Liberdade provisória anteriormente concedida mediante fiança. Reiteração da conduta delitiva. Garantia da ordem pública violada. Necessidade da segregação. Liminar indeferida.
Rel. Des. Néfi Cordeiro
Paulo Roberto de Oliveira ingressa com o presente habeas corpus em favor de Roney Oberte Schneider, contra ato do Juízo Federal Substituto da 2ª VF Criminal de Foz do Iguaçu/PR, que indeferiu a liberdade provisória do paciente. Narra o impetrante que o paciente foi preso em flagrante pela prática, em tese, do delito de descaminho, não havendo, no entanto, motivos a justificar a continuidade de sua prisão. Sustenta que não há nos autos elementos de provas que demonstrem, incontestavelmente, o envolvimento do paciente no crime de contrabando, uma vez que não foram encontradas mercadorias em seu poder. Refere que inexistem indicativos concretos de que o paciente, uma vez em liberdade, voltará a delinqüir, mostrando-se dispensável a manutenção da segregação. Diz, ainda, que o paciente é casado, com filhos, residência fixa e, atualmente, é pensionista do INSS em razão de ter sofrido acidente de trabalho, fato que indicam que pode, assim, responder ao processo em liberdade. Requer, assim, a imediata liberdade do paciente com concessão da ordem de Habeas Corpus, inclusive por liminar, com ou sem fiança. É o relatório. Decido. Discute-se o cabimento da liberdade provisória, indeferido pela autoridade coatora basicamente pelo fundamento de reiteração delitiva (fls. 05/08): “Trata-se de pedido de liberdade provisória de Roney Oberte Schneider diante de sua prisão em flagrante pela prática, em tese, dos crimes previstos nos artigos 334 do Código Penal. O Auto de Prisão em Flagrante restou homologado (fl. 43 da Comunicação de Prisão em Flagrante). Foram juntados na Comunicação de Prisão em Flagrante os antecedentes criminais do autuado junto à Justiça Federal da 4ª Região e do INFOSEG. Neste feito, foi juntado cópia do documento de identificação civil do autuado, comprovante de endereço, certidões da Justiça Estadual de Foz do Iguaçu/PR, da Vara de Execuções Penais e Corregedoria dos Presídios da Comarca de Foz do Iguaçu/PR, certidão de antecedentes criminais da Comarca de São Miguel do Iguaçu/PR, e certidões explicativas. Documento (1687490) 1 Há nos autos certidão explicativa dando conta de que o autuado possui registrado contra si a Ação Penal n° 2005.227-7, em trâmite perante a Vara Criminal da Comarca de São Miguel do Iguaçu/PR, pela prática dos delitos previstos nos artigos 312, c/c artigo 29 e 71, c/c artigo 229, § Único, c/c artigo 304, c/c artigo 69, todos do Código Penal, atualmente em fase de instrução (fl. 10). Consta nos autos, ainda, certidão explicativa informando acerca o indiciamento do autuado, no dia 18/8/2006, no Inquérito Policial n° 2006.72.02.007450-9, em trâmite perante a 1ª Vara Federal Criminal de Foz do Iguaçu/PR, pela prática, em tese, do delito previsto no artigo 334 do Código Penal, e artigo 16, I, da Lei n° 10.826/03, no qual lhe foi concedida a liberdade provisória mediante a prestação de fiança (fl. 20). Por fim, instado, o Ministério Público Federal manifestou-se pela não concessão da liberdade provisória ao autuado (fl. 24-verso). Pois bem, consta do Auto de Prisão em Flagrante que Policiais Federais, em fiscalização de rotina no Lago de Itaipu, verificaram um barco atracado às margens do lago, na cidade de Itaipulândia/PR. Após a abordagem do barco, num porto clandestino de difícil acesso, lograram por encontrar no local diversas mercadorias estrangeiras desacompanhadas da documentação legal. No local, além das mercadorias, foi apreendido um veículo. Logo que perceberam a aproximação dos policiais, algumas pessoas conseguiram se evadir do local. O conduzido informou “(...) que sua função é pilotar o barco no Lago de Itaipu, transportando-o de uma margem à outra. Que informa não ter conhecimento de quem são os proprietários das embarcações que pilota, já tendo realizado 'serviços' com diversas embarcações diferentes. Que quem o está contratando é um indivíduo que conhece apenas como Zorba, do qual desconhece qualquer dado de qualificação. (..). Que Zorba o pega com uma moto, cuja placa o interrogado desconhece, e o leva até a margem do Lago de Itaipu para que efetue o serviço de transporte das mercadorias de origem estrangeira, desacompanhadas da documentação legal de importação,' Que percebe R$ 70,00 (setenta reais) por viagem; Que na data de ontem (24/03/2007) estava realizando sua primeira viagem em uma embarcação que, como de costume, desconhece o proprietário. Que saiu da margem do lado brasileiro por volta das 08h, acompanhado do outro conduzido João Carlos Luiz, para ir buscar mercadorias de origem estrangeira, desacompanhadas da documentação legal de importação no Paraguai. (...) Que retomou ao ponto de partida, localizado na Linha Lindamar, no município de Itaipulândia/PR, por volta das 13h; Que o lugar se trata de um porto clandestino, em muito afastado de locais onde haja residências e fluxo de indivíduos, ficando ao final de uma estrada utilizada exatamente para acesso ao referido porto,' Que o local costuma ser utilizado para o desembarque de mercadorias de origem estrangeira, desacompanhadas da documentação legal de importação. (...)“. (fls. 8-9 dos autos da Comunicação de Prisão em Flagrante). É o relatório. Decido. Sabe-se que, ao ser preso em flagrante delito, no caso concreto na modalidade flagrante próprio, é invertido o status do indivíduo, ou seja, de livre para agora de preso. Diante disso é que a legislação autoriza a chamada liberdade provisória, para que a situação atual de segregação sofra mitigação e permita que o flagrado permaneça solto. Dispõe o artigo 5°, inciso LXVI, da Constituição Federal que “Ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança.“ Em harmonia com o comando constitucional, encontra-se o parágrafo único do art. 310 do Código de Processo Penal, pois dispõe que cabe liberdade provisória sempre que não estiverem presentes os pressupostos para decretação da prisão preventiva. Diante disso, hoje, os requisitos e pressupostos autorizadores da prisão preventiva são o paradigma da necessidade de segregação cautelar do indivíduo, merecedores, portanto, de análise no caso vertente, a fim de verificar a presença ou não de alguma das hipóteses previstas no artigo 312 do CPP. Ao que vejo dos autos, estão presentes os pressupostos que autorizam a decretação da prisão preventiva do autuado Roney Oberte Schneider, motivo pelo qual descabe deferir liberdade provisória ao flagrado, com ou sem fiança. Há prova da existência do crime doloso punido com reclusão, conforme auto de prisão em flagrante, bem como indício suficiente da autoria, uma vez que o autuado foi flagrado no barco onde eram transportadas mercadorias de origem estrangeira sem a devida documentação legal, consoante se infere das próprias declarações do autuado. Aliado a isso, a necessidade da manutenção da prisão decorrente do flagrante está também alicerçada na garantia da ordem pública. Mas antes de adentrar nos aspectos concretos, por oportuno, releva abordar considerações sobre o conceito de ordem pública, a fim de delimitar adequada definição do significado e alcance. Apesar de não se tratar de conceito aberto, apto a albergar toda e qualquer espécie de fundamentação para basear decreto de prisão preventiva, tampouco é possível esvaziá-Io de conteúdo, sob o argumento de que se cuida de conceito vago e impreciso. É imprescindível interpretá-lo à luz da máxima que norteia a matéria relacionada à prisão provisória: a necessidade. Toda restrição a direito fundamental passa pela análise da necessidade da medida restritiva no caso concreto. Em matéria de prisão, que constitui restrição severa a ser imposta pelo Estado ao indivíduo, não poderia ser diferente. A interpretação sistemática das hipóteses autorizadoras de prisão preventiva, elencadas no artigo 312 do CPP, revela que, em todas, a ratio da previsão legal é a necessidade. A garantia da ordem pública relaciona-se à necessidade de acautelar o meio social contra a prática de novos delitos ou contra o descrédito da comunidade em relação à Justiça Estatal, decorrente da sensação de impunidade provocada pela prática de determinado delito ou pela reiteração de condutas delituosas. Nesse sentido, Júlio Fabbrini Mirabete, discorrendo acerca da hipótese de decretação de prisão preventiva para garantia da ordem pública leciona que “fundamenta em primeiro lugar a decretação da prisão preventiva a garantia da ordem pública, evitando-se com a medida que o delinqüente pratique novos crimes contra a vítima ou qualquer outra pessoa, quer porque seja acentuadamente propenso à prática delituosa, quer porque, em liberdade, encontrará os mesmos estímulos relacionados com a infração cometida. Mas o conceito de ordem pública não se limita a prevenir a reprodução de fatos criminosos, mas também a acautelar o meio social e a própria credibilidade da justiça em face da gravidade do crime e de sua repercussão.“ grifei (Código de Processo Penal Interpretado, Ed. Atlas, 78 ed., p. 690). Entendo que a garantia da ordem pública restou fortemente ofendida pela conduta criminosa do flagrado, porque, conforme seus antecedentes criminais, é pessoa acentuadamente propensa à prática delituosa, e em liberdade encontrará os mesmos estímulos relacionados com a infração cometida. Em virtude da possibilidade concreta da prática de novos delitos, comprovada por estar o agente em reiteração criminosa, mormente à vista das ocorrências registradas em desfavor do mesmo, assim como o declarado quando de sua prisão em flagrante, justifica-se a custódia cautelar como garantia da ordem pública. (...) Ante o exposto, INDEFIRO o pedido de liberdade provisória formulado, e decreto a prisão preventiva do flagrado Roney Oberte Schneider, pois presentes os indícios de autoria e materialidade e o requisito da ordem pública (artigo 312 do Código de Processo Penal). “ Realmente, consta na decisão atacada que o paciente possui contra si uma ação penal pela prática dos crimes previstos nos arts. 312, 229, parágrafo único, c/c 304, todos do CP (2005.227-7), e um inquérito policial pela prática do delito previsto no artigo 334 do CP, e 16 da Lei nº 10.826/03, no qual lhe foi concedida liberdade provisória mediante fiança (2006.72.02.007450-9). Portanto, a presunção de que em liberdade voltará a delinqüir, especialmente em crimes de descaminho ou contrabando, não é mera hipótese distante, mas raciocínio decorrente das provas constantes dos autos. Com efeito, demonstra tendência delitiva - especialmente para o descaminho - quem, após recentemente preso em flagrante e beneficiado pela liberdade provisória mediante fiança, volta a realizar tal atividade, sabidamente ilícita. Ademais, vindo o paciente a praticar novo crime - e para o fim de liberdade provisória é suficiente a existência de flagrante válido -, é de ser aplicado o art. 341 CPP, com a quebra da fiança: Art. 341 . Julgar-se-á quebrada a fiança quando o réu, legalmente intimado para ato do processo, deixar de comparecer, sem provar, incontinenti, motivo justo, ou quando, na vigência da fiança, praticar outra infração penal. Preso o paciente pelo primeiro processo, não cabe a concessão de liberdade provisória no novo feito, inclusive por impossibilidade lógica, pois não se pode soltar quem preso de todo modo estará (pela quebra da fiança no primeiro feito criminal). Assim, mesmo que venha o paciente comprovar residência fixa e atividade lícita, há fatos a suportar a presunção de vivência delitiva e daí o risco social a justificar a custódia cautelar. Nesse sentido, já me posicionei em julgado semelhante: “PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. MANUTENÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. REITERAÇÃO DELITIVA COMPROVADA. DENEGAÇÃO DA ORDEM. 1. Sendo típica hipótese de flagrante próprio, correta a formalização e homologação do auto de prisão. 2. Presentes os requisitos obrigatórios da prisão preventiva, bem como o requisito alternativo de garantia da ordem pública, para evitar a reiteração delitiva não-afastada por mera alegação de promessa de emprego, correta é a manutenção da prisão.“ (HCorp nº 2005.04.01.036123-4/PR, Sétima Turma, DJU de 14.09.2005) 4 A questão é polêmica e por vezes resto vencido nesta Turma, pela pouca danosidade social, em princípio, do crime de descaminho. Continuo entendendo, porém, que a reiteração de qualquer crime acarreta dano à ordem social, pelo que justifica-se a prisão para acautelar tal risco, mesmo em crime de descaminho. Também nesse sentido: “HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. DESCAMINHO. PRISÃO EM FLAGRANTE. LIBERDADE PROVISÓRIA. REITERAÇÃO DA CONDUTA. 1 - Se as informações contidas nos autos denunciam a prática reiterada do descaminho , de que não se trata de mero “sacoleiro“, tendo em vista o volume de mercadorias apreendidas, fazendo crer que o ilícito é seu meio de sustento e que se cuida de possível organização criminosa, justifica-se a manutenção da custódia preventiva do flagrado para garantia da ordem pública. 2 - Ordem de habeas corpus denegada.“ (HCorp nº 2005.04.01.038144-0/SC, rel. Des. Federal LUIZ FERNANDO WOWK PENTEADO, Oitava Turma, DJU de 28.09.2005) Pelo exposto, não sendo demonstrada a ilegalidade da decisão atacada, indefiro a liminar pleiteada. Oficie-se solicitando informações. Após, dê-se vista ao douto órgão do MPF. Intimem-se. Porto Alegre, 20 de abril de 2007.