o ônus argumentativo para afastar o pleito liminar é mesmo extremamente reduzido. 2. Concessão da ordem ex officio De toda sorte, ainda que ausentes hipóteses de conhecimento, a Corte tem admitido, excepcionalmente, a concessão da ordem ex officio. Calha enfatizar, todavia, que tal providência tem sido tomada tão somente em casos absolutamente aberrantes e teratológicos, em que a) seja premente a necessidade de concessão do provimento cautelar para evitar flagrante   constrangimento ilegal  ; ou b) a negativa de decisão concessiva de medida liminar pelo tribunal superior importe na caracterização ou na manutenção de situação que seja manifestamente contrária à jurisprudência do STF (HC 95.009, Rel. Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 06.11.2008, grifei). Devido ao caráter excepcional da superação da jurisprudência da Corte, a ilegalidade deve ser cognoscível de plano, sem a necessidade de produção de quaisquer provas ou colheita de informações. Nesse sentido, não pode ser atribuída a pecha de flagrante à ilegalidade cujo reconhecimento demande dispendioso cotejamento dos autos ou, pior, que desafie a complementação do caderno processual por meio da coleta de elementos externos. Como reforço, cumpre assinalar que o Código de Processo Penal, ao permitir que as autoridades judiciárias concedam a ordem de ofício em habeas corpus, apenas o fez quanto aos processos que já lhes são submetidos à apreciação: Art. 654. (…) (…) § 2o Os juízes e os tribunais têm competência para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal. É que a Constituição da República (art. 5°, LXI) assegura que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente. Nessa toada, e à luz do que dispõe o já mencionado art. 93, XI, da Lei Maior, o vício de motivação configura, por si só, constrangimento ilegal, por consubstanciar ato violador do devido processo legal, que, dentre outras consequências, subordina a imposição de ordem prisional, de forma expressa, à fundamentação escrita e exarada pela autoridade judiciária competente. Feitas tais considerações, não é dado ao Supremo Tribunal Federal, ao se deparar com panorama processual que atinja ilicitamente a liberdade do paciente, em razão de fundamentação deficiente ou mesmo inexistente, permitir a manutenção da custódia ante tempus, quando possível sanar a ilegalidade pela via do remédio heroico posto à sua apreciação. 3. Caso concreto No caso dos autos, a despeito de não observado pelo impetrante os ritos processuais pertinentes, entendo ser possível aferir, de pronto, a existência de ilegalidade no édito que alicerça a segregação preventiva do paciente do convívio em sociedade – e, de certa forma, já levado a conhecimento das Cortes antecedentes, a viabilizar a concessão da ordem. É que, por simples leitura da decisão proferida em audiência de custódia e de tudo o mais que deste autos consta, é possível verificar que, ante a prisão em flagrante do paciente por suposta prática do crime de tráfico de drogas – pois apreendido em seu poder cerca de 60g de maconha, distribuídas em 31 pequenas porções –, apontou o Juízo singular ser imperiosa a sua colocação sob os rigores do cárcere, porquanto (eDOC 02, pp. 28-29): Havendo prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria, a manutenção do acusado no cárcere é medida que se impõe a fim de se garantir a ordem pública, máxime perante a sociedade local e diante da situação atual do País, em que tanto se discute a questão da impunidade, sendo prematura a liberação sem a dissipação dos efeitos da conduta perpetrada. Vale citar: “... o conceito de ordem pública não se limita só a prevenir a reprodução de fatos criminosos, mas também a acautelar o meio social e a própria credibilidade da justiça em face da gravidade do crime e de sua repercussão... “ ( Processo Penal – ed. Atlas – Julio Fabrini Mirabete ). Desta feita, observadas as disposições do art. 312 do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei 12.403/11, converto a prisão em flagrante em prisão preventiva, com fulcro no art. 310 do Código de Processo Penal, ressalvando, por ora, a inadequação das medidas cautelares diversas da prisão ante o acima exposto. Assim, a despeito da motivação exarada pelas Cortes antecedentes, ao se examinar o édito prisional, nota-se, no que tange à fundamentação da prisão preventiva, que o decisum primevo não elucida, à luz dos requisitos previstos no art. 312 do CPP, em que medida a imposição da prisão cautelar é providência indispensável. Não se indica ali de que maneira e em qual extensão a ordem pública, a aplicação da lei penal e a instrução criminal encontram-se ameaçadas. Não há a mínima ponderação acerca da imprescindibilidade da segregação do paciente à luz das particularidades do caso concreto. Denota-se, assim, que o julgador, invocando a existência de suficientes indícios de autoria e materialidade do delito de tráfico de drogas, apenas parte dessa premissa como razão de decidir, em total descompasso com a jurisprudência desta Corte, que, no julgamento do HC 104.339 (relatoria do Ministro Gilmar Mendes, Pleno, DJe 6.12.2012), declarou, incidentalmente, a inconstitucionalidade da expressão liberdade provisória contida no art. 44 da Lei 11.343/2006. Na oportunidade, consolidou-se o entendimento de que a prisão cautelar deve ser embasada em elementos concretos do caso e nos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal. A título elucidativo, transcrevo trecho do voto do relator: Tenho para mim que essa vedação apriorística de concessão de liberdade provisória (Lei n. 11.343/2006, art. 44) é incompatível com o princípio constitucional da presunção de inocência, do devido processo legal, entre outros. É que a Lei de Drogas, ao afastar a concessão da liberdade provisória de forma apriorística e genérica, retira do juiz competente a oportunidade de, no caso concreto, analisar os pressupostos da necessidade do cárcere cautelar, em inequívoca antecipação de pena, indo de encontro a diversos dispositivos constitucionais. A previsão constitucional de que o crime de tráfico de entorpecentes é inafiançável (art. 5º, XLIII) não traduz dizer que seja insuscetível de liberdade provisória, pois conflitaria com o inciso LXVI do mesmo dispositivo, que estabelece que ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança. Dito isso, tenho que a avaliação empreendida pelo Juízo singular não satisfaz a necessidade de motivação das decisões judiciais nem demonstra a totalidade da presença dos requisitos contidos no art. 312 do CPP. Nessa linha, merece reprodução o emblemático precedente em que se assentou que a melhor prova da ausência de motivação válida de uma decisão judicial - que deve ser a demonstração da adequação do dispositivo a um caso concreto e singular - é que ela sirva a qualquer julgado, o que vale por dizer que não serve a nenhum.(HC 78.013, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 24.11.1998). Enfatizo, por fim, que, de toda sorte, não é dado ao Supremo Tribunal Federal, ao se deparar com panorama processual que atinja ilicitamente a liberdade do paciente em razão de fundamentação deficiente e com a finalidade inconfessável de justificar o meio pelo fim, mergulhar no conjunto probatório do caso concreto com o nítido intuito de amealhar razões que desbordem da decisão atacada. Considerando, pois, que a prisão processual deriva de construção argumentativa despida de motivação idônea, impõe-se a restituição, de pronto, do estado de liberdade do paciente. 4. Dessarte, com espeque no art. 192 do RISTF, não conheço do habeas corpus, mas concedo a ordem de ofício, para determinar a imediata soltura do paciente, salvo se preso por outro motivo, sem prejuízo da imposição de nova cautela pelo Magistrado de primeiro grau, se assim entender pertinente, especialmente aquelas previstas no art. 319 do Código de Processo Penal, desde que amparada em fundamentação idônea, que efetivamente demonstre a imperiosidade da medida. Comunique-se, com urgência e pelo meio mais expedito (inclusive com utilização de fax, se necessário), ao Juízo natural da causa, a quem incumbirá o implemento desta decisão. Publique-se e intimem-se. Brasília, 1º de julho de 2019. Ministro Edson Fachin Relator

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